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Alfredo Attié

Doutor em Filosofia da USP, Titular da Cadeira San Tiago Dantas e Presidente da Academia Paulista do Direito, autor de Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito

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Janaína Paschoal e a manifestação democrática dos estudantes: Temos Constituição. Sabemos disso?

Quem protagoniza e prega a antidemocracia não pode continuar a participar do espaço e do tempo da democracia.

(Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)
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2023 era para ser um ano realmente novo. Mas ainda não começou. Muita coisa está segurando sua arrancada, assim como – não por mera coincidência – o andar do novo Governo Democrático que elegemos.

Pode ser mera impressão, determinada pelo fato de que tínhamos muita expectativa de mudança, em decorrência do resultado da eleição. Achávamos que a página seria virada e que viveríamos um tempo de renovação automático. Mas isso não ocorreu Por quê?

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Gostaria de refletir sobre isso, usando um exemplo tirado do noticiário da semana. Uma professora está retomando seu trabalho em importante universidade brasileira, após quatro anos de afastamento para exercer o mandato de deputada estadual. Estudantes, representados pelo tradicional Centro Acadêmico XI de Agosto, manifestaram-se, dizendo que ela não era mais bem-vinda, porque a Universidade de São Paulo havia se transformado e ficado muito grande para essa professora, que lhes causaria mal-estar sua presença e atividade na docência. Ex-Diretor da Faculdade em que a professora leciona escreveu artigo, contestando a manifestação estudantil, salientando o pluralismo que marcaria a história da instituição, em relação ao qual seria incompatível a proibição de seu exercício profissional. Sendo secundado pela atual Direção da Faculdade de Direito e por outros Professores e Professoras de alguns dos importantes Departamentos da São Francisco. A professora criticou estudantes, que, por sua vez, reiteraram sua expressão de descontentamento, afirmando que seria preciso ser intolerante com o intolerante.

Posso prever que esse debate não vai cessar nunca. Seja porque essa infinitude das questões a que não se concede solução é típica de nossa cultura de impasses políticos e de recusa de enfrentamento das questões até as últimas consequências. Seja, ainda, porque a professora – com o perdão do trocadilho, deverá penar para retomar a confiança do corpo discente – como demonstram casos antigos e novos de sua incompatibilidade com membros determinados do corpo docente. 

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Há, por exemplo, o caso do professor que, em 2014, resolveu depositar em cartório sua declaração de amor pela ditadura civil-militar  (chamada, estranhamente, de “movimento” – sic – por um ministro do STF) e passou a ser recebido em sala de aula com tambores, batucadas e discursos de estudantes que resolveram – a meu ver, corretamente (veja-se este artigo, que publiquei na Folha/Uol  – passar a ele e à sociedade a clara mensagem de que ir contra a democracia não é tolerável, sobretudo quando essa postura é levada por um professor à sala de aula. Outra manifestação, mais antiga, foi a de estudantes que fizeram preencher todos os espaços da sala de aula com latas de marmelada, para dizer que metáfora seria cabível para o concurso público que havia alçado determinado professor à titularidade da disciplina de direito romano, de cujo resultado discordavam.

Essas e outras histórias vão migrando, aos poucos, para o campo do folclore das Arcadas. Rimos, hoje, mas não podemos esquecer de outras casos de conflito, testemunhas de que a história dessa e de tantas outras instituições de ensino brasileiras estão permeadas de atos que – diferentemente dessas manifestações estudantis – apontam para a dificuldade de se afirmar o caráter pluralista dessas mesmas instituições: docentes e discentes que colaboraram com ditaduras, que apoiaram ou participaram de atos antidemocráticos, que escreveram e falaram contra as liberdades civis, de um lado; e docentes e discentes que foram perseguidos por ditaduras , exilados, presos, torturados, mortos.

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A par disso, o Centro Acadêmico XI de Agosto acrescentou uma importante informação histórica, em sua recente manifestação: o pluralismo nunca existiu nem de fato nem de direito, pois o povo, em sua diversidade, não teve acesso, a não ser excepcionalmente, ao território do ensino superior. No Brasil, havendo uma legião de excluídos e uma miríade de injustiças, como dá exemplo o fato de o grande escritor, jornalista, filósofo, escritor, ativista político, líder abolicionista, jurista e advogado de escravos Luiz Gama somente ter recebido reconhecimento e diploma que merecia, bem mais de cem anos após seu falecimento, em 1852. Recusaram o ingresso do jovem pobre e negro no curso de Direito, mas ele seguiu nos corredores da Faculdade, ajudado por alguns estudantes, dos quais descendem, por sua coragem e seu apego à igualdade, liberdade e solidariedade, aqueles que hoje marcam posição diante do retorno da professora.

Não digo que, no plano ideal – portanto, longe do que foi e, em certo sentido, apesar das cotas e outras políticas afirmativas, ainda é a instituição universitária brasileira – professores e professoras que se manifestaram contra os estudantes não estejam certos, mesmo que parcialmente: há um dever e um direito de liberdade de cátedra, assim como de pluralidade democrática, aberta a divergências de opinião e de posicionamento político de docentes e discentes. É importante salientar que as professoras e os professores que se manifestaram, além de excelentes profissionais do direito que são, primam pelo comportamento e pela expressão democráticos – todos e todas tendo sido, inclusive, protagonistas de importantes atos de resistência contra o regime - que chamei de anticonstitucional - que esteve no poder até o fim de 2022, e que contava com a adesão da professora que ora retoma sua função na Faculdade.  

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Entretanto, do ponto de vista não apenas histórico e social, mas igualmente político e jurídico-constitucional, a razão está com estudantes. O espaço público não pode tolerar a presença daqueles que falam e agem contra a própria configuração jurídico-política da vida comum, ou seja, não aceita e não pode aceitar os que praticam discursos e ações anticonstitucionais. A tolerância, afirma a Constituição, depende da adesão ao regime do Estado Democrático de Direito. A sociedade jurídico-política é o resultado da palavra e da ação, configuradas e marcadas pela diversidade que é ínsita à própria existência e liberdade de cidadãs e cidadãos. Cidadania é o pertencimento ao espaço público, em que direitos e deveres são exercitados, em meio a um debate aberto e plural de ideias, desejos e projetos de vida comum. Contudo, a cidadania não aceita o discurso e a prática que a negam: o elogio e a adesão a um regime anticidadania.

Tenho ressaltado, desde o início de minhas manifestações de resistência e afirmação jurídico-políticas contra o regime que se instalou no Brasil, esse prefixo “anti-.“ Ele não se confunde com o prefixo de uso comum no direito, o “in-.“ A prática de inconstitucionalidades e a sua teoria se tornaram, lamentavelmente, naturalizados, no Brasil. A ponto de um outro ministro do STF ter grafado a estranha expressão “estado de inconstitucionalidade,” isto é, acolhendo no vocabulário do direito uma monstruosidade, que é a permanente infringência à Constituição. Fica pomposo o termo na página de um livro ou de uma decisão judicial. Mas não devemos esquecer que a sua realidade é a de prejudicar a vida e os direitos mais básicos de muita gente, que se submete a esse estado de abuso e de espoliação de garantias.

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Mas o anticonstitucional é diferente e mais sério. Trata-se não apenas de atentar contra a Constituição, mas sobretudo de o fazer de modo proposital, estabelecer mesmo um comportamento militante contra os direitos, deveres e políticas públicas que ela determina em seu texto. 

A inconstitucionalidade merece um reconhecimento por decisão de autoridade pública e uma determinação de correção, para restauração da integridade da carta político-jurídica. Há processos específicos para proteger a Constituição e aquilo que determina, que seguem seu curso – não isento de muitos obstáculos – nos tribunais e juízos brasileiros. A inconstitucionalidade se corrige no interior do direito e da sociedade política.

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A anticonstitucionalidade é, ao contrário, estado antipolítico e antijurídico, que deseja se impor pela força contra o direito e contra a sociedade política. Uma palavra ou um ato anticonstitucionais não são jurídicos nem políticos, mas, antipolíticos e antijurídicos. Estão voltados a destruir a estrutura político-jurídica da sociedade. Não podem ter lugar no espaço da política e do direito, na esfera pública. Aqueles que são agentes da antipolítica e do antidireito – arquitetos e agentes do regime anticonstitucional – não podem ser tolerados no espaço público. Isso, aliás, é uma lição antiga da democracia, que permitia ao povo, reunido em assembleia, votar a exclusão do espaço e do tempo da política daquelas pessoas que atentavam contra a existência da democracia – que era e deve voltar a ser sinônimo de política e de direito –, por meio do ostracismo. Quem protagoniza e prega a antidemocracia não pode continuar a participar do espaço e do tempo da democracia. 

Isso não quer dizer que não possa continuar a agir na esfera privada, com liberdade e plenos direitos – desde, é claro, que não venha a ser condenado pela prática do que, hoje, o direito brasileiro chama propriamente de crime contra o estado democrático de direito. Mas não pode participar da vida das instituições públicas, propagar suas ideias anticonstitucionais e realizar seus atos anticonstitucionais no espaço e no tempo que devem ser preservados para o exercício plural e legítimo da política e da justiça. Espaço e tempo de inclusão, de tolerância, de cuidado, de igualdade, de liberdade, de construção de vínculos e de livre curso de debates sobre projetos e desejos em relação ao viver comum.

Estudantes, portanto, têm direito de dizer quem gostariam de ter como professores e professoras. Podem marcar sua posição. 

Não podem, é claro, proibir o exercício profissional de ninguém que legitimamente ostente o título de docente, cuja exclusão ou vedação dependem de um processo legítimo, em que garantias fundamentais de defesa são exercidas e devem ser protegidas com absoluto rigor.

Basta ler a manifestação do Centro Acadêmico para notar com clareza que não há nenhuma pretensão de proibir. Estudantes manifestam democraticamente sua opinião e o que sentem. Não requerem proibição nem exclusão. É tipicamente uma expressão legítima da política e do direito, dentro daquilo que a Constituição prevê e preserva. Sequer há ofensa. Pois o que se diz é discordar das posições da professora, que ela, inclusive, pode desejar sustentar e explicar diante do corpo docente e discente da Universidade. Por exemplo, pode explicar porque escreveu no Twitter que “Se o Sr não parar com essas postagens, os militares vão para a rua para retirar o Sr, com base no artigo 142 da Constituição Federal…” (sic, em https://twitter.com/JanainaDoBrasil/status/1245718987830419456), esclarecendo sua interpretação do artigo 142 e se considera a existência de uma prerrogativa militar ir para a rua retirar o Presidente da República. Esse esclarecimento seria fundamental, para entendermos com um pouco mais de clareza qual o conteúdo antijurídico que alimentava a atuação de pessoas que cometiam crime contra a Paz Pública ou até contra o Estado Democrático de Direito, ao se manifestarem em volta de quartéis por “intervenção militar” (segundo afirma o artigo 286, parágrafo único, do Código Penal, especificamente), ou que realizaram os atos de invasão e destruição do dia 8 de janeiro. Havia uma expectativa de que o artigo 142 pudesse ser invocado? Quem seria responsável por essa expectativa? Quem teria pregado a possibilidade de tal atuação – evidentemente antijurídica? Que tipo de sanção, se alguma, deve sofrer quem pregou tal tese anticonstitucional? De natureza moral ou jurídico-administrativa, civil ou penal, em último caso?

Muito bem, para que o ano de 2023 se inicie e para que o regime constitucional volte a imperar no Brasil há necessidade de nos desvencilharmos de obstáculos sérios à construção democrática em nosso País. 

Estamos diante da oportunidade desse debate sério. Estudantes e jovens brasileiros e brasileiras nos oferecem essa chance de iniciarmos um caminho novo. Que esse percurso, assim como o Novo Ano e o Novo regime Democrático, seja feliz para todas e todos!

  




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