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Clarissa De Franco

Psicóloga, doutora em Ciências da Religião, com pós-doutorado em Estudos de Gênero. Profa. Titular da Universidade Metodista de São Paulo

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Educação domiciliar: uma recusa à diversidade democrática

Cabe perguntar: quem ficará com essas crianças, acompanhando sua educação em casa? As famílias pobres certamente não terão condições para isso

(Foto: Divulgação)
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O projeto de lei 2401/2019 que regulamenta a educação domiciliar no país passou pela etapa de aprovação da Câmera dos deputados na quarta-feira, 18 de maio. Cabe lembrar que uma das primeiras iniciativas da ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, logo nas primeiras semanas de governo (em 21/02/2019), foi anunciar que estava preparando uma medida provisória para autorizar pais e mães a educarem seus filhos e filhas em casa.

É importante compreender o contexto mais amplo que envolve esse tema. Desde a última década têm ocorrido alguns movimentos que podem ser compreendidos como parte de um grande processo de privatização da educação – não por acaso, nessa semana, o deputado Kim Kataguiri emitiu parecer favorável à PEC 206/2019 de autoria do deputado Peterneli que permite a cobrança de mensalidades nas instituições de ensino superior públicas, alegando que só pagará quem puder.  Além disso, quem não se lembra do recente Programa Future-se, iniciativa do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, que abria as universidades públicas ao capital privado, condicionando as diretrizes da educação superior pública aos interesses de grupos específicos?

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Também o Escola Sem Partido e Con Mis Hijos No Te Metas denotam uma relação de propriedade dos pais e mães com seus filhos e filhas, apartando o Estado de temáticas como a educação sexual e de gênero. O recado é claro: “não se meta com meus filhos, Estado pluralista, pois aqui, o que vale é nossa moral, nossos valores, nossa religião”. A retirada do debate de gênero das escolas é um exemplo da perspectiva de privatização da educação no campo moral, já que o núcleo familiar assume uma importância estratégica para cuidar de debates que, no caso da educação presencial estariam expostos à convivência com a pluralidade e as diferenças. 

Ao reservar ao núcleo privado da família o espaço para falar (ou não falar) de tais questões como gênero, sexualidade, política, religião, esvaziam-se ou diminuem significativamente as possibilidades das crianças e adolescentes consolidarem seus aprendizados relativos ao contato com a diversidade. Dados do Disque 100, canal de denúncia de direitos humanos do governo, indicam que mais de 70% dos abusos sexuais contra crianças ocorrem dentro de casa, sendo o abusador em geral uma figura da família, como padrasto, pai, tio, primo... Ótima estratégia para continuar silenciando essas crianças e compactuando com esses abusadores, não é?

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A educação domiciliar reedita um velho e central problema que acompanha os debates de gênero: o de manter no domínio do privado aquilo que se quer controlar, subalternizar, invisibilizar ou excluir, como foi o caso das mulheres por séculos. No caso do homeschooling – o nome já mostra que a moda é inspirada na cultura estadunidense – é a criança e o/a adolescente que estão sendo tratadas/os como propriedades privadas, alijadas/os de direitos de cidadania pública.  

Quando Damares foi questionada lá em 2019 porque a pauta da educação domiciliar estava sendo encabeçada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e não pelo Ministério da Educação, ela indicou que: “nós entendemos que é direito dos pais decidir sobre a educação dos seus filhos, é uma questão de direitos humanos. Então, a iniciativa sai deste ministério sob esta vertente. [...] E nós somos signatários do Pacto de San Jose da Costa Rica que garante isso às famílias. E veja só, é uma demanda de família isso e tem que sair do ministério da Família. Claro, em parceria e anuência com o ministério da Educação, mas a iniciativa deste ministério é legítima” (a fala da ministra pode ser acompanhada aqui: Damares: educação domiciliar permite a pais ensinar 'mais conteúdo que a escola' | Blog da Andréia Sadi | G1 (globo.com)). 

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O Pacto de San José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana de Direitos Humanos, citado por Damares, está em vigor desde 18 de julho de 1978, e traz no artigo 12, parágrafo 4: “os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções”. Já o artigo 17 nos parágrafos 1 e 2 decretam: “a família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado” e “é reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de fundarem uma família (...)” 

Há nesse texto da década de 1970 toda uma justificativa de que a família deve ser protegida pelo Estado, sendo esta família formada por estritamente homem e mulher, e que aos pais e mães é reservado o direito de que seus filhos e filhas recebam educação religiosa e moral de acordo com seus valores. 

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Fica claro, portanto, que a educação domiciliar é mais uma faceta do recrudescimento do conservadorismo reacionário que tem se fortalecido nos anos recentes. Vemos aí os pilares da defesa dos grupos que rechaçam valores e símbolos que acompanham a democracia, como pluralidade, diversidade, diferenças. 

Finalmente, cabe perguntar: quem ficará com essas crianças, acompanhando sua educação em casa? As famílias pobres certamente não terão condições para isso. Essa é uma demanda elitista, de quem se olha no espelho e se vê em Texas ou New Jersey. De quem acredita que a escola expõe seus filhos e filhas ao “nefasto” convívio com as “perigosas diferenças”, uma demanda de mulheres que se conformam ao modelo: “bela, recatada e do lar”, já que provavelmente elas é que estarão a cargo da educação de seus filhos e filhas em tempo integral, pois é no abrigo do lar que a pérola da família tradicional brasileira será preservada. 

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