CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Wilson Ramos Filho avatar

Wilson Ramos Filho

Jurista, professor e escritor

68 artigos

blog

Morais

Ao entrar no apartamento, dois andares pela escada, estancou. Uma floresta. Na sala nada além de vasos e mais vasos de arbustos de vários tamanhos. Recuou, conferiu o número na porta. Era ali mesmo

Morais
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Que saco! Nunca tinha feito nada nem parecido. Única parente da falecida em Curitiba, sobrou para ela, teria que deixar o serviço e ir na casa da tia buscar as roupas com que seria enterrada. Deixara-lhe a chave.

No ônibus lotado pensava na velha reacionária que nunca a aceitara como é. Nos últimos tempos, quando a visitava no hospital, lhe propunha que a acompanhasse ao culto do sábado à noite. O pastor, especialista em cura gay. Idosa, conservadora, mas isso não justificava a intromissão indevida em sua intimidade. Sorriu ao lembrar a cara de espantada quando, recusando a proposta, respondeu adoro homem de terno, já vem prontinho para ser enterrado. Credo, que associação de ideias, pensou.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Ao entrar no apartamento, dois andares pela escada, estancou. Uma floresta. Na sala nada além de vasos e mais vasos de arbustos de vários tamanhos. Recuou, conferiu o número na porta. Era ali mesmo.

Esgueirando-se avançou, receosa. Que diabos era aquilo. No quarto, tudo como sempre havia sido. Modesto. Cama, criado-mudo, uma bíblia. No armário, poucas roupas. Escolheu uma discreta. Saia, camisa estilo Marina, sapatos pretos. Uma meia. Dúvida quanto à pertinência de roupa de baixo para vestir a morta. Resolveu levar. Arrumou uma sacola e socou tudo nela. Na parte superior do armário, muitas caixas. Coisas sem valor, supôs. Na gaveta, maço de dinheiro. Pegou. A velha não iria precisar de grana.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Devia estar senil ou acumuladora. Para que tantas folhagens? Peraí. Cacete! É maconha! Não fazia sentido. Uma militante das causas mais retrógradas, criacionista, plantando marijuana em casa. Lazarenta. Santa do pau-oco. Por isso sempre tinha dinheiro. E aquela cara de sonsa, afinal, não decorria da religião entorpecedora, estava era chapada. Credo, outra vez, associação de ideias. E crente não acredita em santos e santas.

Fez campanha para o Bolsonaro, defendia a Damares, agora estava convocando todos para comemorar a ditadura no dia 31 de março e era traficante com produção própria, exclamou para si mesma. Sempre assim. Velha safada. Todo moralista esconde perversões.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Fechou a porta. Apressou-se. A funerária pediu duas horas para preparar o corpo.

Noite daquelas. Antes das nove, sozinha. Parentes vindo de viagem. Depois ficou mais animado. Chegaram as primas, a mãe delas e o irmão da finada, por parte de pai. E umas outras pessoas desconhecidas. Um moço, óculos escuros, cabelo espetado e argolas nas orelhas se aproximou, espiou bem e, como veio, saiu. Seria um cliente da meliante?

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Antes do enterro o tio avisou-a. Iriam dali ao apartamento, queria pegar algumas coisas que eram dele. Desespero. Daria uma treta familiar daquelas. Como reagiria ao saber que a irmã traficava? Morto não tem defeito. A falecida tinha que ter sua memória preservada pela família. Apoiou-se nas primas. Contou-lhes os detalhes. Não podiam deixar o tio saber. Tão careta quanto à irmã, perigava ter um treco e ir atrás dela no inferno. Aqueles vasos devem valer uma fortuna, passamos nos cobres e dividimos entre nós, disse a mais nova. Está maluca, nem pensar, capaz de irmos todas presas. Quem desconfiaria da velha. Fumar tudo aquilo, impossível. Queimar? Tocar fogo no prédio, grande ideia, gênia. Pare, não é hora disso. Vamos acabar todas presas. O tio não pode saber. Esse sacana abusou de mim, várias vezes quando eu tinha doze. Nojo. Engula, você é boa nisso. Nunca mais te contarei nada. Não se faça de boba. Parem vocês duas. Vamos resolver esse problema, depois vocês brigam.

Articularam. As três iriam ao apartamento com o amante da maior, de caminhonete. Pegariam os vasos de madrugada e os desovariam em algum lugar. No dia seguinte tudo estaria imaculado, inclusive a imagem da safada. Plano perfeito, regozijaram-se. E se aparecer a polícia? Temos que correr esse risco, o tio e a mãe de vocês não pode saber.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Quatro e meia da manhã, discretamente, as três saíram de fininho. Era hora da faxina. Em quatro resolveriam tudo rapidamente. E foi mesmo. Pareciam ter sido treinados. Silenciosamente subiram e desceram aquelas escadas carregando o bosque artificial. Ninguém acordou ou percebeu a movimentação. Limparam os restos de folhas e terra, varreram e até um pano úmido passaram no chão. Tocaram para descarregar na casa dele. Sabia o que fazer com aquilo tudo e, apressadamente, deitaram o cabelo para retornar de uber, exaustas, ao guardamento.

Terminado, no carro do tio, voltaram à cena do crime. Depois de estranharem a sala vazia foram ao quarto. Sobre a cama, colcha de crochê, espalharam as caixas.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Foi fumar na lavanderia e voltou branco. Solene. Fez uma longa preleção sobre os mistérios da vida e da morte e anunciou o achado mostrando um pequeno vaso com a verdolenta erva. Nas dependências de empregada havia vários, imaginem só, de maconha. As três, petrificadas, lívidas. Falsas. O tio, paciencioso, repetiu, separando as sílabas para melhor compreensão. Maconha. Traficante! Será? Talvez para uso próprio, tentou justificar a mais dissimulada. Tudo aquilo? Vão lá ver! Parece a Amazônia, vociferava.

Estavam nos quem diria quando tomaram susto. Quem é você? Meus pêsames, sou a vizinha da frente. Viemos buscar algumas coisas dela. Eu sei, estava no enterro. Onde estão os vasos dela. Na área de serviço, respondeu o machão. Suspiraram as quatro, cada uma com seu motivo, ao mesmo tempo.

De onde, isso tudo? Não sabiam. Era maconheira ou traficante? Complementava a renda, professora de biologia aposentada, mas não fumava, jesus seja louvado. Dava quase tudo para a igreja. A maconha? O dinheiro. Sei. Claro que não. Óbvio que não. Era temente a deus. Estou sabendo. Ela apenas cuidava das plantas para uns meninos que fazem a segurança aqui do bairro. Uns amores. Alugava o espaço e conversava com elas. Com as plantas? Deve ser da boa, e o que elas respondiam? A vizinha se ofendeu. A viúva Morais era uma senhora de respeito, uma pessoa de bem, apenas sublocava o espaço ocioso. Ajudava-a para que tomassem sol. Pessoa decente.

Todos concordaram. Cataram as caixas, deixaram os vasos. Despediram-se. Silentes. Os mortos não têm defeitos.

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Carregando os comentários...
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO