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Roberto Bueno

Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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Mourão x Ulisses: tacape ou Constituição?

O cheiro do sangue humano é demasiado forte e parece condicionar e inebriar a memória afetiva de quem o verte por profissão. Generais eleitos deveriam estar dispostos a guardar a farda no baú e, logo, passar a agir como políticos, mas alguns não parecem dispostos a esquecer a cultura dos porões, as armas, e o tacape

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O General Hamilton Mourão optou livremente por concorrer à Vice-Presidência em chapa encabeçada por Jair Bolsonaro, personalidade que em tempos pretéritos havia sido promovido às pressas ao abandonar a carreira militar após pesado processo. O General sabia não apenas do juízo moral e profissional do General Ernesto Geisel (1907-1996) sobre a falta de talento militar (evitemos a vulgar gíria militar e adotemos linguagem polida) do personagem mas de todo o histórico de seu companheiro político. Trata-se de histórico que incluiu planejamento de explosão de quartel inteiro por suposta inconformidade com a política militar de remuneração a sua pública e declarada proximidade com a violenta milícia do Rio de Janeiro. O General sempre soube que o plano implicava nada menos que explodir um quartel inteiro, mas como qualificaria o morticínio de seus colegas de farda? Acaso isto não recorda à perfeição qualquer perfil de terrorismo? Aceitou o novo companheiro de viagem política. Isto é público e conhecido de todos, mas não pareceu digno de reprovação do General sob qualquer ângulo.

Em tempos de discussão sobre o afastamento do atual ocupante da Presidência, o General Hamilton Mourão é a opção de poder em caso de impeachment, e logo vamos observando que a existência de provas ou não é algo que é despiciendo, tão característico dos Estados de exceção. O General é personagem afinado com os princípios da linha dura dos porões do regime militar derivado do golpe de Estado de 1964, não era do “Grupo da Sorbonne” (moderados ou castelistas), mas da “linha dura” cujo verbo nunca esteve indisponível para elogiar figuras como Carlos Alberto Brilhante Ustra. Trata-se de personagem que compartilha dos princípios da escola-brucutu de Silvio Frota e afins, que pretendem deslocar o poder popular da condução do poder político e do núcleo das decisões, em suma, mantendo-o no cenário apenas para fins de formalização estética do jogo político sob mera aparência democrática, mas reservando tão somente para o seu grupo o controle das rédeas do poder e, paralelamente, reservado estará o tacape, a resposta para todo e qualquer que pretenda assumir a dissidência.

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Neste dia 3 de maio de 2020 o General Mourão, Vice-Presidente da República, publicou texto na grande mídia corporativa impressa em que marca o território político de um Governo descolado da institucionalidade democrático-constitucional. Ocupou-se de lançar incertezas quanto ao futuro nacional e criminalizou os manifestantes antifascistas, qualificando-os como “baderneiros”, indicando que o caminho é o seu enquadramento legal, vale dizer, a aplicação da pura repressão. As imagens do mundo refletem sobre a memória dos antidemocratas de plantão e faz pulsar o seu propósito ditatorial. Para o General os “baderneiros são caso de polícia, não de política”, mas nada diz, despreza e desconsidera que tem muito a dizer sobre homicidas, ou é que sob alguma torcida ótica os homicidas é que seriam caso de política e não de polícia? Estranha percepção de mundo, para dizer o mínimo.

O texto de Mourão vem cronologicamente casado com as estripulias cavalariças da domingueira do Presidente perpetradas neste último fim de semana. O texto compõe quadro e rememora o espírito da vetusta e autoritária memória do General Newton “Nini” Cruz chicoteando desde a cima de seu cavalo branco a carros e cidadãos na Esplanada, quando em Brasília, e no Brasil, respirava-se os esperançosos ares das Diretas-Já enquanto compartilhavam o péssimo odor das pesadas fardas incessantemente usadas desde 1964. Nini, como era popularmente conhecido, também era dado a reprimir manifestações populares, e naquele momento entrou para a história por fazê-lo contra uma avalanche popular pelo direito ao voto direto à Presidência e contra a ditadura militar, personalidade autoritária tantas vezes revelada, como em 17.12.1983, oportunidade em que agrediu verbalmente, humilhou e assediou fisicamente o jornalista Honório Dantas em pública dependência oficial em Brasília, nada mais por “ousar” apresentar pergunta incômoda ao General, pois a expectativa do autoritário que detém o poder, mas não a razão. A sua lei é a do tacape.

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O General Mourão desenhou ameaça explícita ancorada na farda ao condenar as manifestações democráticas pregando a repressão policial contra os populares que causem danos ao patrimônio. O General mostra impaciência com manifestações populares desarmadas, que eventualmente possam romper um paralelepípedo ou virar uma lata de lixo, danificar alguma placa pública, mas não mostra a mesma impaciência com os infiltrados nestes movimentos que intervém como agentes provocadores causando, estes sim, séria desvirtuação nas manifestações, ou será que o brioso militar esqueceu, por exemplo, do papel desempenhado pelo Capitão lotado na inteligência do Exército, William Pina Botelho, de apelido de guerra “Balta Nunes”. No último fim de semana, uma vez mais, ficou claro na manifestação de São Paulo realizada por torcidas organizadas de atividades de provocação através da intervenção de policiais militares da reserva na manifestação de domingo último na Avenida Paulista. Nada disto causou incômodo ao General, não resulta problemático que as Polícias Militares intervenham claramente voltadas a reprimir os manifestantes populares em seu pleno exercício de direitos políticos, ou é que o novo regime já não mais permite? Em seu texto o General encontra espaço para insinuar, e mostrar, a sua reprovação a intervenção umbilical de manifestantes ligados ao “extremismo internacional”, mas não faz expressa e necessária referência a que as únicas bandeiras radicais daquela manifestação eram da extrema-direita ligada ao nazismo ucraniano, “Pravy Sektor”, que era o único que se encontrava por lá, e para apoiar o Governo do General.

O General Mourão encontra disposição e espaço em seu texto para ameaçar veladamente as forças políticas que utilizam recursos políticos, legítimas manifestações e pressões, mas que na gramática militar do general é traduzida em seu texto por “armas políticas”. O General esquece que estas armas (políticas) não matam, mas sim as manuseadas largamente pelas Forças Armadas e pelas Polícias Militares, mas também pelas milícias, e que o digam as dezenas de milhares de pessoas mortas, trabalhadores(as), e muitos jovens e adolescentes, e muitas crianças, uma trafica fila delas, perecendo até mesmo por fuzilamento. Vossa Excelência, qual a sua palavra para estas pessoas? Vossa Excelência, qual o seu sentimento de consternação profunda e indignação, a ponto de levá-lo a sugerir a persecução policial contra quem fuzila crianças? O que realmente é uma verdadeira “arma”, e nesta condição deveria causar espécie e profunda repelência a quem foi eleito para apoiar a condução dos destinos do país, são estas que cospem fogo e que acabam de ter a sua venda liberada assim como de munições, como se houvesse a expectativa e, mesmo, o desejo, de armar milícias para dar vazão ao desejo de uma guerra civil provocada pelo estrangulamento da população faminta e necessitada de todos os serviços que o Estado levado à quebra não presta. O que se pode esperar de um povo que não consente em ser assassinado à luz do dia como mosca senão a legítima resistência? A resposta do Governo qual será? Tiros e fuzilamentos gratuitos contra quem seja, como foram os casos do menino João Pedro, morto no dia 18.05.2020, em São Gonçalo (RJ), por tiros da polícia, assim como o caso do músico carioca Evaldo Rosa dos Santos objetivo de mais de cem disparos no dia 7.05.2019 sem prévio aviso da patrulha militar, ambos sem nenhuma resposta, e que tampouco causou espanto ou ambição de punição contra quem o perpetrou.

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É sobre este cenário que devemos refletir quando o General Mourão vem a público qualificar os manifestantes antifascistas como terroristas. Mas se o General qualifica estes manifestantes antifascistas como terroristas e se o alvo destes manifestantes é claramente o Governo, então, parece que a beligerância da reação do General o faz sentir-se atingido enquanto fascista. É disto que se trata? O General esteve presente na fatídica reunião ministerial em que partiu da Presidência a proposta de armar a população brasileira para que “resistisse” a governadores e prefeitos, autoridades constituídas, e isto não parece ao General como um ato que infringe diretamente a própria Lei de Segurança Nacional (LSN), fruto do regime militar. Não há tampouco estranhamento a avaliação do General quanto a que grupos peguem em armas e acampem em frente aos edifícios dos mais altos poderes da República na capital federal. Transformação da gramática política. Isto significa uma operação fascista que carece de inverter os termos e toda a gramática política para dar sentido a um discurso antidemocrático, algo que Viktor Klemperer estudou pormenorizadamente durante os trágicos dias da Alemanha sob Hitler.  

O General Mourão mostra o seu absoluto incômodo com danos ao patrimônio, alcançando a estratosfera de propor o uso da repressão para contê-los. Ao General escapa, certamente, o quanto atinge, a tantos, como a mim, não o vidro da bela butique quebrado ou a placa de trânsito amassada que constrange, senão que o que me dói, e, esteja certo, à massa da população brasileira, são as mais de 30 mil vidas de brasileiros(as) ceifadas,  às quais espero que seja apenas o seu texto que ignora e despreze. O texto de Vossa Excelência mostra supina indignação com “danos ao patrimônio” e singular disposição para a repressão daqueles grupos populares que mostram indignação com o Governo a cujo núcleo duro o senhor pertence, mas que entrega gratuitamente e sem quaisquer condições a bagatela de 1.25 trilhões aos bancos enquanto se nega a disponibilizar meros 8.6 bilhões para abordar e fazer frente aos problemas do Covid-19 e a absoluta fome e carência hoje imposta a milhões de brasileiros(as) destituídos de toda renda. Estas vidas devem deixar-se morrer sem sequer protestar General? E se o fizerem a sua “resposta” é a repressão? E as vidas dos mais de 30 mil brasileiros(as) falecidos General Mourão? A resposta de seu Governo é “E daí?” Aos desesperados que querem fugir deste genocídio a proposta de Vossa Excelência é aplicar repressão policial? Quem mostrar a sua reação a deixar-se morrer é a política do tacape?

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O General Mourão pretende exercer poder ao tempo em que coaduna com mais de 30 mil mortos, atenção, em tempos de paz, e que os brasileiros(as) permaneçam calados esperando a morte chegar? Avalia seriamente o General que uma população possa sofrer perdas deste calado como vítima da negligência de um Governo como o que apoia e mantenha posição de resignação bovina? Ao genocídio inaudito neste país a resposta do General é questionar o uso de “crimes” para defender a democracia. O General questiona a suposta ameaça em curso contra as instituições no Brasil, de ruptura à ordem, mas despreza olimpicamente que ela é gestada no núcleo duro de seu Governo. É ele, e ninguém mais que, cotidianamente, convida à ruptura institucional, açula ao enfrentamento, e se ainda remanescessem dúvidas a tal respeito, a veiculação da gravação da reunião ministerial de 22 de abril de 2020 eliminou qualquer traço de hesitação sobre quem, de fato, está empenhado em promover as condições ideais para a ruptura institucional, e não são as ruas.

É imperativo recordar, sempre, que foi o mesmo General Mourão que admitiu, ainda durante a campanha eleitoral de 2018, em entrevista à GloboNews veiculada nacionalmente que, sim, havia possibilidade de que, uma vez eleita a sua chapa, pudesse ser perpetrado um autogolpe. Mas quem mesmo é que mantém relações íntimas e desejos secretos muito mal ocultos do olhar e escrutínio público? Já não há segredos, e nem ingenuidades podem ser admitidas e, assim, de forma alguma há espaço para o que o General qualifique as públicas declarações em favor de autogolpe pela via da intervenção militar ultimamente aventada por Gandra Martins, dentre outros arroubos autoritários como meros “exageros retóricos” que os governistas estariam a lançar de forma “impensada”. Máquina de propaganda com objetivo certo, mas que perecerá perante a Nação, pois como disse Ulisses Guimarães em discurso pronunciado no dia 5 de outubro de 1988 que “A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”, e não será em caso algum a ameaça da arma militar que profanará a vontade de liberdade popular.

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Neste grave momento histórico não podemos coadunar com falsa retórica de alto potencial explosivo para as instituições democráticas, e neste aspecto a defesa da Constituição revela o seu teor revolucionário contra os verdadeiros subversivos destes tempos, o renascido fascismo. Proponho a retomada do espírito da Constituição de 1988 na voz e verbo de Ulisses Guimarães, cujo citado discurso contém forte defesa da democracia, que logo receberia caloroso aplauso dos constituintes presentes: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”, “Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações”. Estes são os valores que o povo brasileiro pactuou, estes são os princípios que o povo brasileiro abraçou, e esta é a orientação constitucional. Quando são lançadas as invectivas contra as liberdades, a democracia e, em suma, o arranjo constitucional que o povo brasileiro realizou em 1988, todas estas são vozes que são resumíveis na lapidar qualificação do discurso de Ulisses Guimarães na citada reunião: “Quem desrespeita a Constituição é traidor da pátria!

O cheiro do sangue humano é demasiado forte e parece condicionar e inebriar a memória afetiva de quem o verte por profissão. Generais eleitos deveriam estar dispostos a guardar a farda no baú e, logo, passar a agir como políticos, mas alguns não parecem dispostos a esquecer a cultura dos porões, as armas, e o tacape. Com Ulisses, e não com Mourão, ou muitos dos que habitaram o porão, levantar a voz: “Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério”. Não, nada disto, é Constituição, e não o tacape. O nosso é tempo de resgate da vida, resistência, empunhar a voz sob a potência da razão, e assim apresentar a grande e poderosa arma que impõe pânico aos candidatos a ditador.

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