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Igor Corrêa Pereira

Igor Corrêa Pereira é técnico em assuntos educacionais e mestrando em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro da direção estadual da CTB do Rio Grande do Sul.

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Dialogar com os ressentidos é possível?

Se nossa gente nos enxerga como uma elite meritocrática, a falha também pode ser nossa. Nós precisamos de uma sociedade onde filhos de pedreiros virem engenheiros ou de uma sociedade onde todos tenham um lugar digno, independentemente de sua formação? Vamos descer do salto e começar tudo de novo?

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Eu gosto de contar uma história que me aconteceu no triste ano que Bolsonaro foi eleito. Estava eu num bar de karaokê (ô saudade), que tinha um ambiente interno e um externo. Do ambiente externo, eu podia ver e ouvir o lugar interno, onde jovens cantavam, animados pela alegria etílica e pela amizade que nutriam. Deviam comemorar algum aniversário ou outra ocasião especial. Na empolgação do momento, os jovens entoaram um "Ele Não!", que na época era a palavra de ordem de oposição ao ainda candidato Bolsonaro. 

O que quero contar aqui foi a reação de três mulheres que sentavam numa mesa próxima a minha, também no ambiente externo. Elas ficaram incomodadas com a manifestação. Demonstravam simpatia por Bolsonaro. Suas expressões de desaprovação acabaram por ser expressas num comentário que jamais vou esquecer. Uma delas disse, com olhar de ressentimento mirando os jovens: "com certeza esses aí devem ser burguesinhos da UFRGS” (sigla de Universidade Federal do Rio Grande do Sul). As outras acenaram com a cabeça, concordando. As três muito indignadas e cheias de razão. 

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A frase me marcou porque eu trabalho na dita Universidade e não acho que seja um espaço de burgueses. Aliás, estudos da ANDIFES dão conta que a maioria dos estudantes universitários é oriundo de escola pública, há um grande contingente de estudantes de baixa renda. Mas a visão da mulher sobre quem estuda na Universidade suscitou uma reflexão. Por que alguém considera os estudantes da UFRGS como parte da elite? A resposta também pode ser verificada por estudos. No Brasil, ter um diploma de ensino superior, sobretudo de uma Universidade Pública, é uma distinção para uma minoria da sociedade.

Esse pequeno episódio foi o prelúdio da eleição de Bolsonaro e de tudo que se sucedeu. Quando Eduardo Cunha deu seu voto para golpear Dilma Rousseff, dois anos antes, disse a célebre frase "Deus tenha piedade dessa Nação". Ele devia saber o que estava por vir. Uma avalanche de ataques a direitos, violências de todo o tipo, se precipitou sobre o país. E a Universidade, juntamente com a esquerda, foi eleita uma das inimigas principais. 

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Tive a oportunidade de ler uma interpretação muito interessante sobre todo esse fenômeno que pode ser chamado de emergência de um populismo reacionário. Bolsonaro não foi um caso isolado. Nos Estados Unidos surgiu Trump, na Europa a extrema direita xenófoba também cresceu. O que estava acontecendo? O filósofo Michael Sandel oferece elementos interessantes para o debate. 

Ele entende que o presente pode ser explicado se olharmos o surgimento de uma nova ordem neoliberal nos anos oitenta, com os governos de Reagan nos EUA e Thatcher na Inglaterra. Para ele, os governos de esquerda de países como EUA, Inglaterra e França que se sucederam a Reagan e Thatcher, não questionaram as premissas básicas dessa ordem neoliberal, o que intensificou um grande fosso entre ricos e pobres, uma crescente dificuldade de acesso a bons empregos, e uma crescente polarização entre "vencedores" e "perdedores". Ele identifica a Universidade como o espaço privilegiado de afiançar quem vence e quem perde na nossa sociedade. Ou seja, os diplomados são os vencedores e os não-diplomados os perdedores. 

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Isso explica o ressentimento que vi no bar contra "os burguesinhos da UFRGS". Provavelmente, a mulher que proferiu essa sentença, não conseguiu acesso ao estudo numa Universidade Pública. E se considera por isso humilhada pelos que conseguiram. Sandel advoga justamente que esse ressentimento contra os que "venceram" na sociedade meritocrática foi a base de apoio para Trump, Bolsonaro e outros líderes de extrema direita. Seriam os humilhados pelo sistema os que se sentem representados por líderes que usam uma retórica que distoa do "politicamente correto" e acadêmico de discursos dos políticos tanto da direita tradicional quanto principalmente da esquerda tradicional. 

Para amparar seu argumento, Sandel revela que nesses países, no decorrer do século XX, os partidos de esquerda atraíam pessoas com menor nível de formação educacional, enquanto que os de direita atraíram pessoas com um nível maior. A partir dos anos oitenta, que ele chama de "era da meritocracia", esse padrão foi invertido. Hoje, pessoas com maior escolaridade votam em partidos de centro-esquerda, e pessoas com menos escolaridade em partidos de direita. O mesmo padrão ocorre, repetindo, nos EUA, no Reino Unido e na França. Ele fala ainda que a perda de apoio dos eleitores sem formação universitária se intensificou nas últimas duas décadas. 

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Embora Sandel não tenha estudado o Brasil, estudos conduzidos junto a manifestantes contra o PT nas famigeradas passeatas com a camiseta da CBF, chegaram a conclusão que uma das políticas que mais irritava os manifestantes eram as cotas raciais e sociais nas Universidades. Por que? Arrisco a dizer que Sandel nos diria que para os manifestantes, o que irritava era que alguns grupos estariam sendo favorecidos indevidamente na competição pelo mérito. Independentemente de concordar ou não com os manifestantes, o que Sandel nos oferece é outro olhar. O que está errado não é somente o lado que questiona as cotas. O que está errado é dizer às pessoas que seu sucesso ou fracasso individual dependerá de seu acesso ou não numa Universidade. Porque obviamente, em qualquer sociedade do mundo, trata-se de uma minoria os que entram no ensino superior. Nós diremos a toda a sociedade que não ingressou que eles fracassaram? Nós esperamos que eles fiquem felizes com isso? 

Para construir uma sociedade diferente, nós temos que ser capazes de pensar diferente daquele que hoje exercem o poder. O que Sandel nos diz é que a esquerda não questiona a lógica de competição que produz vencedores e competidores, no máximo oferece regras que considera mais justas para que se dê essa competição. Ao abandonar a capacidade de pensar uma sociedade que não seja baseada na tirania do mérito, a esquerda abre espaço para que os raivosos contra o sistema se vejam representados pela extrema direita. 

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A esquerda precisa se repensar. Precisa resgatar o papel da crítica da sociedade e de apontar outros caminhos. O papel de defender a ordem estabelecida não deve ser nosso. Nós não podemos só querer que o filho do pedreiro vire engenheiro, como se cantava no movimento estudantil no tempo de Lula. Temos que lutar por dignidade dos pedreiros, de quem vive do seu trabalho, por mais humilde que seja. Até porque tem muito engenheiro por aí dirigindo UBER, o que demonstra que o diploma universitário por si só não garante a promessa do mérito. Precisamos falar da desindustrialização das economias ocidentais, lutar pela dignidade de nossa gente, que não se fará se continuar essa estúpida luta por quem vence e quem perde, transformando a sociedade numa cópia piorada dos reality shows da televisão.  

Se nossa gente nos enxerga como uma elite meritocrática, a falha também pode ser nossa. Nós precisamos de uma sociedade onde filhos de pedreiros virem engenheiros ou de uma sociedade onde todos tenham um lugar digno, independentemente de sua formação? Vamos descer do salto e começar tudo de novo?

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