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Paulo Moreira Leite

Colunista e comentarista na TV 247

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Memória incômoda: mídia ignora o Cony que resistiu a ditadura de 64

"Carlos Heitor Cony foi um autor contraditório, com momentos diferentes em sua longa carreira de jornalista e escritor,"escreve Paulo Moreira Leite, articulista do 247. "Ao ignorar seu papel fundamental na  denúncia do golpe de 64,  nossa mídia escondeu uma face combativa da obra de Cony,  de grande utilidade num país que, quatro décadas anos depois da cassação de JK,  enfrenta a perseguição contra Lula." 

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Como linha geral, os elogios fúnebres a Carlos Heitor Cony se concentraram no debate de seus talentos como escritor de ficção, com uma penca de romances publicados. Evitou-se um debate sobre a atuação de Cony como jornalista, em particular no período posterior ao golpe de 64. É sintomático. Ainda que Carlos Heitor Cony não tenha sido um santo em mais de sessenta anos de vida profissional, acumulando passagens contraditórias e até lamentáveis, não há como negar sua atuação na formação da resistência a ditadura e na defesa da consciência democrática dos brasileiros, em particular no período que se inicia com a deposição de João Goulart e chega ao 13 de dezembro de 1968, com a instauração do AI-5. Estamos falando da época dos protestos estudantis e grandes passeatas, anterior a censura prévia e da instituição da tortura de prisioneiros como instrumento básico de investigação policial.

Essa visão seletiva sobre um dos mais conhecidos escritores brasileiros é uma opção que diz muito sobre a mídia do pensamento único e o Brasil de 2018, país que enfrenta o abismo aberto pela deposição de Dilma Rousseff e a construção de um regime de exceção jurídico-midiático, que encontra na condenação de Lula um ponto decisivo para sua consolidação. Em momentos de incertezas e riscos das mudanças históricas o debate sobre o papel do jornalismo torna-se mais atual do que nunca.

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Os crônicas escritas por Cony, na época, reunidas no livro "O Ato e o Fato," são um marco obrigatório, muito diferente do que fez em anos recentes, quando se mostrou um adversário reacionário e virulento assumido de Lula e Dilma, contribuindo para enfraquecer toda resistência ao escandaloso esquema que levou Temer & aliados ao Planalto.

Não há dúvida que o jornalista Cony deixou um trabalho memorável no combate democrático no período, ainda que seja obrigatório debater uma passagem obscura sobre seu papel em dois editoriais do Correio da Manhã, publicados em 31 de março e 1 de abril de 1964, com os títulos autoexplicativos de "Basta!" e "Fora!"

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É conhecida a versão de que o próprio Cony teria sido o autor oculto desses dois textos, publicados no anonimato que o jornalismo reserva aos editoriais, destinados a expressar o ponto de vista do proprietário de uma publicação. Num jornal que era tido como um aliado fiel de Goulart, essa mudança de última hora teve um impacto político enorme.

Uma testemunha confiável do período, com todas as condições de saber o que se passava e uma credibilidade que não pode ser colocada em dúvida, assegura que dois textos foram uma obra coletiva, orientada pela decisão de acionistas do jornal e submetidos a profissionais graduados do Correio antes de serem publicados. Neste caso, que me parece o mais provável, Cony teria sido mais um entre vários repórteres, colunistas e redatores consultados. Se essa versão não diminui um grama da responsabilidade pessoal, pois se tratava de um cidadão maior de idade, em pleno gozo de seus direitos e de boa saúde mental, ajuda a entender os limites e a autonomia de todo jornalista na estrutura hierarquizada de uma empresa de comunicação, na qual é -- também -- um assalariado em busca do próprio sustento.

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No 31 de março de 64, Cony encontrava-se em casa, de cama, recuperando-se de uma cirurgia de apêndice. Sua primeira crônica sobre o golpe foi publicada em 2 de abril, quando a deposição de Goulart acabava de se definir. Num texto assinado, ele relata um passeio por Copacabana, na véspera, em companhia de Carlos Drummond de Andrade. Nas vizinhanças do Forte, para onde eram conduzidos prisioneiros militares, descreve a mudança de postura de um general que, inicialmente chamado a impedir o avanço de tanques rebeldes em nome da defesa da legalidade, acabou aderindo ao inimigo. "Sinto na boca um gosto azedo de covardia", registra. No mesmo texto, relata festejos de personagens da elite carioca em torno de um Cadillac conversível, bandeiras verde-amarelas e hino nacional. Também conta que, em determinado momento, "os rapazes de Copacabana, belos espécimes de nossa sadia juventude, bem-nutridos, bem-fumados, bem-motorizados, erguem o general em triunfo".

Uma semana depois, em "O Medo e a Responsabilidade", diz que "é preciso que se denuncie a nudez do rei" e, lembra que mesmo a "imprensa norte-americana" define a deposição de Goulart como "um simples golpe da direita para a manutenção de privilégios". Em "O Ato e o Fato" publicado no dia seguinte ao decreto militar que suspendeu garantias constitucionais e abriu caminho para a ditadura, fez a crônica que traçou uma linha divisória. Definiu o ato institucional como "monstrengo moral e jurídico que empulhou o Congresso e manietou a nação" e acrescentou: "Depois de Mussolini, depois de Hitler, invocar o anticomunismo para impor uma ditadura é tolice. A história é por demais recente, nem vale a pena repeti-la aqui". Cony foi o "panfletário que a hora exigia e a nação esperava para lavar a face e levantar a cabeça," escreve Ênio Silveira, responsável pela edição de " O Ato e o Fato -- o Som e a Fúria que se viu no golpe de 1964", cujo lançamento, na época, transformou-se num ato civil de protesto contra o regime militar.

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O próprio autor tornou-se numa referência para quem fazia oposição a ditadura. Num artigo de memória no qual se refere ao hábito de tantos brasileiros de comprar o Correio da Manhã para ler Cony, Luiz Fernando Veríssimo recorda que "ali estava aquele cara dizendo tudo aquilo que a gente pensava sobre o golpe, sobre a prepotência militar e a pusilanimidade civil, com uma coragem tranquila e uma aguda racionalidade que tornava o óbvio demolidor."

Cony não era um aliado firme de Goulart, como outros intelectuais e jornalistas do período. Era um crítico duro. Votou em branco no plebiscito sobre parlamentarismo x presidencialismo, que esteve no centro de um debate decisivo. Favorável às chamadas reformas de base, definiu os aliados de Jango nos seguintes termos: "considero essa esquerda um aglomerado de imbecis que se escoram um aos outros."

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Cony foi um dos signatários do manifesto de fundação da Confederação dos Trabalhadores Intelectuais, um movimento de arquitetos, jornalistas, advogados, escritores e outros cidadãos que pretendiam "participar da formação de uma frente única, democrática e nacionalista, com as demais forças populares, arregimentadas na marcha por uma estruturação melhor da sociedade brasileira." Cinco dias depois do golpe, jornais alinhados com os militares republicaram o manifesto, destacando cada assinatura, num esforço vergonhoso de delação para chamar a atenção do "Alto Comando Militar" para signatários que trabalharam "ativamente para implantação do governo comunista de João Goulart".

Acovardados, quatro intelectuais retiraram seu nome, com o argumento de que haviam sido iludidos em sua "boa fé". Cony manteve-se no devido lugar, denunciou o comportamento dos arrependidos e um mês depois escreveu: "de todas as violências e ilegalidades postas em prática pela quartelada de 1o. de abril, a mais repugnante, a mais abjeta, é a oficialização e santificação da delação".

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Um mês depois do golpe, Cony se encarregava de desmascarar a lenda de que a deposição de Goulart (que sempre chamava de "quartelada", desafiando o coro de bajuladores que falava em "Revolução") fora uma operação pacífica, sem resistência, coerente com a versão oficial de que se tratava de um governo abandonado pelos próprios aliados. No texto "A Herança", (5/5/1964) aponta para uma escalada repressiva que a maioria das publicações preferia esconder e até hoje desafia os historiadores sérios.

Escreveu: "do dia 1 de abril até ontem, foram presas milhares de pessoas.Não sabemos seus nomes, as profissões e os pensamentos dessas pessoas. Sabemos também que estão presas, em algum lugar -- ou em qualquer lugar. Sabemos que a maioria desses presos nem sequer foi interrogada ainda. Estão presos há mais de trinta dias, nem sequer sabem por que estão presos".

Numa crônica definitiva sobre a cassação dos direitos de JK, sem direito de defesa, Cony produziu uma crônica sob medida para um país que debate o julgamento de Lula no TRF-4. Veja um vídeo que gravei a respeito:

https://www.youtube.com/watch?v=DIYnD9717io&feature=share

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