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Valéria Dallegrave

Jornalista, escritora e dramaturga

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Indiozinho da terra

Ele nasceu da terra, e da mãe humana transpassada pelas dores. Depois de parir, com alívio e um pouco de alegria até, a mãe embalou o filho junto ao seio. O indiozinho sabia que pertencia a terra. Não lhe doeu o ar, mas o cimento ao redor. Sentiu que algo estava profundamente errado

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Ele nasceu da terra, e da mãe humana transpassada pelas dores. Depois de parir, com alívio e um pouco de alegria até, a mãe embalou o filho junto ao seio. O indiozinho sabia que pertencia a terra. Não lhe doeu o ar, mas o cimento ao redor. Sentiu que algo estava profundamente errado.

Chamaram-no Vitor, desejando-lhe muitas vitórias. Se tivesse nascido anos atrás, antes da era do cimento, seu nome talvez fosse Teçá, Olhos Atentos; Araquém, Pássaro Que Dorme; Ubiratan, árvore de Madeira Forte.

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Ele não sabia sequer dar nome à cor dos pinheiros, mas sorriu quando os viu pela primeira vez. Olhos assombrados pelo mundo, sabia o que era da terra e o que não era. A cor das árvores brotou em seu coração e o pássaro que dormia ali acordou, cantando palavras que ele não conhecia: Verde! Oby! O menino provou a palavra com gosto de mel em sua boca ainda em botão. Iraê, mel! O pássaro deu ainda nome a sua mãe: Iramaia, Mãe do Mel! Mas a mãe não sabia a língua dos pássaros.

O pai olhou o indiozinho com olhos de outono, reconheceu-se no filho, e não sorriu. Não tinha reservas de riso, precisava poupar as forças para a viagem à cidade, de onde sairia o sustento dos próximos meses, com a venda do artesanato. As mulheres e as crianças sim, riram muito. Riram do seu cabelo atravessado, da mãozinha gorda, dos pequenos olhos de terra, e ele respondeu com sua maior riqueza, o riso cristalino. Renascia a alegria da terra no riso compartilhado. O indiozinho sentiu-se seguro no seio da mãe, e provou do riacho de água da vida.

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Daquele riacho beberia até se fartar, até começar a nomear as coisas, até aprender a caminhar sozinho no cimento. Depois, seria mais um índio arrancado da terra, obrigado a transformar suas raízes em arcos e flechas para vender, tentando resistir à inundação de uma língua que não era a sua, com nomes próprios e impróprios, verbos infinitivos e pronomes impessoais que roubavam o direito de ser...

Quando adulto, seria mais um desterrado, com saudade indizível de não-sei-quê, plantando alguns sonhos nas frestas do concreto. Mas não foi assim. O Homem-que-passava lhe roubou o direito de sonhar, de crescer, roubou a voz, a vida.

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O pássaro viu o Homem tocar o rosto macio com mão de navalha, nada pôde fazer e esperou. A carícia da navalha cortou a carne doce, sem malícia dos nomes do mundo. Se já soubesse falar, o indiozinho gritaria, pedindo socorro: Mãe! Mãe! Mas não. A boca rosada abriu-se em um choro curto de não saber onde a dor, de não ter como agarrar o abrigo do colo materno, chão que fugia.

O sangue quente do filho desceu pelo corpo da mulher. Deslizou no grito de angústia abafado pelo cimento gorduroso da rodoviária. Um grito calado sob tantos pés encardidos, que fugiam apressados para todos os lados, fugiam da morte que eles mesmos invocaram na indiferença de cada dia.

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O indiozinho sem voz voltou ao silêncio da terra, que o acolheu também em seio de mãe. Na partida, ele encontrou a palavra: Mãe! Mãe! O pássaro, antes de alçar voo, gritou: Mãe! Mãe!

No cimento frio do chão, a mãe sentiu o calor desaparecer do corpo pequeno em seus braços. Molhada de sangue e lágrimas, ela tentou de todas formas, com mãos que eram poucas, com amor que era muito, segurar a vida que escorria, um esforço vão.

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O Indiozinho, já nas asas do pássaro, agora podia tudo e escolheu um nome de árvore para si: Ubiratã, Madeira Forte. Ele quis pedir à mulher que não chorasse, mas sabia do que não podia ser evitado. Assim, deu outro nome à mãe: Lindas Lágrimas, Arabi, e quis dizer mais a ela, mesmo que não ouvisse...

O pássaro alçou voo e cantou uma melodia triste e bela. Quem soubesse a língua dos pássaros ouviria: Chove! Chove, mãe! Tu és a terra!

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* O texto faz parte do livro Crônicas da Menina

... É dedicado ao indiozinho Vitor, de apenas dois anos, assassinado de forma cruel e covarde em uma rodoviária de Santa Catarina.

As palavras indígenas usadas são, por motivos de clareza fonética, do dialeto Tupi. O propósito do uso das palavras indígenas é mostrar a beleza da cultura indígena brasileira. O recurso de usar a participação de animais que pensam, falam e agem como humanos é encontrado nos relatos dos mitos kaingang, tribo da qual Vitor fazia parte (também chamados bugres ou botocudos). Os Kaingang estão entre os cinco grupos indígenas mais numerosos no país, encontrados orginalmente na região entre São Paulo e Argentina. Suas terras tem sido alvo de invasão, dilapidação e grilagem, como as de outros grupos indígenas.

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