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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Inveja de sete faces

"A inveja é um de nossos afetos mais arraigados, podendo irromper a qualquer momento. Que atire a primeira pedra quem nunca invejou", escreve Vassoler

(Foto: Pixabay)
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Hidra de sete cabeças, a inveja é um de nossos afetos mais arraigados, recorrentes e sorrateiros, podendo irromper, furibunda como um gêiser ou sutil como um soslaio, a qualquer momento e em qualquer lugar. Em verdade, em verdade lhes digo: que atire a primeira pedra quem nunca invejou.

A inveja mais comezinha volta seu olhar oblíquo e (mal) dissimulado para o que o outro tem — não poucas vezes, para aquilo que o outro acabou de adquirir. Como o jardim do vizinho é sempre mais verde aos olhos do invejoso, o antídoto para tal inveja pandêmica parece estar no orgulho de João ao estacionar em sua garagem um Gol perolado um ano mais novo que o Gol de José, que saíra com seu carro da concessionária apenas uma semana antes. Ocorre que, quando o invejoso consegue tapar o buraco sem fundo de sua inveja com a terra fértil da competição e do despeito, o outrora invejado passa a invejar, e José descobre, com um prazer masoquista (porque temporariamente castrado), que a inveja também pode ser um prato que se come frio. “Ah, daqui a um ano eu troco o meu Golzinho, aí esse tal de João vai ver o que é bom pra tosse!”. 

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Óleo lubrificante do capitalismo, tal inveja comezinha desfere seus dardos venenosos, via de regra, contra aquilo que o outro tem a mais: cargos de maior prestígio; salários mais polpudos; namoradas/os mais belas/os; sexo frequente e frenético — neste ponto, o invejoso comezinho faz questão de abreviar seu inventário infindo com um “etc. do etc.”. 

Vale frisar que a hierarquia inocula a inveja, na mesma medida em que é pela inveja inoculada (quem nasceu primeiro: o ovo ou a galinha?). À apinhada, explorada e sufocante base da pirâmide hierárquica, resta invejar, de longe e com o pescoço espichado como um periscópio, o ar fresco e rarefeito que somente aqueles e aquelas encastelados no clube seleto e excludente do cume podem respirar. E como os mandachuvas parecem inalcançáveis para a legião dos que soerguem a base da pirâmide com o dorso vergado, os subordinados podem usá-los para marcar território em meio ao narcisismo de suas pequenas diferenças: “Pois fique você sabendo, João, que o dr. Carlos, chefe do nosso chefe de repartição, discorda terminantemente de suas ideias”. Se, por um acaso, o dr. Carlos fizesse parte do rol de muy amigos de José, autor da frase (e do despeito) anterior, o dr. Carlos (“Carlinhos”, para os íntimos) já não seria citado como o penhor da disputa entre José e João, já que a inveja precisa da distância içada por um pedestal para poder admirar. A inveja, a bem dizer, jamais admira, isto é, ela nunca mira de perto (“ad-“), a não ser para apunhalar. A inveja, na verdade, telemira, isto é, ela mira de longe (“tele-“) para tentar escamotear o despeito.

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Se Dostoiévski estivesse vivo, a genialidade de tão ilustre contemporâneo nos fustigaria com tamanha intensidade (por que ele é assim tão talentoso, e eu não sou?), que necessitaríamos de um sem-número de filtros para contemplarmos, sob a guarnição de óculos escuros, a luz do Sol. “Ah, mas Dostoiévski é hors concours, ele está acima da carne seca e além de todos e cada um de nós, meros mortais!”. Aparentemente desprovida de inveja, tal idealização generosa só faz içar o objeto de culto às alturas de um pedestal (lá onde os santos são exilados…), de modo que idealizadores e idealizadoras não possam descobrir que, antes de ser endeusado como Dostoiévski, Fiódor duvidou de si mesmo um sem-número de vezes, achou que não conseguiria compor suas obras ou terminá-las a tempo, que não conseguiria exprimir devidamente suas ideias, e mesmo quando a segurança que advém de uma longa estrada já trilhada lhe dava mais guarida, Fiódor não tinha certeza sobre se conseguiria escrever algo mais relevante do que os livros que ele próprio já escrevera. Se entreouvissem os lamentos humanos de Fiódor entre as frestas da estátua de Dostoiévski exilada em seu pedestal, idealizadores e idealizadoras descobririam uma trajetória humana repleta de errâncias e hesitações, trajetória que só se consolidou, ao longo da estrada e ao fim do percurso, por uma mescla e uma sanha de missão e entrega, das quais, inúmeras vezes, Fiódor duvidou. Fica claro, então, que idealizadores e idealizadoras, sub-reptícia e paradoxalmente invejosos, não querem medir em Fiódor aquilo que eles próprios não fizeram (aquilo que nós não amamos, aquilo de que não quisemos abrir mão) para que Fiódor se tornasse Dostoiévski. Assim, para o bem não tanto da idealização, mas daqueles e daquelas que idealizam, é bom — a bem dizer, é primordial — que Dostoiévski esteja a sete palmos do chão. (Seria o caixão o pedestal dos pedestais?) A inveja nos ensina que a idolatria, aparentemente vivaz, pressupõe o cheiro do sepulcro para admirar. Vivo, Dostoiévski nos humilha. Morto, Dostoiévski já não nos ameaça. “Viva Dostoiévski!”. 

Invejados pela esmagada maioria, aqueles e aquelas que resguardam, com 1001 sentinelas, o cofre e o cume rarefeitos da pirâmide só para si e para os seus podem se descobrir desprovidos de si mesmos se não tiverem algo ou alguém a quem invejar. Em nossa sociedade doente e prenhe de distinções, a inveja não apenas insufla o desejo; a inveja é o próprio desejo. Sendo assim, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche se mostrou um exímio legista da inveja, ao dissecá-la com o bisturi do seguinte aforismo: “Quem vive para derrotar o inimigo precisa do inimigo sempre vivo”. 

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Sintomaticamente, invejosos contumazes são exímios observadores e sabem precisar, com a calibragem acurada pelo ressentimento, a distância burocrático-salarial entre Fulano e Beltrano, além de poderem dizer, quase sem margem de erro, se (e quanto) Sicrano engordou/emagreceu. 

Óleo lubrificante do capitalismo, a inveja suga sangue do acúmulo, do excesso, do ganho — numa palavra, da mais-valia. Tal inveja também pode ocorrer por procuração. Ora, quem é que já não viu pais e avós se gabando dos feitos de sua prole em face de outros pais e avós, que, sob uma capa de risonha bonomia e cordialidade, retrucarão com as conquistas de seu próprio clã? 

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— Rapaz, se você visse meu filho jogando bola, você me diria na lata: “O Coringão acaba de achar um novo centroavante!”. Não é porque é meu filho, não, José, mas o Joãozinho joga muita bola, viu?!

— Que baita coincidência, João! Eu tava pra te dizer que o Zezinho passou ontem na peneira do São Paulo, tricampeão mundial! É alegria paterna pra mais de metro ou não é? 

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— Menina, se você visse as notas da minha filha na escola, você cairia de costas e me diria: “Essa moça já tem lugar na USP!”. Não é porque é minha filha, não, Rafaela, mas a Laurinha é inteligente que só, viu?!

— Bens a Deus, Paula! Mas você sabia que a minha filha largou a USP para fazer a Unicamp, não sabia? Quem sabe a Laurinha não pega umas dicas com a Rafaelinha, né?

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— Comadre, se você visse como meu neto é bom marido para a minha nora, você ficaria de boca aberta e me diria: “Mas que homem prestativo, meu Deus!”. Não é porque é meu neto, não, Dirce, mas o João é bom coração que só, viu?!

— Bens a Deus, Marlene! Mas será que ele levanta antes da cantoria do galo pra fazer café da manhã pra esposa? O José, meu neto, faz isso todo santo dia. 

Se a inveja da vitória nos parece compreensível, como entender a inveja da derrota (que se quer vitoriosa)? Nesse sentido, eis um fragmento de um diálogo que entreouvi, certa vez, numa pracinha em que dois aposentados jogavam dominó: 

— João, eu não aguento mais, compadre, são 10 remédios todo santo dia! Pressão, diabete, artrite, artrose, gota, gastrite, labirintite, osteoporose, amnésia e sonambulismo, Deus que me perdoe! 

— Ora, Zé, cê não tá esquecendo o Viagra aí, não? Mas isso não é nada, compadre! Bota mais 5 ovos nessa cesta aí, Zé, e cê tem a minha lista diária de medicamentos: hemorroida, gases, varizes, cegueira noturna e insônia!

Certa vez, o escritor irlandês Samuel Beckett sentenciou, galopando o dorso do paradoxo, que era preciso “errar melhor”. Seu João e seu José, por sua vez, sentenciam que é possível invejar pior. 

Mas a inveja mais encarniçada, aquela que ara o rosto com vincos e entorta o canto da boca com ressentimento, se volta não contra o que o outro tem, mas contra o que o outro é, contra sua personalidade, suas vivências e sua memória. Afinal, José até pode ter um carro mais novo que João, mas, por mais que se esforce, José não tem como ficar com os olhos marejados diante do Sol poente que se esgueira entre as montanhas como uma tartaruga a enfiar a cabeça no casco, se seus pais há muito falecidos não o levaram, quando menino, a um mirante da serra do Mar e não afagaram seu cocuruto enquanto o crepúsculo diluía o arco-íris pelo céu como a criança que esparrama argila pelo quintal e molda o mundo à imagem e à semelhança da alegria de seu caos.

Não à toa, o autor alemão Johann Wolfgang von Goethe sentenciou que a felicidade reside na personalidade. Ilhado pelo ressentimento, o invejoso contempla a personalidade do outro, de longe e de esguelha, como uma fortaleza inexpugnável. Mas, se não é possível vencer a guerra — um invejoso contumaz sempre pensa (e se ressente) em termos de perdas e ganhos —, encontrar frestas e flancos na muralha do outro para vencer uma batalha já o faz ganhar o dia. É assim que, anos depois de João ter se divorciado da esposa e, enfim, se sentir reconciliado com o luto do relacionamento, José, seu muy amigo e confessor, lhe conta que Maria — “E eu não já não consigo guardar esse segredo comigo, João, ele lateja em mim há uma década!” — tivera um relacionamento extraconjugal com Escobar, colega de faculdade de ambos. 

Ora, depois de tantos anos, mentiras sinceras nos interessam. Então, por que exumar um cadáver já enlutado? 

Enquanto João escarafuncha e remói a ferida que a tanto custo fora suturada, José chega a ranger os dentes de despeito (e euforia) sob a fachada triste, pesarosa e solidária de seu rosto amigo. 

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