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Roberto Bueno

Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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Eduardo Galeano e Florestan Fernandes: América Latina contra o império (I)

"A única alternativa histórica anunciada há séculos pela elite latino-americana e que vem sendo praticada por ela é servir como corretora das riquezas locais e como intermediadora eficiente para o domínio dos corpos que explorarão as suas próprias terras sem proveito para si e os seus", escreve o professor de Direito Roberto Bueno

(Foto: Alesp | Divulgação)
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O uruguaio Eduardo Galeano (03.09.1940-13.04.2015) entrou definitivamente para o panteão do pensamento progressista latino-americano pelas melhores e mais nobres razões. Indisposto a aderir ao controle cultural e político exercido pela elite local associada aos interesses econômicos expropriadores do império norte-americano, Galeano observa este fenômeno que assola a íntegra da América Latina no decorrer da história, ademais, com singular letalidade desde a ascensão dos Estados Unidos da América (EUA) à potência de primeira magnitude global.  

Chegado o próximo setembro Galeano completaria os seus 80 anos de vida, festiva data reservada aos que prestaram bons serviços à humanidade, assim como foi o caso da genialidade de Florestan Fernandes (22.07.1920-10.08.1995), que completaria 100 anos neste mês de julho. A efeméride, por si só, é motivo insuficiente para aproximar Florestan a Galeano, mas sim o relevante diálogo travado entre a substância da obra de ambos, cujo olhar para a vida e seus objetos de análise tem idêntica perspectiva, a do olhar daqueles que vivem na parte de baixo, sob o tacão de pesadas botas enquanto os entes estatais nacionais que os representam seguem agrilhoadas pela potência imperial, incapazes de operar institucionalmente em prol de seus cidadãos, cujo caráter de sujeitos de direito não logra transpassar a formalidade. Florestan e Galeano reconheceram os limites das formas do Estado burguês latino-americano sobre a economia, a política e a sociedade, intermediado pelo exercício do poder cru pela elite latino-americana sobre a sua gente, realçando neste particular a potência da teoria marxista. 

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A obra de Galeano está marcada por traços muito particulares que entrecruzam política, filosofia, literatura e a dimensão econômica do processo continuado de colonização, articulados com o talento próprio dos mestres da literatura, temperando ainda as suas linhas com notabilíssima perspectiva humanista. A posição de Galeano é franca e absolutamente contraditória com a política externa reservada pelo império para a América Latina, enquanto a sociologia de Florestan mantendo tal linha crítica inaugura em língua pátria o mais denso foco analítico sobre o desprezo ao negro(a) pelas estruturas da sociedade brasileira já em sua gênese sob a falsificação da cordialidade, apenas crível a quem nunca conheceu na pele a discriminação, as “entradas de serviço”, as dispensas de entrevista de trabalho por “não preencher o perfil” etc. 

Galeano entrou para a história do pensamento progressista da América Latina com a sua icônica Veias abertas da América Latina (1989), que penetrou profundamente em diversas gerações desde a sua publicação em 1971. Galeano se alinhou entre os que não assistem passivamente à empresa de caça estrutural pelo império e o capitalismo aos homens, focando especialmente nos latino-americanos e caribenhos. A caça aberta foi realizada pelas potências de cada época e a América Latina e o Caribe conheceram de perto o peso de cada uma delas, do Haiti a Cuba, da Colômbia à Venezuela passando pela República Dominicana e o Brasil. A literatura de Galeano ecoa a voz dos povos calados ante a avassaladora força dos oligarcas transnacionais articulados nos altos gabinetes políticos das nações imperiais orientados a extrair na mesma intensa proporção as riquezas minerais quanto o sangue dos indivíduos através da maximização de sua força de trabalho.  

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As forças da pura opressão subjugam países que Galeano classificou como especialistas em ganhar, opondo-as aos que se especializaram em perder. Há imprecisão pontual na leitura dado que mais adequado seria referir evidenciar o papel de especialistas na entrega de riquezas sob hábil retórica dotada de notável potencial de persuasão entregue a manipulação midiático-corporativa alegando, invariavelmente, que ou bem os recursos são entregues à exploração estrangeira (ocultando o baixíssimo preço!) ou a falta de recursos dos nacionais imporá o não aproveitamento deles e, por conseguinte, a perda por completo de qualquer proveito coletivo. A convergência com Galeano não pode transpor o limite da estilística literária, pois além disto sugeriríamos a culpabilização da vítima. A fria análise política impõe o reconhecimento de que nem a América Latina nem o Caribe são especialistas em derrotas, senão em travar inglórias lutas. As forças populares são submergidas, imobilizadas, incapacitando-as histórica, mas não definitivamente, para a reação. As derrotas históricas entorpecem o imediato florescimento dos povos, mas em nenhum caso o cultivo das linhas de força para a eclosão da reação e afirmação da soberania nacional.  

O império realiza sucessivas ações para desabilitar e desconectar as forças populares de seus instrumentos de reação. Assim mantém exitosa a atividade imperial dos resultados econômicos da extração da força de trabalho e de riquezas, do petróleo e ferro ao das terras raras, da carne e frutas passando pelo café e apropriação das empresas e colonização dos governos e das instituições locais. O evolver histórico na América Latina apenas reforçou a intensidade de esforços pela concentração de poderes na órbita do império, tal como observado pela maestria da sociologia política de Florestan que em seu livro Poder e contrapoder na América Latina reporta a preocupação da elite com nada mais que “[...] impedir que a herança colonial se desagregasse, fugisse por entre os seus dedos”. Florestan e Galeano se encontram na mesma encruzilhada em que convergem a elite nacional e a estratégia de cooptação imperialista para organizar o saque. 

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 Desnecessária a ocupação moderna por forças armadas estrangeiras para a garantia do êxito do processo de expropriação. São desnecessárias as canhoneiras na costa ou as fardas estrangeiras armadas nas ruas quando o moderno armamento tecnológico, financeiro e jurídico-político amparado nas fardas nacionais cumpre perfeitamente o papel de feitores interessados em cumprir o papel de terceirização da expropriação em favor dos interesses do império. Esta é a muralha protetora contra a eclosão de forças nacionalistas interessadas em projetos desenvolvimentistas como os de Celso Furtado, mas também preocupados com a garantia mínima de direitos aos trabalhadores, como foi o caso de Getúlio Vargas e João Goulart, logo tomados como alvos imediatos das forças políticas imperialistas com ambições de exercer posição de determinação da estrutura interna da produção capitalista, contando com importantes sócios internos como na teoria da dependência constituída à direita sob a pluma de Fernando Henrique Cardoso, sempre confortável em sua submissa adesão ao império. 

Tanto Florestan quanto Galeano analisam as estratégias do poder comandadas desde as metrópoles que articulam com as elites locais interessadas em reconfigurar o projeto colonial sob novas formas históricas, mas em qualquer destas novas faces estão em sua essência comprometidas com evitar projetos políticos de construção de nação independente. Galeano observa que a elite latino-americana tem linha de continuidade em seu acompanhamento do poder imperialista, análise que explicita que as “nossas classes dominantes não têm o menor interesse em averiguar se o patriotismo poderia ser mais rentável do que a traição ou se a mendicância é a única forma possível de política internacional”, efetivamente, inexiste sentimento de pertencimento ao espaço territorial de nascimento e apego à cultura, senão exatamente o contrário, foram transformados em espectros da metrópole. Este é processo que para Galeano encarna a “hipoteca da soberania”, o que ocorre nas mentes destes espectros nacionais devido a, supostamente, inexistir outro caminho, algo que, em verdade, são “álibis da oligarquia [que] confundem interessadamente a impotência de uma classe social com o presumível vazio de destino de cada nação”. 

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A única alternativa histórica anunciada há séculos pela elite latino-americana e que vem sendo praticada por ela é servir como corretora das riquezas locais e como intermediadora eficiente para o domínio dos corpos que explorarão as suas próprias terras sem proveito para si e os seus. A pele mais profunda, a cultura e a visão de mundo da elite latino-americana são bem representadas pela brasileira, que teve impressa em seu ethos um conjunto de perversões etnográficas, antropológicas e filosófico-políticas típicas de sociedades destituídas do sentido de apreço pelo humano.  

A perversão cultural comum à elite latino-americana de continuar a exercer domínio sobre a massa de corpos que julga inferiores composta de negros e dos povos indígenas originários é elemento nocivo à criação do espaço existencial latente nas obras de Florestan e Galeano. A elite latino-americana que substituiu os indígenas por amplos coletivos de negros trazidos para o trabalho segue ambicionando deter a posição análoga à dos proprietários de escravos de antanho, hoje pagando ínfimos salários, anulando direitos sociais e trabalhistas, exterminando amparo à saúde e previsões acautelatórias para a aposentadoria, em suma, projetam economia em que extraiam tudo da terra e dos corpos, imediatamente substituídos como peças por outros mais novos, cheios de energia e funcionais para o sistema produtivo.  

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Documentada e analisada por Galeano, sob a memória da devastação humana e de recursos naturais imposta pelos primeiros invasores espanhóis do continente, a elite latino-americana deu curso à exploração radical sob condições análogas aos dos escravizados daqueles primeiros tempos em que o direito não tinha forma nem substância para tempos em que o direito tem forma mas permanece sem materialidade. Expressiva metáfora mineral contemporânea para a percepção da expropriação da natureza sem qualquer reparo e retorno para os povos reais proprietários das riquezas é o caso do petróleo venezuelano. Em sua célebre As veias abertas da América Latina Galeano já chamava a atenção para o fato que não perde atualidade nos diversos países produtores, narrando que as filiais das petroleiras nas colônias eram organizadas para enviar o petróleo cru às matrizes onde as suas empresas realizam o refino para vender de volta a gasolina a preço consideravelmente mais alto do que o pago pelo cru às colônias produtoras.  

A elite latino-americana aparece tanto em Florestan Fernandes como em Eduardo Galeano caracterizada por sua ambição de manutenção da estrutura de exploração típica do mundo colonial, mas precisam enfrentar-se com os novos desafios impostos pela alteração do modelo de Estado e do direito, cuja concepção burguesa impõe a utilização de novos instrumentos para o exercício do domínio. À falta da estrutura jurídico-política do regime colonial, legitimadora da escravidão e da expropriação da mão-de-obra e de suas riquezas nacionais, serão aplicadas manipulações, ardis e estratagemas para solapar o poder político do soberano político reconhecido pelo modelo democrático, o povo, e assim a América Latina e o Caribe conheceram múltiplos golpes de Estado desmoralizadores da vida política e desacreditador do real poder político popular. Assim é solapada a crença no Estado de direito burguês e nas promessas de democracia, pavimentando a via para os seus inimigos autoritários. Deste tema e outros conexos seguiremos tratando na sequência deste artigo a ser publicado amanhã neste espaço.        

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(SEGUE). 

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