Governo Lula e o Brasil - Percepção reduzida à economia e às finanças e novas possibilidades
É excelente momento para que o terceiro governo Lula, usando sua capacidade de comunicação com o povo
As histórias das sociedades humanas são como vetores resultantes de diversos outros, muitas vezes de direções opostas e com intensidades distintas. Os antropólogos Meyer Fortes e Edward Evans-Pitchard (“African Political Systems”, 1940) acentuam que são também influenciadas por critérios do que deveriam ser e não do que verdadeiramente ocorre.
Os meios de comunicação, tradicionais e virtuais, dominados por empresas e interesses estrangeiros, também trabalham para a alienação da realidade e para colocar fora da ação das próprias pessoas, suas possibilidades como resolver as dificuldades.
É o uso do pensamento mágico, das religiões. Algo de sebastianismo na ação política nacional, que espera um Messias. Esta situação é a mais comum, representa 90%de todo período de existência do Estado do Brasil.
Apresentamos algumas informações e comentários sobre o Brasil atual, do terceiro Governo Lula, ligando-os à nossa história e ao que está acontecendo no mundo de hoje.
O SÉCULO XXI
Nosso século começa como herdeiro das oito crises – de 1987 a 2000 – provocadas pelo sistema financeiro internacional e as “soluções” apresentadas pelas mesmas finanças no denominado “Consenso de Washington” (1989): sob máscaras diversas transferindo ativos públicos e mesmo privados em todo mundo para o sistema financeiro internacional e promovendo a concentração de renda e de bens.
A ideologia neoliberal se tornou o “pensamento único”, a partir das desregulações financeiras da década de 1980. Além de se colocar como global, esta ideologia fracciona as demandas, retirando suas condições específicas de cada país, para lhes dar a falsa universalidade. Afinal, os índios do Brasil estão submetidos ao mesmo constrangimento dos peruanos? dos venezuelanos? dos estadunidenses? e dos “índios noruegueses”? As mulheres sofrem as mesmas opressões no Oriente Médio? na América do Norte? no Japão e na Nova Zelândia?
Ao homogeneizar as questões, sem suas condicionantes nacionais, todas se colocam dependentes de um pensamento místico, algo transcendente, onde a posição humana é subalterna, incapaz. É o triunfo do neopentecostalismo, a religião que mais cresceu sob a ideologia neoliberal.
A GRANDE QUESTÃO BRASILEIRA
O Brasil é o mais rico país do mundo. Há poucos que lhe ombreiam, porém a estes ora lhes falta o clima, ora igual abundância de águas doces, ora espaço a ser ocupado pelo crescimento da população...
Tratar da Questão Nacional como nossa prioridade deixou de ser a pauta política deste o processo denominado “redemocratização”, que ocorreu nas duas últimas décadas do século XX. Já escrevemos em algumas oportunidades que, em nossa análise, não foram as “esquerdas” que promoveram a “redemocratização”, mas as “finanças internacionais”, incomodadas com o nacionalismo econômico e político dos três governos militares, continuadores do tenentismo de vertente direitista. Esta condição os diferencia do primeiro e do último governo do ciclo militar, mantendo, no entanto, todos semelhantes no arbítrio, nas mortes e torturas.
O nacionalismo no Brasil, naquele momento histórico dos anos 1980, tinha a liderança inconteste do engenheiro Leonel Brizola, que sofreu todo tipo de perseguição e oposição, tanto dos militares quanto das oposições do período 1964-1985. Com a morte de Brizola, em 21 de junho de 2004, a Questão Nacional e o nacionalismo saíram da pauta política brasileira. Restou uma indefinível “democracia”, simbolizada pelo voto obrigatório!
Este espaço foi buscado por Jair Bolsonaro a quem faltavam, principalmente, a convicção nacionalista, provada pela opção neoliberal de sua política como presidente, e competência e compreensão das matizes políticas, pois via no neoliberalismo a oposição anticomunista.
Se tivesse Bolsonaro mínimo conhecimento de história saberia que o comunismo, representado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), embora apoiador, se opôs à efetiva independência das colônias europeias na África, buscando a dominação ideológica. Vejam-se, como exemplo, as mortes de Eduardo Chivambo Mondlane (Moçambique) e de António Agostinho Neto (Angola), e o tratamento dado a Julius Kambarage Nyerere (Tanzânia). Também combateu, com os Estados Unidos da América (EUA), a constituição da primeira manifestação de poder multipolar, a Conferência de Bandung, em 1955.
Portanto, enrolar-se na bandeira nacional, fazer deste símbolo da Pátria uma fantasia, não transforma pessoa alguma em nacionalista. O espaço do nacionalismo, a Questão Nacional colocada como prioridade na política brasileira, ainda está sem liderança e sem partido em 2023. Quase duas décadas após a morte de Brizola.
A UNIÃO NACIONAL
Paulo Nogueira Batista Junior, ex-diretor-executivo no FMI, em Washington, e ex-vice-presidente do NBD, o banco dos BRICS, em recente entrevista ao programa “Pensamento Crítico”, do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA), da Universidade Federal de Santa Catarina, apontou a estatura e o prestígio internacional do presidente Luiz Inácio Lula da Silva como pontos positivos para transformação do Brasil, mas demonstrou suas dúvidas pelas “travas” existentes não só fora, mas “dentro do Governo”, que mantém pessoas das equipes de Bolsonaro e de Temer que são “liberais e conservadores”. Além da mídia totalmente hostil ao nacionalismo.
Porém como constituir o movimento que coloque a Questão Nacional como aglutinadora da opinião pública e da participação ativa do povo para as soluções de nossos problemas? Ou seja, a Questão Nacional para a soberania brasileira, que se estende pela autonomia tecnológica, pelo domínio da comunicação de massa, pelas forças armadas como elemento da defesa nacional e não de salvadores políticos da Pátria. A Questão Nacional para construção da cidadania, até agora a única área da ação positiva do governo, e assim mesmo parcialmente, com elevação do salário mínimo e elevação do piso para o Imposto de Renda, colocando mais dinheiro em circulação.
Mas que problemas seriam esses?
Primeiro acabar com a falácia do mal de um Estado intervencionista. A iniciativa privada só existe quando há o Estado para impeli-la e garanti-la. O capital privado não gosta de risco. Quando investe é porque viu a possibilidade de ganho. A falência vem da má gestão, o que é muito comum, ou de não ter os dados corretos ou adequados do mercado que disputa. Quantos privatistas só se deram bem atuando no Estado?
O avô do atual presidente do Banco Central, Roberto de Oliveira Campos, foi debochado em artigo no Jornal do Brasil por Shigeaki Ueki, quando presidia a Petrobrás (1979-1984), mostrando que duas atividades, altamente rentáveis, um banco (Irmãos Guimarães) e uma refinaria de petróleo (Refinaria de Manguinhos), tinham falido nas mãos daquele ex-ministro do Planejamento do presidente golpista, Marechal Humberto Castelo Branco.
SHIGEAKI UEKI
O segundo problema é a falácia da questão energética.
Entre 29 de maio a 1º de junho de 2012, ocorreu a XVI Conferência Nacional dos Legisladores e Legislativos Estaduais (CNLE), em Natal (Rio Grande do Norte). A ela compareceu ex-ministro das Minas e Energia e ex-presidente da Petrobrás Shigeaki Ueki cuja fala transcrevo do informativo da UNALE – União Nacional dos Legisladores e Legislativos Estaduais.
“A indústria do petróleo não está no fim. Os acionistas da Petrobrás podem manter suas carteiras porque vão ter benefícios no futuro” – afirmou Ueki, para quem o debate sobre a realização de investimentos em energia limpa (solar, eólica, biocombustíveis etc) precisa ser considerado na sua relação de custo-benefício.
O ex-ministro lembrou que, quando iniciou sua carreira, já se falava que o petróleo era uma fonte de energia em extinção. Observou que, no entanto, o combustível continua sendo meta para a maioria das nações. Citou, como exemplo, os EUA, que realizou investimentos pesados na produção de combustível do xisto, que permitiu ao país aumentar suas reservas de petróleo.
De acordo com Ueki, o Brasil precisa aumentar o consumo de energia per capta para garantir vida melhor à população.
“Atualmente, cada brasileiro é responsável pelo consumo de 1.300 kg de energia por ano. A liderança pertence aos estadunidenses, cujo consumo é de 7.500 kg por ano contra 4.000 kg de alemães e japoneses. Os argentinos consomem 250 kg/ano a mais do que os brasileiros (1.600 kg/ano)”.
“Para se ter uma ideia, se o Brasil dobrar seu consumo de energia, alcançaremos o mesmo índice atual dos portugueses” – afirmou Ueki, acrescentando que a matriz energética renovável brasileira supera os 30% recomendados pela Agência Internacional de Energia (AIE).
“Já somos PhD na geração de energia limpa. O Brasil produz 45%, acima do recomendado pela AIE. O que precisamos, mesmo, é de energia mais barata para garantir uma indústria mais competitiva e melhores condições de vida para o nosso povo”.
Sempre atacado por corrupção, Ueki em nada difere, como agente público, da maioria absoluta, quase a totalidade dos governantes em toda história do Brasil, à exceção de dois que morreram sem deixar heranças: Getúlio Dornelles Vargas (morreu mais pobre do que nasceu) e Leonel de Moura Brizola (investigado por 21 anos de governos militares e pelos sucessores de suas gestões de governador em dois estados brasileiros, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, único na história).
Não é por acaso que Vargas e Brizola são os estadistas brasileiros que mais se associam ao nacionalismo.
LULA E A QUESTÃO SOCIAL
Verdade seja dita que Lula sempre colocou a Questão Social, os três pratos de comida ao dia, como objetivo de seus governos.
No entanto faltou quem lhe esclarecesse que sem Soberania a Questão Social se esvai, não se sustenta. O golpe aplicado na sua sucessora Dilma Rousseff é mais um exemplo. O que foram os governos Temer e Bolsonaro senão a desconstrução do trabalho, dos direitos trabalhistas, dos direitos previdenciários, da assistência à saúde em meio a grande crise mortal do coronavírus (Covid-19), da ausência do estado na educação e na cultura? A enorme onda de privatizações?
Mesmo os três governos nacionalistas do período militar tiveram suas obras como alvo do ataque com os governos neoliberais que se seguiram a 1990. Algumas ainda permanecem, fragilizadas, outras desapareceram com as privatizações ou simples extinção.
A Questão Nacional é o meio de trazer o povo para conhecer o Brasil, a realidade brasileira, os problemas brasileiros, entender que o prato de comida três vezes por dia depende do trabalho, nas indústrias, no desenvolvimento tecnológico, na auditoria cidadã da dívida, que só ocorreu uma única vez em nossa história, no Governo de Getúlio Vargas. Sem Soberania não há Cidadania.
Entender que é o povo e não os banqueiros quem deve dirigir o Banco Central, a definição dos juros e metas de inflação compatíveis com o nível do desenvolvimento brasileiro é um primeiro passo. Os EUA dão o exemplo. Após a Guerra Civil (1861-1865), com a economia arrasada, os bancos ficaram livres para emitir moedas; houve verdadeira inundação inflacionária que alavancou a industrialização estadunidense e só veio ter fim, em 23 de dezembro de 1913, quando, já nação industrializada e rica, pode criar, no modelo federativo, o FED - Sistema de Reserva Federal, composto por um Conselho de Governadores (Federal Reserve Board), pelo Federal Open Market Committee (FOMC) e pelos doze presidentes de Federal Reserve Banks regionais, localizados nas maiores cidade do país, além de numerosos representantes de bancos privados estadunidenses e diversos conselhos consultivos (Pierre Melandri, L’histoire des Etats-Unis depuis 1865, Nathan, Paris, 1984).
O mundo está em acelerada transformação da unipolaridade, instituída pelas finanças apátridas a partir do Consenso de Washington (1989) e do fim da URSS, em 1991, para a multipolaridade, impulsionada pela República Popular da China (RPCh) com a Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI).
É excelente momento para que o terceiro governo Lula, usando sua capacidade de comunicação com o povo, mostre o futuro que o Brasil pode ter no sistema multipolar, erigindo a Questão Nacional como verdadeiro programa de governo, ou prosseguir mantendo a submissão aos interesses financeiros estrangeiros, transferindo para capitais em paraísos fiscais as decisões políticas que nos cabem.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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