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Cássio Vilela Prado

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Franz e a liberdade

Numa insólita manhã, Franz foi despertado pelo tilintar inconfundível da fechadura de sua cela e ao som metálico e retumbante da voz do diretor do presídio onde ele estava preso, havia mais de doze anos, por um crime que não cometera: o assassinato da graciosa Elizabeth

Numa insólita manhã, Franz foi despertado pelo tilintar inconfundível da fechadura de sua cela e ao som metálico e retumbante da voz do diretor do presídio onde ele estava preso, havia mais de doze anos, por um crime que não cometera: o assassinato da graciosa Elizabeth (Foto: Cássio Vilela Prado)
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Numa insólita manhã, Franz foi despertado pelo tilintar inconfundível da fechadura de sua cela e ao som metálico e retumbante da voz do diretor do presídio onde ele estava preso, havia mais de doze anos, por um crime que não cometera: o assassinato da graciosa Elizabeth.
Ainda com os olhos semiabertos e a face bocejante, Franz ouviu as inesperadas palavras do diretor:

- Você, Franz K, a partir deste momento, por determinação judicial da Suprema Corte do Estado, considere-se um homem livre. Junte as suas tralhas e me acompanhe até à diretoria para os procedimentos finais.

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Sem compreender direito a repentina ordem proferida pelo prepotente diretor, Franz sentiu uma intensa barafunda em sua atividade mental pueril, a realidade se entrelaçava com a ficção. A única luz que ele percebia naquele instante, embora ofuscada pela sua visão turva, era a de um pequeno ponto amarelo numa das paredes de sua cela, efeito dos primeiros raios de sol daquele inimaginável amanhecer.

- Não estou entendendo nada, meu senhor! Como assim? O destino me reservou trinta anos trancado na cadeia... Nem advogado eu tenho, nem preciso mais. Não me tire daqui, diretor! Não tenho para onde rumar e sei que não vou conseguir viver lá fora. Tudo lá é esquisito e perigoso. Não posso, diretor! Que coisa medonha! Mas será possível?

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- Acompanha-me! Imediatamente! Eu sou representante do Estado e ordens superiores são inquestionáveis, principalmente para pessoas delinquentes como você.

Antes de ser condenado e preso pelo assassinato de Elizabeth, Franz era uma pessoa quase feliz, pois precisava de muito pouco para viver.

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Solitário, morava num quarto de pensão no subúrbio da capital mineira. Não tinha família nem religião, com uma formação escolar apenas rudimentar. Era simplório e ensimesmado. Contava superficialmente com poucos colegas com quem se esbarrava na empresa onde trabalhara como entregador de pizzas. Do tipo curto e grosso, Franz não apreciava gracejos dos outros, tampouco os fazia. Alguns detentos mais próximos diziam que Franz nascera no interior do Estado, não tinha mais parentes vivos e que fora obrigado a tentar uma sorte melhor na capital após a morte de sua mãe, tragicamente assassinada pelo seu pai, durante um surto alcóolico psicótico, com o seu subsequente suicídio.

Pudico e avesso a quaisquer contatos humanos, principalmente de caráter sexual, até que conheceu Elizabeth em sua residência, no início de uma madrugada fria, durante uma de suas entregas. Alguma coisa aconteceu com Franz ao ver a bela e sedutora Elizabeth...

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- Está muito frio aí fora, entre um pouco, por gentileza. Tome uma xícara de chá quente, vai lhe fazer bem. Será um prazer acompanhar-me até que eu termine de comer um pedaço de pizza. Vivo muito solitária, o meu marido nunca chega antes do amanhecer e dorme até ao meio-dia, quando se arruma, almoça e vai trabalhar. Hoje ele é um empresário muito rico e não se importa mais comigo.

Diante da suavidade dessas doces palavras, Franz percebeu que se tratava de um suplício emocional sincero dirigido à sua pessoa. Pela primeira vez em sua vida, sentiu ter alguma importância verdadeira para alguém. Sem perceber, o incerto e aventuroso campo do desejo humano se sublevava naquele surpreendente momento.

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Embora permanecesse tímido e atônito, meio hipnotizado também pela beleza estonteante de Elizabeth, foi, aos poucos, puxado pela casa adentro pelas mãos macias da gentil e carente dama.

Da sala de jantar até a suíte de Elizabeth, uma paixão avassaladora tomou conta do corpo e da alma de Franz... Entregue ao prazer, perdia a virgindade do seu corpo e do seu espírito libidinal adormecido em meio aos encontros ardentes e os êxtases de amor de sua primeira experiência sexual orgástica... Regozijando, Franz desfaleceu-se ao lado de Elizabeth, sem a menor noção daquilo que viria.

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De repente, ao alvorecer, o leve ranger da porta da suíte de Elizabeth anunciava o iminente crepúsculo e o destino execrável de suas vidas.
Com uma espátula de pizza erguida em punhos, o boêmio marido desferiu uma sequência de golpes fatais no pescoço de Elizabeth, enquanto Franz, assustado e impotente, abandonou o cenário trágico escancarado à sua frente; pulou a janela lateral da suíte, aterrissando no perfumado jardim de Elizabeth. Tempo apenas para arrebatar uma única rosa vermelha, derradeira lembrança deste trágico encontro de amor, antes de partir em sua velha motocicleta.
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Por um instante, Franz pensou em voltar e tentar acudir Elizabeth. Mas isso não era de seu feitio, Franz era um espectador da vida. Contudo, durante o seu percurso de fuga, vinham-lhe à mente as fortes imagens ardentes de seu corpo junto ao de Elizabeth, o seu primeiro, único e verdadeiro amor, encontro fugaz e eterno, encerrado tragicamente, porém, com um efeito indelével na sua miserável existência.

À tarde do mesmo dia, Franz foi encontrado pela polícia, algemado e preso em seu quarto de pensão. Autorizado somente a pegar a sua carteira de bolso e alguns objetos pessoais. As câmeras de vigilância das residências de luxo são implacáveis...

Julgado e condenado sumariamente a trinta anos de prisão, nada pôde fazer o seu defensor público nomeado pelo juiz do caso. A promotoria e os advogados de acusação contratados pelo marido de Elizabeth foram arrasadores.

A Franz, restaram-lhe dias e noites de perplexidade e paulatina resignação. Logo se adaptou de forma plena e dócil à vida no presídio, onde quase não falava com os demais presos, entretanto, devido ao seu comportamento solidário e subserviente aos companheiros de seu novo lar, tornou-se uma criatura requisitada por todos do local, pau pra toda obra, um invejável ratinho skinneriano bem-sucedido.

No entanto, a cada noite antes de adormecer, Elizabeth visitava vigorosamente os seus pensamentos em lembranças vívidas e se tornou a principal personagem de seus sonhos noturnos. E isso já lhe bastava para viver. A realidade mundana externa não lhe interessava mais.

Absolutamente.

Destarte, a contragosto seu, Franz acompanhou o diretor até a sua sala. Assustadiço, assinou alguns documentos e partiu. Rumava ao léu, apenas com uma trouxa feita com um lençol de seu catre prisional. Tornou-se um zumbi pelas ruas e praças, diuturnamente, naquela sociedade estranha e injusta, a que nunca conseguia se adaptar, lugar de encontros inevitáveis e perigosos, cheio de desencontros, de vida e de morte.

Desesperançoso, pensou: se pelo menos Elizabeth ainda vivesse! Paradoxalmente, ainda que morta, Elizabeth parecia ser a sua única esperança, aquela que um dia o fez se sentir humano. Mas Franz não queria mais ser humano. A cada instante vivido, tudo ao seu redor se desmoronava. Dentro de si, nada mais tinha consistência.

Depois de vários dias perambulando pelas ruas da cidade e numa insistência querelante diária para falar com o Desembargador do Tribunal, talvez a sua última cartada, enfim conseguiu:

- Doutor, trago aqui comigo a minha última esperança. Imploro ao Senhor: eu quero voltar para a cadeia! Não posso mais viver sem ela. A sociedade aqui fora é a minha sentença de morte, é a minha agonia permanente. A minha vida virou um trem de doido!

- Senhor, quem controla as nossas vidas é o Estado. A liberdade individual é uma grande ilusão. Hoje você é um homem recuperado, pois pagou a sua pena que foi reduzida devido ao tempo já cumprido e pelo seu ótimo comportamento na prisão. Portanto, agora está habilitado a conviver em sociedade novamente. O seu processo já foi arquivado.

Na verdade, a meta principal do Estado era reduzir a superpopulação carcerária.

Diante da argumentação do proeminente e insensível Senhor da lei, e já se sentindo um insubsistente reles, marca substancial de seu ser no mundo, Franz assistia ao seu desejo de liberdade dentro do cárcere se esvair por completo.

Desta feita, Franz desceu a pomposa escadaria do Tribunal e dirigiu-se à residência da falecida Elizabeth. Eram onze horas. Atordoado e reminiscente, Franz se recordou, de forma vaga, de que o assassino de Elizabeth dormia até ao meio-dia, quando almoçava e saía para o trabalho.

À espreita, postou-se à beira da entrada principal da mansão. Na sua mão direita, escondida dentro do bolso, segurava um estilete pontiagudo.
Finalmente, as grades do portão externo da residência foram abertas pouco depois das treze horas. Imediatamente, Franz se dirige ao encontro do carro do empresário assassino, com a mão direita erguida, portando a sua arma de lâmina afiada. Tanto fazia viver ou morrer. Absorto, ao destino entregou a sua aflição.

Dois tiros mortais ensurdecedores escapam de uma pistola semiautomática. O segurança do empresário acertou letalmente o coração de Franz.
De forma irrevogável, Franz conquistou a sua liberdade. Deixou de ser aquele nadica de nada humanoide que um dia experimentou ser. Nem era mais um espectador da vida. Seria, pois, o epílogo de seu drama existencial um corolário fantasmático maldito do assassinato de sua mãe e o suicídio de seu pai que retornava diferente, selando o seu destino e pondo fim à triste dinastia K?

Dentro de sua carteira, além de poucos documentos, os policiais peritos encontraram uma pétala de rosa desfigurada e envelhecida, sem cheiro nem cor, totalmente sem vida, assim como agora estão o jovem Franz e a sua amada Elizabeth.

Tudo então estava candidamente perfeito. O benevolente Estado se encarregou do seu sepultamento.

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