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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Hugo Cortez Crocia Barros, um sociólogo na resistência

Se há um traço que define a pessoa de Hugo Cortez é a generosidade

Hugo Cortez Crocia Barros (Foto: Reprodução)
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Em tempos mais recentes, tenho me revoltado contra a morte de amigos e personalidades fundamentais. E diante dos elogios póstumos que recebem, me pergunto: por que não se contaram os feitos notáveis das pessoas quando estavam vivas? Apesar de, muitas vezes, não temos outra opção, e penso no súbito falecimento do escritor e pensador José Carlos Ruy, autor de um fecundo Dicionário Machado de Assis, até hoje inédito, apesar de tais perdas, sinto que devo continuar com uma galeria de amigos que são essenciais. 

Em comentário ao texto anterior sobre José Antonio Spinelli, o ilustre cientista José Ademir Sales de Lima, professor titular da USP no Departamento de Astronomia, disse que eu teria inaugurado “um novo gênero literário, cujo nome precisa ainda ser definido. Sei apenas que não pode ser Obituário de Viventes! Quem sabe, ouso ainda sugerir: Memorial de Viventes Inesquecíveis, onde cada ser humano escreveria o seu... Mas quem sabe, talvez exista um nome ainda mais adequado”.

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Na falta de melhor nome, direi que escrevo sobre Companheiros de Jornada. Ou então que escrevo Elogios em Vida de Militantes que Atravessaram a Ditadura. Deles posso dizer o que escrevi no romance “A mais longa duração da juventude” em uma página: 

“Acompanho os fios brancos de suas cabeças se tornarem frágeis, quebradiços, e me falo e percebo que alguns não piscaram no alto. No píncaro do tempo, não decaíram, como se fossem uma revolta contra a biologia, contra a organização da vida que se desorganiza e se desintegra quando chega ao fim. Parodiando Goethe no poema Um e Tudo, eles foram atravessados pela alma do mundo, e com ela lutaram sem descanso, como se vivos pudessem ter a eternidade. Tomaram outras formas, é certo, mas mantiveram a permanência do ser da juventude”.

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Hoje, me refiro a Hugo Cortez Crocia Barros.  

Ele sofreu duas prisões, das quais a mais pesada foi em 1972 no DOI-CODI, um dos mais temidos centros de prisão e tortura na ditadura. Hugo voltava de um encontro de estudantes de Ciências Sociais, em Belo Horizonte, e foi preso antes de chegar ao Recife. E agora, como se fosse nada, pulo esse mau pedaço. Para dizer: 

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Se há um traço que define a pessoa de Hugo Cortez é a generosidade. É inesquecível para mim que num fim de ano, ele já doente e a falar com dificuldade, me deu de presente o volume da Poesia completa e Prosa de Joaquim Cardozo. Ele sabia que o bem seria precioso para mim, e que eu não estava tão bem de dinheiro para me dar tal preciosidade. Estou com o volume diante de mim, do qual não li tudo, e fastioso escolhi raros e belos poemas.

Hugo Cortez é filiado ao Partido Comunista do Brasil desde 1985. Mas eu o conheci na época de Ação Popular. Ele morava no Pina, em um prédio antigo e de paredes espessas, sem elevador. Eu morava perto, mas em Brasília Teimosa, que muitos diziam ser favela, mas que para mim era um lugar para estar ao lado do povo, naquele ideal de Ação Popular. Ali eu estava no entanto deslocado, porque era leitor de Proust, Joyce e Lukács, amante de música popular brasileira e de jazz. E só bebia cachaça com os pescadores, escondendo o que eu conhecia do mundo lá fora. Então, nos sábados à tarde, eu subia, talvez fugisse para o apartamento de Hugo, onde os pais dele nos suportavam a ouvir os discos de jazz na sala. Alto. Mas como era bom o alimento do espírito regado a doses de uísque ótimo, que seu Nelson, pai de Hugo, guardava para as visitas. Percebem? Eu era um imortal naquele sentido do Barão de Itararé, pois não tinha onde cair morto. Mas Hugo me recebia como um ilustre a me dar lições de músicos que eu não podia ouvir nem sabia da existência. E com uísque e queijos finos até as sombras da noite. Acontecimentos assim, generosidade de tal altura, nunca esquecemos.

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Hugo Cortez é poliglota, lê e fala bem inglês, francês, espanhol e galego. Mas com tal preparo, como falam os populares no Recife, sofre do Mal de Parkinson. O seu irmão Nilson Cortez, geógrafo respeitado em todo o Brasil, me informou que há mais de 20 anos Hugo sofre da Doença de Parkinson. Me assegurou que isso não é genético. E eu fico sem saber qual a causa, se vem das torturas da prisão, ou se de muito amor, desamor sofrido, como tantos de nós ou todos passamos. Mas acima, abaixo ou ao lado de tais dificuldades de fala e  locomoção, e vista embaçada, vem o dado maior da sua resistência. A sua curiosidade intelectual não cessa. Eu lhe fiz ver isso em um telefonema. Ele me respondeu que possuía a mesma vontade de conhecer que aos 20 anos de idade. Depois, pude ver: a sua curiosidade intelectual é sua razão de viver. É a sua identidade. A de ser um resistente. 

Concluo com a citação favorita de Hugo Cortez, que li na sua página do Face: Homo sum, humani nihil a me alienum puto. “Sou um homem e a mim nada de humano é estranho”. Isso para mim dá a sua medida. Na alegria e na tristeza, resiste aos golpes, e não se queixa.

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