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Rogério Puerta

Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros

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Eu, feto. Devo nascer?

"Sempre soube que kardecistas e católicos consideram haver vida logo após a fertilização"

Feto (Foto: lunar caustic/Flickr (CC by 2.0))
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Eu, robô. Clássico da ficção científica do russo Isaac Azimov. Lá nos idos de 1950 descreveu magistralmente os dilemas existenciais de um ser humano sintético, artificial. E haja dilemas, muitos deles havia nas páginas de seu livro, regulamentos pétreos a um robô, jamais causar dano a um ser humano dentre o mais importante deles.

Feto, palavra masculina. Por óbvio há fetos com órgãos sexuais femininos nitidamente formados, perceptíveis, seriam portanto a feto, mas em língua portuguesa com o tempo e o uso da palavra poderão vir a ser a feta, assim, feminino. Estudante, artista, terminados em e ou a, tendem a ser unissex, invariáveis, o/a artista, o/a estudante. Palavras terminadas em o tendem ao masculino, mas enquanto língua viva, o uso do português fará eventualmente a inserção natural em próximos dicionários, um neologismo. A pilota, a sargenta, a padeira, a membra, a ídola, a Pablo também, talvez, quem sabe um dia?

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Eu, a feto, devo eu mesma nascer? Pergunta-se tímido o minúsculo ser desde profundidades intrauterinas, uma feto imersa em líquidos amnióticos e ruídos filtrados vindos de um exterior caótico e iluminado. Alguma débil e mínima luz lá chega, alaranjada, a que passa pela barriga expandida da mãe ansiosa, através de sua pele e camadas de gordura. Dar a luz, vir à luz, faça-se a luz!

A consciência da feto raciocinando a mil por hora, ativa. Já se identifica nítido seu sexo, um pensamento feminino portanto, mas não, não é a mente da feto agitada, é a de sua mãe ansiosa, sofrendo, sentido fraquezas nas carnes e na alma, em severa angústia. Uma mãe que tenta, mas não consegue esconder a sua raiva imensa, o rancor, ansiedade, desespero até. Pensa em morrer, em partir deste mundo, junto com o feto a nascer, que sequer foi examinado, que sequer fez saberem possuir ou não órgão reprodutor feminino.

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Toda a vez quando a feto pensa é a sua mãe de fato pensando, em rotina estressante, trabalhadora atribulada, esforçada e responsável, divagando nas profundezas da madrugada de seu quarto de dormir. Nem mais consegue conciliar o sono, meia-noite, duas, três horas da madrugada, não consegue dormir, pensa demais, muito rancor. Às cinco horas nem acorda direito, sua vida virou de pernas pro ar, sai pela cidade e anda nas ruas tal qual uma morta-viva, não quer mais viver, não tem mais qualquer ânimo em viver.

Eu, feto, devo mesmo vir ao mundo? Cá estou, aconchegada, aquecida, bem-nutrida, só ouvindo estes sons estranhos do exterior, do caos lá fora, pouco ouço canções de ninar, será que minha mãe me amará, me acolherá?

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Elas, ambas, bem sabem que o sêmen que gerou o embrião veio carregado de toxinas, de ódio, de perversidade, de insanidade, dor e sofrimento. Eu, robô. O dilema existencial perpétuo de Azimov.

Ela bem sabe. Jamais encontrará o progenitor, desde onde veio aquele sêmen jorrado em intenso orgasmo masculino impetuoso. Jamais encontrará aquele homem que brutalmente a violentou. Eu jamais encontrarei o meu papai.

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"Ajuda e atrapalha, às vezes mais atrapalha, isto percebi após quase uma década de espiritismo. Foi bom, uma época boa, eu estava em paz comigo mesma, era uma mulher serena, andava pelas ruas tranquila, sem medo, sabendo quem eu era. O kardecismo me ajudou muito naquela época, eu lá pros meus vinte anos, adorava os livros deles, lia muito, estudava, gostava do grupo, das reuniões semanais no bairro, das campanhas de caridade que fazíamos todas juntas, um grupo legal de mulheres jovens".

"Sempre soube que eles consideram haver vida humana logo na concepção, na fertilização após o ato sexual, os católicos também. Eu sempre soube que todos eles veem o aborto como um assassinato, há poucas exceções, são raros aqueles que acham que podem haver algumas peculiaridades, mas mesmo assim reputam o ato tal qual um assassinato. Tipo ter de fazer a difícil Escolha de Sofia, sacrificar um filho para salvar outro".

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"Então seria um assassinato, homicídio, fetocídio ou algo assim. Permite-se o assassinato, me informei a respeito. Pena de morte no Brasil inclusive, a Lei do Abate quanto a derrubada após tiros de advertência de aeronaves civis pela Força Aérea. Na prática não precisa ser tão explícito, gerar polêmica, se você consegue a suspensão de um medicamento vital ao doente, o sujeito dele dependente por óbvio vai ao óbito. Permite-se assassinato. Alguém ensandecido avança ameaçador portando uma enorme faca, você com uma enxada na mão dá-lhe uma peia na cabeça, por acaso racha-lhe o crânio ao meio".

"Quando eu estiver bem velhinha sofrendo que só em leito sem poder me levantar pra defecar, com inúmeros tubos e fios ligados em meu corpo todo, quando ocorrer, torço muito para que haja uma pane elétrica qualquer nos aparelhos do hospital e eu me vá de vez deste mundo. Eutanásia, a morte por um bem maior, por uma causa humanitária. Não será o escolher entre um menor e um maior sofrimento portanto uma boa e justa causa?".

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"Complica mais, bem mais. Nada, nada é simples quando se envolve religião, fé. Fé cega, faca amolada, alguém já disse em alguma crônica de jornal perdida por aí, um novo sentido para a expressão histórica. As crenças apregoam a necessidade de resignação frente ao sofrimento, algumas até mesmo a martirização, a imolação, como queiram chamar. Parece que se o sujeito for capaz de tacar gasolina no corpo e botar fogo em si, ainda mais se suportar sereno tudo sem dar um pio sequer de reclamação, então tal sujeito será o mais fiel e resoluto de todos, um exemplo aos outros. Este fiel o Deus onisciente e onipresente abraçará em especial".

"Então uns dizem que se o bebê imprevisto nascer em ambiente desfavorável isto será bom para o karma da mãe, do bebê também, ou para as suas avaliações em um Juízo Final magnânimo e justo, ou sabe-se lá se isto será bom para qual outra religião que seja também amante da dor e do sofrimento carnal em vida".

"Ainda mais. A mãe, ou o pai, não importa, mas a mãe em especial deve ser capaz de criar a criança, dar amor incondicional, educar, nutrir o bebê, mesmo que tudo e todos estejam em meio às adversidades extremas. Imagine-se uma guerra nuclear, sem água nem pra beber, a mãe sem leite no peito, sabendo que seu bebê sofrerá muito até vir a certamente perecer em cruenta agonia".

"Um sofrimento infantil em meio às chagas, piolhos, carrapatos, desnutrição, desidratação, moscas, em meio ao ruído insuportável dos bombardeios, de uma atmosfera tóxica. Mas não, a mãe deverá não se acovardar, não pode fugir aos desígnios sagrados, deve parir o neonato, deve tudo suportar com resignação e fé, assim dizem".

"Não durmo bem há semanas, estou raivosa, admito, minha mente a mil por hora. Não consigo conciliar o sono, um inferno na Terra. Estou confusa, sequer raciocino direito, imagino o feto na barriga falando comigo, conversando, como se criança já fosse. Às vezes até fala como uma pessoa adulta, às vezes me xinga de palavrões dos mais sujos e ofensivos. Estou com raiva, deve ser por isto tudo".

"A criança me lembrará do estuprador, chegará dia em que perguntará sobre o pai, preciso então arranjar um padrasto e falar que é o pai dela, mas não posso ter filhos agora, minha vida vai entrar em colapso, virará de ponta-cabeça, nem mais estou na idade adequada, será gravidez de alto risco. Estou tão abalada, com rancor, violentada, tenho asco, repulsa, nojo, penso no estuprador e me revira o estômago, tenho enjoos imediatos, o resto do meu dia se arruína, passo mal, nem mais sinto o gosto nem o prazer dos alimentos".

"Não quero ser mãe de novo, não darei conta, não suportarei, prefiro que caia logo um raio em minha cabeça, que eu encontre uma bala perdida por aí, há tantas, por que uma bala perdida não me acerta bem no meio da testa de uma vez por todas?".

"Sei que estou abalada e tenho alucinações, pesadelos horrendos às madrugadas".

"Estou tão quentinha aqui, eu, a feto. Será que é bom mesmo ver esta luz lá fora, ouvir estes ruídos, nascer? Fiz previsões, se nascer quem sabe seja adotada, eu menininha, mas não posso ser otimista quanto a este aqui ao meu lado, meu irmãozinho gêmeo, ele menino, preto, mais um de dezenas em creche de periferia lotada de crianças órfãs lá deixadas. Provável ele será um renegado, não escolhido, somente mais um, crescerá perturbado, cheio de dúvidas, mais dia ou menos dia será atraído fortemente à vida das ruas no bairro do orfanato de nossa periferia, experimentará o crime, precocemente as drogas pesadas, vai sofrer muito mais do que um cão sarnento de rua. Será ele nada mais do que um pequeno mártir, mais um, ele martirizado, imolado, sofrerá de forma atroz e indizível, mas dizem que ganhará enormes pontuações em seu karma espiritual".

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