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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Martírio e mutação

No dia 26 de abril de 1986, uma usina nuclear em Tchernóbil, cidadezinha ao norte da Ucrânia, próxima à fronteira com a Bielorrúsia, fez a madrugada soviética vomitar um sol púrpura

(Foto: Luanna Falcão)
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I. Para além do que está além do bem e do mal?

 No dia 26 de abril de 1986, uma usina nuclear em Tchernóbil, cidadezinha ao norte da Ucrânia, próxima à fronteira com a Bielorrúsia, fez a madrugada soviética vomitar um sol púrpura. Com a fuga de todos os criminosos da tabela periódica liderados pelo urânio, o céu foi tomado de assalto por um arco-íris mórbido. 

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 A catástrofe de Tchernóbil liberou uma quantidade de material tóxico-radioativo 500 vezes maior do que a explosão atômica que devastou Hiroshima. 31 pessoas foram imediatamente pulverizadas quando da explosão de um dos reatores da Central Nuclear Vladimir Ilitch Lênin. O governo soviético precisou evacuar 116.000 pessoas de suas casas. (Num átimo, todas as raízes humanas se derretem, como se os nômades mutantes, já respirando com as guelras de Tchernóbil, estivessem nadando no bojo de uma colher gigante que, incendiada pela chama plúmbea do reator, vai mesclando dióxido de urânio, heroína e óxido de európio.) 

 Cidades inteiras reduzidas a escombros e silêncio. 

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 Diálogos insólitos entre os edifícios que ainda não ruíram. 

 Poças d’água turvas como suco gástrico. 

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 Baratas fosforescentes. 

 Vagalumes pra lá de confusos – afinal, quem somos nós agora? 

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 Quem imagina que o caos se deixa quantificar não está em condições de sentir em cada fímbria do corpo o desespero das autoridades soviéticas diante de seu Frankenstein. Se a névoa de Tchernóbil não fosse contida em sua metástase Europa afora; se a chuva de Tchernóbil transformasse o Mar Negro em petróleo; se o Atlântico passasse a ser povoado por hidras de 7 cabeças como rezavam as crônicas das grandes navegações, a altíssima tecnologia, há muito despida da pele de cobra da superstição religiosa, arremataria a história humana com a mesmíssima fábula do Apocalipse. 

Sendo assim, que fazer?

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 Mikhail Gorbatchov, então Secretário Geral do Partido Comunista, envia a Tchernóbil uma comissão de cientistas internacionalmente renomados para que a catástrofe seja avaliada em toda a sua gravidade e para que medidas emergenciais sejam tomadas com a urgência urgentíssima dos decretos de Stálin. 

 Encabeça a comissão o proeminente químico inorgânico Valeri Alexievitch Legássov, membro emérito da Academia de Ciências da União Soviética.

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 Diante da impotência da comissão para desvelar as causas do acidente e propor ações que possam conter a hecatombe em meio ao labirinto soviético de (contra)informações, Legássov vai sendo tomado pela angústia: milhares de vidas são ceifadas com a mutação dos dias. [Quem quer que já tenha visto as fotos dos bebês bicéfalos de Tchernóbil pôde sentir em cada fímbria do corpo a agonia (e a culpa?) de Legássov enquanto o cientista testemunhava a versão soviética de Guernica com os corpos cubistas sendo derretidos como sombras sobre o não-lugar das casas, ruas e calçadas.]

 No dia 27 de abril de 1988, dois anos e um dia após a catástrofe, Valeri Alexievitch Legássov, em sua residência em Moscou, enfia uma bala na cabeça. (O réquiem de Legássov nos insinua que ainda é possível acreditar na dignidade humana.) 

Mas o que é que nós poderíamos dizer sobre os demais mártires de Tchernóbil que, como Legássov, foram expostos a altíssimas concentrações de radioatividade para tentar conter o incêndio no reator? 

Em sua Genealogia da moral, Nietzsche sentencia que o ímpeto por compaixão e abnegação só faz amansar e enfraquecer o ser humano, essa besta-fera ávida por liberdade irrestrita e vontade de poder, esse animal alado sedento pela irradiação de si por sobre o dorso prostrado dos demais. É assim que, para Nietzsche, a mão cristã que deixa de desbravar a selva da vida para servir de cajado para todos aqueles que choram e rangem os dentes não passa de niilismo, isto é, biofobia e drenagem da força vital para a realização de fins alheios a Zaratustra, o super-homem que, como Colombo, naufraga sua própria tripulação para brindar a humanidade com a eureka do Novo Mundo. 

 pulsão corpórea por liberdade e pela metástase de si, a vontade de poder como ontologia vibrátil de todas e cada uma de nossas células, faria Nietzsche entrever no próprio ímpeto por compaixão e comunhão uma vontade de poder sui generis, uma força desnaturada de seus propósitos imanentes, uma dominação voltada contra si mesma, um jab que afaga, um chicote que cicatriza, um cossaco que abraça, o conquistador que se ajoelha, a ejaculação introvertida (lágrimas ao invés de sêmen), o coito interrompido como perdão, o regozijo em lamber feridas. 

Ora, será que o velho Nietzsche, que precisou ser amparado durante sua última década de vida – durante seus últimos anos de degenerescência galopante –, apontaria sua verdade contra a própria têmpora se a sífilis não lhe tivesse ceifado a consciência? Será que o filósofo teria decretado o suicídio como a única saída condigna para o predador senil que agora precisa se ajoelhar diante da presa? 

O fato é que Legássov e os demais mártires anônimos de Tchernóbil salvaram a humanidade. [O beija-flor de Zaratustra já não estaria aspergindo o pólen do super-homem, caro Nietzsche, se as formigas operárias não tivessem convertido sua vontade hedonista de vida em abnegação (e pulsão de morte) para que todos os demais pudéssemos sobreviver ao holocausto dos mártires.] 

 Kamikases soviéticos arremessam de seus helicópteros sacos de areia e chumbo pela garganta do reator para tentar aplacar o incêndio e rescaldar a temperatura solar das reações atômicas; soldados do Exército Vermelho cavam túneis sob o reator para drenar a água ali existente, de modo a impedir que o urânio alcance o reservatório. [Físicos nucleares nos informam que, se o urânio em altíssima temperatura e reatividade tivesse alcançado a água sob as camadas de concreto, o cogumelo de Hiroshima teria tomado as proporções da Terra sem que o universo sequer notasse o estrondo da extinção sumária da espécie humana.] 

Já esquecemos os nomes dos heróis que limaram suas vidas por todos e cada um de nós. Mas, em nome de seu martírio, me parece fundamental fazer a seguinte pergunta a Nietzsche: será mesmo que toda a entrega dos mártires, que toda a transcendência de si para que a vida alheia continue pulsando – desde seus espasmos mais frágeis e protozoários até as criações e intervenções humanas mais elevadas –, que toda essa comunhão diz respeito apenas a homens e mulheres cujo centro de gravidade é o ego? (Talvez, e não mais do que talvez, o pior cego seja aquele que só quer ver.) 

Para tentar barrar as emissões radioativas de Tchernóbil, a engenharia soviética, em diálogo com a literatura fantástica latino-americana, projeta uma estrutura de concreto faraônica para sepultar o reator. Para a inveja de Tutankamón (e como antítese profunda em relação à tese nietzscheana), o sarcófago soviético passa a conter a expansão irrestrita da energia atômica – a encarnação mais escatológica e irascível da vontade de vida como afirmação de si e como terra arrasada para os demais –, a fim de que a vida na Terra possa continuar a continuar. [Como bem sabem os mártires de Tchernóbil, a morte (a entrega, o sarcófago) preserva e regenera a vida. É por isso que o grão de trigo caído sobre a terra, quando não morre, quando não germina, acaba ficando só; mas, quando o grão de trigo morre e penetra no útero da terra, ele produz muitos frutos.]

II. Bábuchkas e barricadas

 E eis que mais de quase três décadas depois da catástrofe nuclear, a documentarista norte-americana Holly Morris decide nos contar a história e as estórias d’As bábuchkas de Tchernóbil. As bábuchkas (ou vovozinhas) de Tchernóbil são senhorinhas entre septuagenárias e nonagenárias que, como verdadeiras partisans, decidiram voltar às suas casas e vilarejos, ainda que eles façam parte da zona de exclusão demarcada pela contaminação radioativa. 

 Sempre com a cabeça envolta por lenços multicoloridos amarrados sob o queixo, as bábuchkas lamentam as mortes de seus maridos e filhos em meio às barricadas de Tchernóbil. Uma delas, vivaz como uma lebre, dá uma boa talagada em uma vodca de cereja – “e lá se vai o meu cérebro!” – antes de sentenciar: 

 – Este casebre é parte do meu corpo. Esta terra – ela enche as mãos com a terra escura da Ucrânia – é como se fosse o meu ventre. Meus pais viveram aqui. E os pais dos meus pais. E os pais dos pais dos meus pais. Amém. O meu rosto cheio de rugas é tão arado quanto esta terra. Eu conheço cada chiado desta mata. Sei onde tem lebre, sei onde tem lobo. Galinha não me falta. Eu sobrevivi à fome de Stálin. (Quem tinha um pouco de leite resistia, quem não tinha pedia pra ser morto.) Ouvi falar de canibalismo – que Deus me perdoe! Quando os nazistas chegaram, eu já estava aqui. Enquanto os partisans sabotavam, eu já estava aqui. Enquanto os russos lançavam contraofensivas, eu já estava aqui. As batalhas ocorriam ali – ela aponta uma campina com o indicador curvo pelo reumatismo. (A bábuchka vai caminhando até um jardim repleto de canteiros insólitos.) Aqui eu velo a minha família: meus pais, meu marido e quase todos os meus filhos. É... (A vovozinha dá um suspiro bem fundo que nos revela um chiado. Ela cospe catarro e sangue num lenço amarelo que saca do bolso do avental antes de continuar a falar, agora com os olhos azuis marejados.) Eu sou mesmo uma sobrevivente... E se eu sobrevivi à fome de Stálin; se eu sobrevivi aos nazistas (se eu sobrevivi às pilhagens dos nazistas); se eu sobrevivi aos russos (se eu sobrevivi aos saques dos russos), por que é que eu vou ter medo de um inimigo que eu não vejo? Invisível aos meus olhos não é meu inimigo – invisível aos meus olhos é Deus! O que eu não vejo é a minha alma, e a minha alma abandona o meu corpo se ela não está no meu casebre, se ela não colhe os cogumelos deste boque, os peixes deste lago, as batatas da minha hortinha. Radioatividade? O que que é isso perto da saudade? 

 

Uma jovem guia da zona de exclusão nos leva à casinha de outra bábuchka. (São aproximadamente 100 senhorinhas que se espraiam pelas aldeias. Em algumas, há 14 bábuchkas. Em outras, vovozinhas vivem sozinhas entre os uivos dos lobos e a onipresença do urânio.) Uma bábuchka corpulenta recebe a guia com beijos e abraços bem calorosos, ao fim dos quais ela a benze com o Pelo Sinal e o ícone do Cristo Ortodoxo. 

Logo ficamos sabendo que, em sinal de gratidão pela hospitalidade, é preciso provar o pão preto com geleia de framboesa – e ai se sobrar algum pepino curtido na vodca! A vovozinha nos diz que tem um segredo para driblar o gosto metálico na comida. (Limão e açúcar, santos remédios!) A guia come com prudência – a despeito do carinho, a ingestão dos alimentos traz o reator de Tchernóbil para o estômago e a corrente sanguínea. Chegam mais vovozinhas ao casebre. Elas começam a entoar canções, e logo a bábuchka que abençoara a guia passa a marcar a cadência da cantoria com o choque da foice e do restelo. Brindes e mais brindes são feitos à memória dos falecidos. [Antes de entornar mais um copinho de vodca, é preciso oferecer um trago para o santo padroeiro. (Tem um lugar certinho para jogar a vodca para o santo no canto da sala, o chão de madeira está até mais escuro por causa das oferendas.)] 

 É hora de acompanhar uma vovozinha ao médico para analisar seu nível de radiação. Ela só se senta na cadeira de análise depois que o médico abre o presente da bábuchka: ovos caipiras e tomates que só não são mais vermelhos que as gengivas da vovozinha que despontam sempre que ela sorri. De forma surpreendente, a curva de radiação da bábuchka, encravada no coração da Cidade Proibida, não fura o teto da estratosfera. Mas como é possível? Como é possível que essas senhorinhas ainda estejam vivas em um local tão insalubre? O médico coça a careca antes de tentar explicar a fábula das bábuchkas partisans: 

 – Bom, a coisa é ainda mais complicada quando sabemos que muitas pessoas que saíram da zona de exclusão para morar, por exemplo, nas franjas de Kiev, veja só!, acabaram falecendo bem antes das bábuchkas. Essas pessoas também sofreram com os primeiros impactos da radiação, que, por si só, foram terríveis. Até aí, nenhuma das bábuchkas pôde sair incólume dessa contaminação. Ocorre que, como tais pessoas abandonaram suas casas, como elas saíram da Cidade Proibida, elas já não ficaram em contato contínuo com a radiação, elas deixaram de comer alimentos contaminados. Ainda assim, não decorreu do risco menor, como eu já disse, uma maior expectativa de vida. E aí, claro, a questão se impõe como um punhal: por quê? (O médico faz uma breve pausa e volta a coçar a careca.) Bom, eu só posso chegar à conclusão de que a agonia matou os sobreviventes que, diferentemente das bábuchkas, não quiseram levantar barricadas contra Tchernóbil. A agonia de estar longe de casa, de já não poder dar corda à caixinha de música das memórias, de não poder velar os entes queridos, de sentir a passagem do tempo não só como uma fratura, mas como uma completa mutação. Não ver mais o nascer do sol entre as folhas alaranjadas do outono. Não poder mais deixar bifes na encruzilhada para os lobos no inverno. Não se sentar mais ao redor da fogueira para ouvir as estórias que reencarnam os ancestrais. Ora, a língua alemã tem um termo muito propício para o destemor das bábuchkas: Heimweh, a pátria que dói, a terra que nos faz latejar de saudade. Os moradores das cidades mal conseguimos decantar em nós algo assim. Mas os sobreviventes que foram se esgueirar pelas franjas de Kiev não morreram aos montes, como coelhos, apenas por causa dos efeitos deletérios da radiação. Se fosse assim, as bábuchkas já não estariam aqui para me trazer broa de milho. Eles morreram porque já não havia terra. Eles já estavam mortos bem antes de morrerem. As bábuchkas de Tchernóbil se veem vivificadas pela presença da morte. Elas talvez sintam que a Cidade Proibida precisa de testemunhas; que, sem elas saracoteando por ali, como sentinelas, o urânio enfim vai derreter os bosques. Se alguém me perguntasse como seria o suspiro de uma espécie que está para ser extinta, eu não migraria para a Atlântida das vovozinhas, não. Eu tentaria convencer as bábuchkas, com o que ainda me resta de ímpeto, para que elas fossem às nossas cidades e nos falassem sobre o martírio e nos narrassem o que é a vida. Eu até hoje não sei. Eu me sinto como um exilado de mim mesmo.

Ilustrado pelo Luanna Falcão. Sigam seu Instagram: @luanna.artworks

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