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Alfredo Attié

Doutor em Filosofia da USP, Titular da Cadeira San Tiago Dantas e Presidente da Academia Paulista do Direito, autor de Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito

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Não existe trabalho sem proteção jurídica

"Se novas relações de trabalho têm aparecido, isso não significa que o direito deve abandonar sua função protetiva, de criar civilização", diz Alfredo Attié

Entregadores por aplicativo (Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil)

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Até há pouco tempo, dizia-se que “o Brasil é assim” ou “o brasileiro pensa assim. Era o julgamento de um pretenso “caráter nacional,” a partir do modo de ver o mundo de uma pequena elite econômica, política e social, que, de tanto dominar (isto é, tomar posse e conta dos bens privados e dos espaços “públicos”), acabou por impor um padrão de ação e reflexão, tido como “normal” e “adequado” pela antiga classe media, que sonhava com ascensão social e desprezava a maioria do povo, da qual pretendia se diferencia, submetendo-se aos poucos donos do poder e adotando seus preconceitos.

Entre tantos, o preconceito que talvez se tenha mais impregnado na costura social dessa minoria tenha sido a aversão ao trabalho e a trabalhadoras e trabalhadores. O trabalho, diz a estrutura colonial ainda presente, não tem valor e, bem por isso, não precisa de proteção da sociedade, pois a relação entre quem trabalha e quem usufrui do fruto do trabalho é pessoal, no sentido mais cru da palavra. A relação de trabalho é algo que se dá, segundo esse conjunto de ideias preconcebidas, entre o empregado e o empregador. O empregado é pobre, despossuído, por isso precisa trabalhar, diferentemente do empregador, que tem posses e pode submeter alguém ao trabalho. Assim, o empregador, que usufrui do trabalho, não remunera o trabalho, mas presta um auxílio ao empregado. Quem pretensamente protege a pessoa trabalhadora é o patrão, a patroa. O ganho que o empregador tem, explorando o trabalho alheio, fica escondido dessa equação. É o empregado que ganha pelo simples fato de receber a chance de trabalhar e, por isso, uma proteção pessoal. Portanto, o trabalhador, a trabalhadora passam a ter um vínculo pessoal com quem os emprega, e a sociedade não pode nem deve interferir nessa relação entre o dono ou a dona e seus trabalhadores e trabalhadoras.

Não é preciso muito esforço de crítica para compreender que essa forma de ver o universo do trabalho tem raiz na estrutura colonial e na longa experiência escravocrata brasileiras, das quais o pensamento da elite e da antiga classe média tem dificuldade, por falta de interesse, de se desvencilhar.

Daí a razão de também o direito do trabalho sempre ter sido visto, no Brasil, como um ramo mais pobre da experiência jurídica, aparecendo a Justiça do Trabalho como um estorvo para o mundo do trabalho e para a vasta comunidade jurídica brasileira. 

Esse preconceito pesa muito na formação e na educação dos profissionais do direito, no Brasil. Ao ponto de a proteção jurídica do trabalho ter sofrido inúmeros revezes, ao longo do tempo, mesmo sob a Constituição de 1988. O mais duro, claro, foi a recente reforma trabalhista, feita em nome de uma vaga ideia de “modernidade” das relações do trabalho, que precisariam, nessa concepção enviesada, de – claro – menos proteção social, pois haveria outras formas de trabalhar na “sociedade contemporânea” (os partidários dessas ideias enchem a boca ao usarem esses termos, que mal compreendem e mal explicam), outros vínculos, e qualquer interferência protetiva estatal significaria impedir o “curso natural do desenvolvimento.

Em síntese, o “Brasil,” ao tentar impedir a desregulação das relações de trabalho – esse mesmo “Brasil” que negava qualquer regulação, porque o senhor, a senhora teriam sobre seus escravos e escravas poder absoluto, decorrente da “proteção” que lhes devotariam - , estaria tentando “travar o progresso,” “impedir os avanços técnicos,” “viver no atraso.” 

Nessa visão falseada de “modernidade” estaria incluída a noção de que o trabalho do futuro seria o “autônomo” e “empreendedor.” Tenta-se impor aos trabalhadores a ideia de que desejariam se desvencilhar das proteções sociais, dadas pelas leis e pela Constituição, para tomar conta de seu destino, por sua própria iniciativa e risco.

Esse tipo de “modernidade” choca-se com a autêntica função que o direto deveria desempenhar na sociedade. O direito, tenho insistido, tem o caráter de um processo civilizatório (como se pode ler em ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. SP: Tirant, 2021). Isso significa, entre outras coisas, que ele age ou deve agir precisamente para ocupar o espaço e o tempo das relações sociais, retirando-as de seu modo anticivilizatório, isto é, protegendo-as das práticas de dominação, exploração e opressão (como se pode lr em ATTIÉ, Alfredo. A reconstrução do Direito. PA: Fabris, 2003). E o direito do trabalho foi um importante passo nesse processo de proteção humana.

Se novas relações de trabalho têm aparecido no curso da história, mesmo em ritmo acelerado, nos anos mais recentes, isso não significa que o direito deve abandonar sua função protetiva, sua missão de constantemente criar civilização, de agir pontualmente nas áreas que vão se tornando mais delicadas. O direito não pode deixar as situações sociais ao Deus dará, fastando-se de sua responsabilidade. Ao enxergar novas situações, ele deve buscar entende-las e ver nelas o que significa de benéfico e maléfico para o desenvolvimento humano e sustentável. No que há de benéfico, as leis devem ser reformuladas para se adaptarem a um novo passo civilizacional. Mas, ao identificar aspectos nocivos, o direito deve atuar para impedir que se perpetuem, para corrigir erros e afastar malefícios.

Os profissionais do direito, sobretudo os que atuam nas profissões públicas, entre as quais a da Justiça, precisam compreender isso, para evitar que apenas se façam expectadores, que aplaudem cada apresentação nova, como se a simples novidade merecesse apoio por aparentar ser moderna.

O caso dos aplicativos empregados como ambiente de trabalho – portanto habitual prestação de serviço, em regime de subordinação ou dependência e de remuneração – é exemplo dessa inovação.

As leis trabalhistas foram pensadas sobretudo tendo em consideração o modelo de trabalho fabril: em ambiente fechado, trabalhadoras e trabalhadores ingressavam em horário determinado, ali prestando seu serviço por tempo certo, contra remuneração estabelecida pelo empregador, do qual empregados se tornavam dependentes ou subordinados. Na medida em que esse modelo se universalizou, alcançando todos os espaços de trabalho, em todas as áreas de atividade humana, as regras protetivas foram sendo ampliadas para abarcar todas as hipóteses em que ocorressem condições semelhantes à do trabalho prestado na fábrica. Isso se deu graças à luta empreendida por trabalhadores e trabalhadoras exatamente por proteção pública contra a exploração privada ou doméstica de empregadores e empregadoras, que, por sua vez, lutavam por menor ingerência estatal. A força desses dois lados se refletia nas leis, espécie de resultante do conflito entre pessoas dotadas de mais poder contra pessoas com maior ou menor capacidade de resistência.

Ora, negar regulação do direito, em geral, e do direito do trabalho, em particular (naquilo que se adaptar a essa relação e ajudar na proteção de quem trabalha , sobretudo numa situação bastante delicada como a do Brasil – e de outros Países, talvez a imensa maioria deles) a trabalhadores do ambiente virtual significa abandonar uma parcela cada vez maior da população em atividade laboral às meras dominação, opressão e exploração de quem se utiliza dessa capacidade de trabalho e lucra sem contrapartida para trabalhadores e para a sociedade, em geral.

No caso brasileiro, há uma agravante, que é a revivescência de relações servis sob a máscara do enganoso “empreendedorismo contemporâneo.

Sob o regime da escravidão, havia, no meio urbano brasileiro – sobretudo no Rio de Janeiro, capital que havia, após a Independência assumido a função de Lisboa e passado a explorar o País e sua mão de obra como antes fazia a metrópole portuguesa – uma forma de exercício do trabalho escravo, denominada de “escravo de ganho.” O escravo ou a escrava gozavam de aparente autonomia e liberdade, pois não precisavam dormir sob o teto de seus donos, trabalhavam na rua, prestando serviços ou vendendo produtos sob paga dos que se utilizavam deles. De modo diário ou mesmo semanal, tinham o dever de levar a amo ou ama o resultado de suas atividades, recebendo apenas a velha proteção do mínimo de roupa e alimentação para sobrevivência não de si, mas da capacidade de trabalhar e de se submeter ao regime da servidão. O interessante é notar que, entre tais atividades estava até mesmo o transporte particular de pessoas, no carregar de cadeiras de arruar e liteiras.

Tenho observado (leia-se em https://www.migalhas.com.br/quentes/360553/relator-critica-uber-e-identifica-relacoes-servis--escravos-de-ganho) a reprodução dessa relação, nas atividades exercidas no ambiente virtual dos aplicativos. As características da aparente liberdade e autonomia do trabalho por conta própria, que engloba cuidar das próprias despesas para a realização do serviço – ter a bicicleta, a moto, o carro, ou cuidar de pagar por si a locação de um veículo, ainda, cuidar da manutenção, do combustível, dos ornamentos do serviço – e entregar o produto do trabalho ao dono do aplicativo ou sistema de uso de trabalho alheio, que retira o que lhe interesse e impõe, pagando ao que trabalha a porcentagem que fixa.

O entendimento de muitos, estranhamente, seria o de que aqui haveria uma pessoa empreendedora individual, pequeníssima empresária, que buscaria lucro e pagaria pelo emprego do serviço prestado pelo dono do aplicativo, que apenas associaria quem trabalha a quem precisa do serviço. É um entendimento que mais se aproximaria da ficção, se não se tratasse mesmo de uma interpretação antijurídica de uma relação tipicamente de trabalho subordinado.

Os adeptos dessa “modernidade” perdem-se em citações desse ou daquele autor estrangeiro, sem se dar conta de que, em nosso País, como em muitos outros, nada há de novo sob o sol da colonização, a não ser a capacidade de disfarçar o ambiente fechado das fábricas por meio do belo design dos softwares.

Talvez estejamos diante da ameaça absoluta da mais vasta e profunda servidão humana e da natureza.

O direito não se pode omitir e tem a missão implícita em seu próprio modo de ser de impedir a degradação humana e do mundo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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