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    Marcelo Zero

    É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

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    Enquanto a águia faz guerra, o dragão joga xadrez

    "A política generosa da China, assim como da Rússia, na produção e distribuição de vacinas contribui para um maior protagonismo do dragão chinês, no atual cenário", escreve o colunista Marcelo Zero. "A águia norte-americana", diz ele, é boa em "desestabilizar governos não alinhados com seus interesses, mas o dragão chinês e o urso russo são mestres no xadrez"

    Presidentes Joe Biden (EUA), Xi Jinping (China) e Vladimir Putin (Rússia) (Foto: Divulgação)

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    Debaixo da plumagem por vezes branca e columbina de “negociações” e de “formação de alianças”, Biden esconde um feroz “falcão” unilateralista e militarista. 

    Em sua gestão, a águia norte-americana parece querer continuar a tradição de fazer guerra e promover conflitos.

    Mal assumiu o governo e Biden já chamou Putin de assassino, acusou chineses de genocidas, bombardeou a Síria, aumentou pressões sobre o Irã e promete intensificar as sanções contra a Venezuela, entre outras coisas.

    Nada de novo, é claro.

    Quando assumiu, Obama também prometeu uma reviravolta na política externa dos EUA. Prometeu negociações diplomáticas, políticas de formação de alianças, multilateralismo, etc., mas foi um dos mais belicosos e intervencionistas dos presidentes recentes.

    Em sua gestão, foi instituída a nova doutrina de segurança nacional, que coloca a luta pelo poder mundial contra China, Rússia, Irã e aliados no centro da política externa dos EUA. 

    Biden tentará desesperadamente implementá-la, remendando os danos feitos pelo protecionista Trump, nas relações com antigos aliados. 

    Tal política, no entanto, parece destinada ao fracasso, principalmente no que tange à China.

    E está destinada ao fracasso porque se trata de uma política dirigida para um mundo e uma China que não existem mais. 

    Com efeito, no complexo jogo de xadrez da disputa geopolítica mundial, a China está 4 ou 5 lances, pelo menos, à frente dos EUA. 

    Veja-se o exemplo da Europa. 

    É vital, para os interesses dos EUA, que o continente europeu seja um aliado dos norte-americanos, na disputa pela Eurásia com China e Rússia. Afinal, como dizia Zbigniew Brzezinski, “No Grande Tabuleiro de Xadrez”, quem controlar a Eurásia, controlará o mundo.

    Mas, em 30 dezembro de 2020, pouco antes de Biden assumir, a China firmou com a UE um novo acordo de investimentos, que refunda a relação econômica entre esses parceiros. 

    Trata-se do Comprehensive Agreement on Investments (“CAI”), o mais ambicioso acordo econômico já feito pela China. 

    Esse acordo, uma vez totalmente concluído e implementado, mudará substancialmente as relações econômicas entre a União Europeia e o gigante asiático.

    Com efeito, tal acordo estabelece novas regras para investimentos, principalmente na área de indústria de transformação e serviços.

    Há novas regras sobre transparência, concorrência justa, meio ambiente, relações de trabalho, disputas jurídicas entre Estado e investidores etc.

    Porém, o mais importante não é isso. O mais importante é que o CAI acaba com a exigência de realização de joint ventures e de transferência de tecnologia para os investidores europeus, nas áreas de grande interesse da UE, como indústria automotiva, eletroeletrônica, etc. 

    Ademais, o CAI abre, até certo ponto, o protegido mercado chinês de serviços financeiros, saúde privada, telecomunicações e serviços de nuvem informacional, entre outros, para os investidores europeus.

    É uma revolução. 

    Em especial, a extinção da exigência de joint ventures e de transferência de tecnologia muda tudo.

    Mas como a China concordou com isso, já que esse era um dos alicerces do modelo econômico chinês?

    Simples. A China não precisa mais de tais pré-condições, na maior parte das atividades econômicas.

    De fato, a China desta década é completamente diferente da China do início deste século.

    Naquela época, a China era basicamente uma grande plataforma de exportação para produtos concebidos e desenvolvidos nos EUA, Europa e Japão. Esses países se utilizavam da mão-de-obra muito barata e das legislações mais frouxas da China, especialmente na área ambiental, para aumentar a competividade de suas indústrias, nos grandes mercados do mundo. 

    A China agregava, entretanto, pouco valor a essa produção, notadamente em produtos de tecnologia mais avançada. No caso dos Iphones da Apple, por exemplo, a China agregava apenas cerca de US$ 2,00 em um produto cujo custo total era de cerca de U$ 40,00. Além disso, o mercado interno chinês, ainda muito reduzido e restrito, tinha pouca importância nesse ciclo econômico internacional. O consumo era realizado em outros países.

    Essa realidade não existe mais. Em apenas 2 décadas, a China conseguiu se desenvolver, em tempo histórico, cerca de um século. A China, de fato, consegue se desenvolver 50 anos em 5, como quis fazer Juscelino no Brasil.

    Em primeiro lugar, a China é, há vários anos, o país que mais produz patentes no mundo, bem como o país que mais investe em pesquisa básica. Os chineses têm hoje domínio pleno de tecnologias avançadas nas áreas portadoras de futuro, como telecomunicações (5G), transporte, eletroeletrônica, robótica, energias limpas, tecnologia da área espacial, tecnologias de defesa etc.

    Atualmente, mais de um quarto das startups do mundo estão na China e são empresas chinesas. Hoje, há várias companhias chinesas que produzem smartphones até mais competitivos que os da Apple. Em pouco tempo, essas companhias não precisaram mais de tecnologias importadas. Tudo será concebido, desenvolvido e fabricado lá mesmo. 

    A China é também, há vários anos, líder mundial em economia digital. O comércio eletrônico na China respondia, antes da pandemia, por 25% das transações totais. Nos EUA, esse número era de somente 11%. Na Alemanha, economia mais desenvolvida Europa, míseros 9%. Em 2018, a China já respondia, sozinha, por mais de 45% das transações comerciais eletrônicas do mundo. 

    Assim, a estratégia da exigência de joint venture e de transferência de tecnologia tornou-se obsoleta e desnecessária.

    Contudo, as mudanças na economia chinesa são mais profundas.

    A partir da crise de 2008, a China passou a investir maciçamente na redução de sua dependência externa e, sobretudo, na dinamização de seu mercado interno, mediante políticas de distribuição de renda.

    Pois bem, em 2019, o mercado interno chinês movimentou US$ 6 trilhões, um incremento de 42%, em relação a 2015. Isso mesmo, um aumento de mais de 40%, em apenas 4 anos.

    No mesmo ano (2019), o consumo interno nos EUA movimentou um comércio de US$ 6, 2 trilhões, somente um pouco mais que na China. Como o mercado de consumo chinês cresce bem mais que nos EUA, prevê-se que, neste ano, a China substituirá os EUA como o maior mercado de consumo do mundo.

    A UE e seus investidores estão de olho nesse mercado, que além de ser, agora, o maior e mais dinâmico do mundo, é o de maior potencial do planeta, pois a China tem quase 1,4 bilhão de habitantes, contra apenas 333 milhões, dos EUA.

    Firmas europeias e autoridades da UE estão, compreensivelmente, em êxtase com o CAI. Angela Merkel e Macron já deixaram claro a Biden que não participarão de “ações de contenção” contra a China.

    Mas essa nova geoestratégia econômica da China não ficará restrita à UE. Os chineses já iniciaram negociações de acordos semelhantes com o Japão e a Coreia do Sul, entre outros, países-chave para o controle do Leste da Ásia. 

    Combinados com os maciços investimentos da Nova Rota da Seda, tais acordos tendem a produzir um rearranjo das cadeias produtivas globais, nas quais China ocupará, aos poucos, o lugar dos EUA como polo de inovação e de consumo, além do polo da produção. 

    Não é algo inexorável, mas a China saiu na frente. Vem preparando o terreno para esse grande salto, desde 2008. Como afirmamos, está uns 5 movimentos adiante, no Grande Tabuleiro de Xadrez.

    Ademais, a conjuntura pós-pandemia favorece a China, país pouco afetado pela pandemia, que, ao contrário dos EUA e muitos países europeus, controlou muito bem o coronavírus em seu território. 

    A própria política generosa da China, assim como da Rússia, na produção e distribuição de vacinas contribui para um maior protagonismo do dragão chinês, no atual cenário. 

    Em contraste, Biden continua preso ao America First de Trump. 

    O governo norte-americano é detentor da patente de engenharia molecular que possibilita a produção de vacinas de nova geração, baseadas no RNA mensageiro. Poderia disponibilizá-la com o objetivo de gerar um grande esforço internacional para a produção maciça de imunizantes, como pede Lula. Prefere, contudo, aliar-se às suas “big pharma”, que produzem vacinas a preços exorbitantes. 

    Ao mesmo tempo, dedica-se a demonizar as vacinas dos BRICS. Defende os interesses do Império em crise, e nada mais. Promove conflitos e problemas; não soluções globais.

    A águia norte-americana e seus falcões governamentais são muito bons em fazer guerra, promover sanções e desestabilizar governos não alinhados com seus interesses, mas o dragão chinês e o urso russo são mestres no xadrez. 

    E têm paciência, muita paciência.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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