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Ramatis Jacino

Doutor em História Econômica pela FFLCH/USP e professor da Universidade Federal do ABC

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Globo, Borba Gato e os donos da história

A história está sendo escrita e reescrita cotidianamente - por opressores e por oprimidos - nos museus, nas universidades, nas escolas, na mídia, pelos governantes e legisladores e, acima de tudo, nas ruas; às vezes com palavras, às vezes com concreto, às vezes com fogo

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A Globo, que nos últimos tempos tentava se redimir do seu passado racista, debatendo a discriminação racial e abrindo espaços para jornalistas, artistas e intelectuais negros, dá um passo atrás e resolve incorporar um relato histórico conservador e superado há décadas, que atribui a extinção da escravidão à ação benemérita da família Orleans e Bragança. Estreia no dia 9 de agosto, a sua primeira novela “pós pandemia”, cujo título é “Nos tempos do imperador”. Na trama, segundo os trailers veiculados, Dom Pedro II é um estadista apaixonado por seu país e convicto abolicionista. Mentira tosca, que reforça a tese infantil de que a Proclamação da República foi uma retaliação dos grandes fazendeiros, que se opunham ao fim da escravidão.

Enquanto essa poderosa rede de comunicação pratica mais esse colossal atentado contra a história dos discriminados, um grupo de jovens, autodenominados Revolução Periférica, promove um micro atentado, tendo como alvo um dos símbolos da dominação e subjugação dos povos originários pelos europeus e seus descendentes. 

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A estátua, objeto do ataque, é uma obra de valor estético duvidoso, produzida por Júlio Guerra, o mesmo autor da estátua Mãe Preta, entronizada no Largo do Paissandu, que romantiza a tragédia das mulheres negras, obrigadas a amamentar os filhos de suas escravizadoras, em detrimento de seus próprios filhos. Manuel Borba Gato, assim como os demais bandeirantes, foi um facínora, estuprador e escravizador de indígenas. Seus crimes se ombreiam com os de Domingos Jorge Velho, mercenário contratado pela metrópole portuguesa para ajudar a exterminar N’Angola Jamga.Imediatamente se instaurou uma polêmica em torno daquela iniciativa, que se assemelha a ações realizadas nos Estados Unidos e na Europa, na esteira do movimento Black Lives Matter, que se insurgem contra a iconografia elogiosa a escravizadores, colonizadores e notórios racistas. Curioso que a novela da Globo, que certamente será assistida por aproximadamente 100 milhões de pessoas, falseia a história e insulta os ancestrais de 55% da população brasileira; até agora, não causou polêmica alguma.

Estes dois fatos, que parecem não estar interligados, em verdade integram algumas das grandes polêmicas da historiografia mundial. Quem é o dono da história? Quem tem legitimidade para narrá-la? Existe neutralidade nas interpretações históricas? O senso comum já admite que a história é contada pelos vencedores e por quem tem poder econômico e político. Contudo, as vezes os oprimidos subvertem essa regra e constroem outra narrativa como, por exemplo, o que ocorreu no longínquo ano de 1971, quando o poeta gaúcho Oliveira Silveira propôs substituir o 13 de maio, como data comemorativa dos negros brasileiros, pelo 20 de novembro e o Grupo Palmares de Porto Alegre, protagonizou o primeiro ato alusivo ao Dia Nacional da Consciência Negra que se tem notícia.

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As formas de apropriação da história pelos oprimidos podem se dar a partir de iniciativas como a daqueles negros gaúchos ou contrapondo a violência real praticada contra seus ancestrais com a violência simbólica, representada pela queima ou derrubada de estátuas daqueles que sintetizam a invasão, o massacre e a escravização de nações e povos milenares. 

Há quem acuse aquele grupo, até agora desconhecido, de provocadores de direita, agindo justamente no dia em que mais de 400 cidades em todos os estados da federação (e no exterior), se mobilizaram pelo impeachment de Bolsonaro. Há quem sustente serem militantes sinceros, contudo equivocados, pois praticantes de um radicalismo desnecessário. 

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O que não é possível negar é que atos dessa natureza colocam o debate histórico no centro, constroem pontes com o presente e questionam uma sociedade baseada na defesa da supremacia branca, que ao tornar heróis os responsáveis pela opressão do passado, legitima a opressão presente. 

Derrubar estátuas, denunciar a farsa da liberdade concedida pela princesa branca e cristã, exaltar os verdadeiros artífices da libertação e refutar as narrativas que mascaram o caráter criminoso da família real são faces de uma mesma luta, que explicita o presente injusto e constrói um futuro igualitário. Futuro que só será forjado com o conhecimento do nosso passado deplorável. 

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Ainda não temos elementos para afirmar a orientação ideológica do grupo que incendiou a estátua do famoso bandeirante, nem suas reais intenções. Acredito que foi uma iniciativa de ativistas que se insurgem contra aquele ícone do massacre dos indígenas em São Paulo. Contudo, se foi uma provocação da direita, o tiro saiu pela culatra, pois é fato que aquele ato leva a reflexão acerca de uma sociedade intrinsecamente injusta, racista e construída a partir do extermínio das populações autóctones e do sequestro de milhões de africanos, submetidos a três séculos e meio de escravidão. 

A história, portanto, está sendo escrita e reescrita cotidianamente - por opressores e por oprimidos - nos museus, nas universidades, nas escolas, na mídia, pelos governantes e legisladores e, acima de tudo, nas ruas; às vezes com palavras, às vezes com concreto, às vezes com fogo. 

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