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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Heráclito, por que não podemos entrar no mesmo rio duas vezes?

"A vazante das poças forma lagoas de sonhos, que, com os olhos bem abertos, transbordam em rios lúcidos, cujas águas resvalam as margens com gratidão, já que, como cicatrizes, as margens sempre trarão às águas a lembrança das muitas pedras que o rio carrega em seu leito", escreve Flávio Vassoler

(Foto: Luanna Falcão)
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As mágoas começam pequeninas, como um charco.

Melancólicas, as folhas cadentes do outono apodrecem no fundo do charco.

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Quando o charco das mágoas transborda, ele dá vazão à mais triste lagoa. Nela, não há sequer um cisne com seu pescoço de alça de xícara, as rãs já não coaxam, mesmo os grilos desistem de cricrilar. 

A lagoa das mágoas é como um punho cerrado: o alagado se lembra (ele rememora, ele remói), porque já não consegue esquecer. O alagado não se lembra de que o punho cerrado tem o tamanho do coração (isso ele faz questão de esquecer).

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Quando a lagoa das mágoas transborda, ela dá vazão ao rio do ressentimento. 

Cindidas como as bordas de uma ferida purulenta, as margens do rio do ressentimento sonham com a trégua (o prenúncio da reconciliação?) das cicatrizes. O ressentimento, no entanto, denega a renovação própria à correnteza: no rio do ressentimento (o rio em que Heráclito de Éfeso não se banhou), as águas refluem em redemoinho rumo ao epicentro da dor. 

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O pesadelo (isto é, o sonho) do rio do ressentimento é a paralisia do inverno. Radicalmente encapsulada em si mesma - como uma boca que se devora, como um estômago que se digere -, a dor se coagula na geleira do ódio. 

Ódio sólido como dentes que rangem, água dura como a vontade (ou, pior, como a necessidade) de vingança. 

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No inverno polar da lei de talião, o ódio como radical paralisia do amor se cristaliza em sadismo. Ora, o anatomista dos afetos Friedrich Nietzsche, em expedição pela geleira do ódio, já dissera: “Quem vive para derrotar o inimigo precisa do inimigo sempre vivo”. Sendo assim, a geleira do ódio, como o deserto do outro, pressupõe a reversão do sadismo em masoquismo - é quando o cativo taliônico enfim descobre que odeia a si mesmo e que só faz mutilar-se. No ápice de sua solidez, a geleira do ódio prenuncia o derretimento do suicídio. 

As águas dos afetos, felizmente, podem revogar a lei da gravidade como destino. O calor do amparo - quem pede ajuda trinca a crosta de gelo - começa a derreter o ódio e a evaporar as mágoas e o ressentimento. 

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O vapor da esperança forma nuvens.

O derretimento do ódio e a evaporação das mágoas e do ressentimento prenunciam a chuva, que pode lavar com o perdão.

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A chuva que renova forma poças, não charcos.

A vazante das poças forma lagoas de sonhos, que, com os olhos bem abertos, transbordam em rios lúcidos, cujas águas resvalam as margens com gratidão, já que, como cicatrizes, as margens sempre trarão às águas a lembrança das muitas pedras que o rio carrega em seu leito.

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