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Rogério Puerta

Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros

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Empreendedor: vire-se nos 13

Sempre houve isto, muito trabalho informal, mas tudo se aprofundou de forma significativa, é comprovável

(Foto: Reuters)
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Dê seu jeito, se vira! Frase curta repetida à exaustão, todo idioma de todo planeta Terra deve ter seu equivalente local. No Brasil "Se vira nos 30" virou bordão, tal a força televisiva de um programa dominical. Escassos trinta segundos para se exibir e ser avaliado, eventualmente remunerado.

Hoje a competição é bem maior, mais de década após a criação do bordão. Se esperar trinta segundos outro chega e toma o lugar. Então caiu pela metade, ou quase, caiu aos treze. Treze? Podia ser então 17. Matematicamente podia, mas o candidato 17 nunca soube ou vivenciou o que alguém que habita as periferias convive por obrigação. Não é o único. Sarney, Itamar e Temer foram presidentes eventuais, Collor era playboy de Brasília, FHC refinado desde sempre, Dilma não era garota das periferias. Então, se vira nos 13.

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Diz-se que pobre é doutor em economia doméstica. Comprovável. Arruma gasolina do mecânico conhecido, isopor achado no lixo, derrete e tapa buraco em telha de amianto, ainda o amianto, propagandeado como menos nocivo. Comprar caixa inteira de massa de vedação não dá. No mercado de bairro a senhora negra maltratada e curvada pergunta se o inseticida tem cheirinho de eucalipto. Você tenta ajudar, lê e diz que não, que é veneno, e que tá caro. Era o que ela queria saber, tá caro, não era pelo eucalipto, por sete reais a menos andará mais um bocado, forçar ainda mais as costas curvas e velhas, e comprará um frasco no outro mercado.

Lixo que não merece o nome. Vê-se muito nas periferias. Móvel velho, muita madeira, nem lenha é, que dá mais trabalho pra limpar e carregar, são peças lisas de madeira leve, restos de móveis muito usados. Ótimo pra lenha, o sujeito que tiver a fortuna de um quintalzinho de 4m2 improvisa tijolo, ferrolho, e agora empretece as panelas cozinhando feijão a lenha. A esposa reclamou, trabalheira limpar, depois relaxou, viu que não dava mais pra comprar gás, e viu que a panela poderia ficar preta de vez.

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"Se vira". Aperta 13 na urna, se apertar 17 pobre se lascará mais ainda, mas vários deles parecem se oferecer ao martírio e imolação pública. Religião ajuda e atrapalha. Embrenhada na política partidária é um explosivo em potencial. O Vaticano é político, o Islã, sinagogas, todas as religiões, e quando organizadas em esferas de poder estatal é de se esperar que reine o emocional em detrimento do racional. Uma teocracia, o fundamentalismo-religioso, não seria exagerar demais dizer que o nosso país atual beira este sintoma.

Você vai ao comércio em região de classes econômicas baixas, eventuais médias. Periferia, quebrada, becos e vielas, muito morro e córrego imundo. Mesmo pobre, o sujeito que você tenta conversar dá as dicas, e você as percebe: bandeira nacional pintada na parede de seu comércio, livro de pastor acima do balcão de atendimento. Nem precisava, mas você arriscou: "Tá lascada a situação, né?". "Tá". "Na época do Lula pra mim tava melhor". Pra quê foi falar? Escutou um monte: "O presidente ainda não fez o que podia, agora na reeleição fará/Não voto em bandido presidiário".

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Religião e truculência, ambas, não a segurança, pois não há segurança ao exterminar rivais, vinganças haverá, então a truculência, o excludente de ilicitude. Muito bem miscíveis, todos os textos antigos sagrados são recheados de sangue, traição, genocídios, tal qual a vida parece ter sido entre brutos há milênios.

Em 2012, década atrás, você lembrou de um telefonema inesperado. Um amigo de adolescência ligou, lhe achou, disse se encaminhar para uma clínica de reabilitação, não conseguia largar a cocaína, que comprava prestando bicos, se disse arrasado após sequelas de um espancamento. Disse que estava em um bar e olharam feio, ele, pavio curto, devolveu o olhar. Acabou largado em beira de córrego, semimorto, ou morto para os playboys que o espancaram. Ficou com paralisa em parte do lado esquerdo do corpo, foi pra cocaína, muita dor e rancor, sobretudo ódio, sentimento de injustiça e impotência. Ódio social. Disse ao telefone que só um Hitler no Brasil daria jeito nestas coisas. Visão míope. O 17 não foi ocorrência fortuita.

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"Se vira nos 13". Resistam até a mudança, esperança é aconselhável. Bota placa em formato de chave na garagem de casa, nem placa fixa é, que paga taxa pra prefeitura, a placa indica que você é chaveiro, quebra-galho, conseguiu uma bancada pequena com esmeril e arrisca lá fazer umas cópias de chaves a cinco reais cada.

Venda de salgados pulula nas periferias, não dá nem pra contar nos dedos das duas mãos. Garagem de casa, pra quem tem, vira ponto de venda, é prático. Na rua passando já se compra um salgado a 1,99 e sai comendo andando até o ponto de ônibus. Vende que só. Se não há garagem em casa, se vai ao ponto agitado da avenida, traz em carrinho de feira umas tábuas que viram mesa, forra direitinho, com pano bonito e limpinho, bota térmica de café fresco, muito preto e muitíssimo doce, outra de leite quente, compra bolo nas inúmeras fábricas de bolos prontos caseiros baratos, sem recheio, que já vêm com bandeja e tampa transparente. Ao lado, os salgados fresquinhos feitos de madrugada ao acordar com sono e cansaço todo dia as três horas em escuridão.

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"Se vira". "Não sonha e fica na fronha". "Vencedor vence a dor". "Camarão que cochila a maré leva". Não dá pra baixar a cabeça, se baixar, que seja só por alguns minutos, porque você bem sabe que neste momento o monstro salivante está à espreita, voraz para lhe devorar. Assim é o ultracapitalismo, tubarões devorando inteiros outros menores, cão comendo cão.

Nas periferias você ainda não viu lavanderias. Há placas nas casas de gente que lava roupa, faz encomendas de comidas variadas, cuida de criança, costura, empresta dinheiro, depila, trata unhas. Um conhecido esteve em Brasília a trabalho, disse que lá nos comércios há lavanderias que só, uma que achou por demais estranho o nome, nem desconfiou ser nome francês impronunciável. Rico usa lavanderia, nem leva lá, paga taxa pra virem a domicílio e depois trazerem tudo bonitinho e cheiroso.

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"Se vira nos 13". Ainda mais. Sempre houve isto, muito trabalho informal, mas tudo se aprofundou de forma significativa, é comprovável, olhem as ruas, as barracas de rua, os pedintes e ambulantes clandestinos nos vagões de metrô, adentrando onde for possível, que se viram em segundos, até pix recebem, sem derrubarem o que vendem, tudo muito ágil e perspicaz, escapando dos fiscais. Vai se virando, em esperança, que 2023 começará algo menos aflitivo e sofrido.

Sempre houve, hoje muito mais. Você já decorou as músicas do carro dos ovos, do gás, do óleo para reciclar, das frutas e verduras, da bola colorida com algodão-doce, da pamonha. Ovo é o que mais há. Diz-se que alguns não passam no teste do ovoscópio nas granjas, devem ser descartados para consumo humano, diz-se que em granjas menores se desvia e há revenda, e que por isto há tanto carro de ovo com corneta de som reproduzindo "Uma cartela de ovos baratinho, freguesia". Injusto afirmar que todos vendem ovos clandestinos, mas desvios há, ademais ovo sempre foi procurado, opção à carne, o tal do bife de "Zôio", mas nem o ovo está tão mais barato. Impensável chegarmos a ponto de passar um carro de rua anunciando a pele de frango, o osso bovino.

Às vezes se tira a sorte grande, poucos, mas a criatividade dos pobres é fenomenal. Um sujeito tinha primo que plantava amendoim no quintal de casa, arranja grãos dele, depois viu que comprar pronto torrado e salgado até compensava. Fez aqueles cones de papel típicos do amendoim delicioso, doce ou salgado, vende o salgado, pra quem tá meio acervejado e com a saliva grossa. Carrega uma lata de metal, furada, improvisada, com carvão, bota em grelha os canudos de papel com amendoim comprado, ficam fresquinhos e mornos, deliciosos, cones pequenos de pouco conteúdo, vende a um real, nunca sobra, vai a um estádio com nome popular Mané. Manoel, Joaquim, virou pejorativo, de sujeito canhestro. Em Portugal a piada é que por aqui coçamos a cabeça com o braço apoiado na mesma, por preguiça.

Colonizados e colonizadores, quase todos na Europa em séculos passados se aventuraram mundo afora, quase todos exploraram, mataram, e trouxeram comodidades materiais. Eça de Queiroz e Saramago amados aqui, Chico e Caetano lá. Sangue se lava com água, não com mais sangue. Mané? Chorão, dos Charlie Brown Jr, subestimado, poeta marginal no melhor dos sentidos, às margens, excêntrico, fora do padrão, raro, já dizia: "Nóis é ralé, mas não é mané".

"Se vira" nos 13.

Capão Redondo, 12 de abril de 2022

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