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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Miró da Muribeca no aniversário do Recife

“Sobre ele é quase inútil procurar informações no Google, porque entre os 35.700.000 resultados no máximo 4 se referem ao particular Miró que lhes apresentamos"

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Neste 12 de março, temos os aniversários das duas cidades irmãs, o Recife e Olinda. E que acontecimento feliz, para o dia do nascimento do Recife teremos um reconhecimento público do poeta negro, rebelde e genial Miró da Muribeca: uma estátua levantada para o poeta no Recife Antigo. Ali, todos veremos sempre o poeta Miró, um pedido da vereadora e poeta Cida Pedrosa.

A hora e o dia são, portanto, também de Miró da Muribeca, falecido em 2022. Para Miró, publiquei no Dicionário Amoroso do Recife em 2014:

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“Sobre ele é quase inútil procurar informações no Google, porque entre os 35.700.000 resultados no máximo 4 se referem ao particular Miró que lhes apresentamos agora. De nome de batismo João Flávio Cordeiro da Silva, o poeta Miró nasceu no Recife há 46 anos. Mas nada nesse nome artístico vem do outro mais conhecido, outro grande, certo criador Joan, da convivência de João Cabral de Melo Neto. Não. Esse Miró, esse nome nobre... — e já sinto no ventre a cutilada do poeta — “todo nome é nobre” — essa denominação vem de outras plagas nobres. Vem dos subúrbios do Recife. João Flávio foi transformado em Miró pelos amigos, porque lembrava ao jogar o bom Mirobaldo, um craque da pelota do Santa Cruz Futebol Clube. No tempo em que o maior talento de João era o futebol, os seus amigos o apelidaram de Miró, forma reduzida de Mirobaldo, que se pronuncia com a vogal “o” aberta da fala nordestina. Depois, na fase em que assumiu o jogo mais raro e difícil da poesia, achou por bem continuar assim, Miró, para melhor sorrir no íntimo com os dentes claros, diante de quem o confunde com o pintor catalão.

Em um mundo globalizado conforme a ótica WASP, Miró é um acúmulo de surpresas. Pois imaginem as senhoras ladies e os senhores gentlemen que ele é um poeta que jamais entrou na universidade. Pelo menos, para assistir a lições como estudante universitário, nunca. E, continuem a imaginar, isso não lhe faz nenhuma falta, devíamos mesmo dizer, para a sua poesia é um bem, porque lê e se educa em obediência a uma ordem que não está no currículo de um currículo estéril. A quem não o conhece, a sua pessoa física reserva uma grata e grada graça: Miró tem a pele escura, e, ladies and gentlemen, não finjam, por favor, naturalidade. Mesmo em um povo mestiço, Miró é uma exceção: as pessoas sensíveis, até mesmo no Brasil, têm uma estranha gradação na cor da pele da sensibilidade. Quanto mais claros, mais poetas. Quanto mais escuros, mais trabalhadores braçais, ou, se forem artistas, mais jogadores de futebol. Daí que faz sentido o poeta Miró vir de Mirobaldo, o craque do Santa Cruz Futebol Clube. Mas a melhor surpresa de Miró vem da sua poesia. Acompanhem-nos, por favor, assim como o acompanhamos esta semana em um auditório.

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Todos nós aprendemos, ou fomos como bons estúpidos para isso educados, que o poema realiza a poesia nas suas linhas. Ou, se quiserem, o poema não precisa da pessoa do poeta — a certeza única e exclusiva do seu valor está no que escreve. Certo? Senhoras e senhores: — Errado. Quem não viu Miró declamar os seus poemas não sabe o quanto esse conceito erra. Aquela justa observação feita por Manuel Bandeira à poesia de Ascenso Ferreira, no trecho:

‘Não me lembro se antes de me avistar pela primeira vez com Ascenso Ferreira eu já tinha conhecimento dos seus versos. Como quer que fosse, eles foram para mim, na voz do poeta, uma revelação. Pois quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas, não pode fazer idéia das virtualidades verbais neles contidas, do movimento lírico que lhes imprime o autor’.

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Aplica-se também à poesia de Miró. Com algumas mudanças. Mirem. Onde Ascenso Ferreira realizava no recitar um uso extraordinário da voz, da modulação ao acento, do corte da sílaba à ênfase, como dizê-lo? Uma utilização da voz como um ator de rádio, Miró usa a imagem, física, melhor dizendo, ele usa o próprio corpo, ele faz evoluções pelo auditório, como um cantor de rap, quase diríamos. Mas sem microfone. E não só. Ele acrescenta caretas, esbugalha os olhos, fecha-os, e aponta os seus versos com um dedo contra a assistência. Como um Tio Sam invertido, que em vez de conclamar um alistamento, nos enfiasse a realidade cara a dentro.

A plateia, divertida, sorri, gargalha, diante de versos que não chegam a ser bem cômicos. Como aqui:

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‘Tinha lido num livro de autoajuda, de um

desses psicólogos

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De araque, que aparecem nesses

programas matinais que dão

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Receitas pra tudo, inclusive de bolo,

Que na hora que a vida vira uma merda

O melhor é sair da fossa’.

Ou nestes versos:

‘Acho que foi a primeira vez que conheci a dor

Um domingo de 1971

Naquele tempo o domingo era o dia mais feliz,

Minha mãe fazia um macarrão com carne de

lata e Q-suco

Ficávamos brincando de mostrar a língua vermelha

Pra provar que éramos felizes...

Norma era tão linda com seus cabelos negros,

Que me deu um branco aos 11 anos

Quando me pediu um biscoito maizena e um

gole de fratele vita ...

Domingo era o dia mais feliz

Antes de Norma beijar um outro na boca.’

A plateia, o distinto público, vai ao delírio. De rir, de gargalhar. Miró fala de um mundo abaixo do nível do auditório. O primeiro elemento cômico é que a miséria é cômica. A maior comicidade é a desgraça que não sentimos na própria pele. A dor que não é a nossa, a dor pela qual não temos empatia, ah, ladies and gentlemen, como é cômica. Não iremos consultar nada agora, mas em algum lugar deve estar observado que o riso é manifestação pela desgraça alheia. O riso atesta a nossa superioridade ante o ridículo que não nos alcança. Quem jamais bebeu “sucos” em pacotinhos de pó, de “morango”, de “uva”, com bastante açúcar e gelo, como bebem os que não podem comprar frutas em um país tropical, acha isso irresistivelmente cômico. Quem jamais saboreou carne enlatada no país de maior rebanho bovino do mundo, quem jamais pôde sentir o sabor, o gosto e a maravilha da carne Swift, da carne da Wilson, com macarrão rubro de colorau aos domingos, que piada genial é esse macarrão se transformar no dia da felicidade. E aquela prova de amor, da cumplicidade que tem o amor, quando a musa pede refrigerante, guaraná da frattelli vita, com o biscoito miserável de maisena. Que cara! E Norma beija um outro, mirem o detalhe, na boca! na boca! Menos, por favor, você é demais, cara!

O poeta gira em torno da assistência. A sua arma, a sua graça e cômico é a verdade. Aquelas coisas mínimas, constrangedoras, que nem às paredes confessamos, ele, como um novo louco, arrebenta de si. Mais do que escrever por vezes transcreve. Com uma sensibilidade que observa o inobservável.

‘Já perceberam como tem pontas de

cigarro em pontos de ônibus?

Tem uma tese de um amigo que diz:

Que as empresas de ônibus são

responsáveis por 5% dos cânceres de pulmão.

Curioso perguntei, como assim?

É que os ônibus demoram’.

A recepção da plateia a essas coisas é vê-las apenas como o lado sujo, trash, de uma estética suja e trash, de um maluco que escreve e não tem nenhuma vergonha de escrever sobre essa miséria como um bárbaro sem educação. (Nós, os cultos. Nós, os que, se algum dia fomos dessa desgraça, bem que a superamos. Nós, os de outro mundo. Nós, os limpos, clean, e educados.) O poeta gira, e deixa a aparência, como um bom gira, de fazer também uma rotação. Então ele declama, recita, pula, contorce-se, cospe e pragueja uns versos que a expectativa do distinto e cultíssimo público não percebe. O clima em torno da sua performance não permite a degustação, a permanência que tem a beleza, a que sempre por necessidade voltamos. Então ele fala, enquanto o público espera dar mais uma risada, então ele faz uma prece, um poema que somente hoje pela manhã pudemos sentir, ao ler e mastigar, e ruminar como as cabras mastigam e ruminam uma erva muito amarga. Este poema não precisa do poeta, da sua pessoa. Basta uma sensibilidade.

‘Deus, Tu que agora carregas um homem,

Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns

sacos de cimento

De cada lado um sol insuportável ...

Deus,

Choves agora no meu coração

Para que eu não pense em comprar um

guarda-chuvas de balas

E fazer justiça com as próprias mãos.’

Miró, poeta marginal? Pobre e miserável quem o toma assim”.

E para encerrar por enquanto, recupero um vídeo em que falei sobre o grande poeta Miró da Muribeca, quando ele foi homenageado na Bienal do Livro de Pernambuco em 2015:

https://www.facebook.com/urarianomota/posts/pfbid0hBePJGjZxSdv1pCETWNQqpvfCa5GYsU5xHMQuq5ZSXMRuHFxUfmCQX3gNtshyJUrl

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