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Pedro Marchioro

Professor, escritor e doutorando em sociologia pela UFPR. Pesquisador do tema das migrações, também milita em comunidades de base e associações de imigrantes em Curitiba-PRUFPR. Pesquisador do tema das migrações, também milita em comunidades de base e associações de imigrantes em Curitiba-PR.

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Não existem crises no Haiti: um balanço de 2023

A migração haitiana é estrutural e não fruto de uma crise. Não é fruto de um acontecimento inesperado, extraordinário e muito menos recente

(Foto: Reuters)
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No começo desse ano a imprensa haitiana fez um balanço sobre os principais desafios enfrentados pelo país no decorrer de 2023. Trago aqui alguns trechos dos principais jornais. 

Segundo o Le National,“o ano de 2023 foi, sem dúvida, um dos mais difíceis para o Haiti, caracterizado pela deterioração da segurança, inflação crescente e por desafios políticos, econômicos e sociais que levaram muitos cidadãos, profissionais de saúde, professores e quadros de todas as categorias a abandonar o país”.

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O Le Nouvelliste, uma das mídias de maior alcance no Haiti, deu destaque ao problema da segurança interna devastada pelas gangues que, no ano passado, impressionaram pela capacidade de infligir caos ao país. Vimos reportagens na mídia brasileira, no Fantástio por exemplo, abordando o assunto. Os bandos armados se especializaram no sequestro de civis e personalidades do mundo político como moeda de troca por dinheiro ou outros serviços; também cometem assassinatos, roubos, terrorismo e se oferecem ao mercado como milícias mercenárias. 

O Nouvelliste é pessimista quanto as propostas de resolução do problema. Atacam a Missão Multinacional de Apoio à Segurança nacional do Haiti (MMSA), reclamando mais efetivo e treinamento da polícia nacional: “o efetivo da força será insuficiente para fazer frente a crise de segurança do Haiti”. O Jornal ainda lançou uma pesquisa com a pergunta: “Você acha que a colaboração entre a população e as forças de segurança ajudará a combater as gangues?”. As respostas obtidas teriam atingido 100% o “não”.

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O jornal Balistrad lembrou algumas das ações dessas gangues. Em abril de 2023 o bando Kokorat San Ras incendiou 25 casas em Artibonite, região noroeste do país. No mesmo mês, membros do bando Canaan atacaram a vila de Onaville, fazendo com que muitas famílias fugissem da área. Uma das consequências das ações desses grupos é a formação de bolsões de fugitivos da violência e do terror. Através do terrorismo esses bandos conseguem “liberar” grandes áreas que são abandonadas pelos moradores tomados de pânico, para usá-las como quiserem. Segundo um relatório das Nações Unidas, somente no bairro Carrefour-Feuilles quase 5.000 moradores tiveram que abandonar suas casas devido aos ataques dos bandos. Por sua vez, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) informou a existência de pelo menos 20.719 desses refugiados vivendo em 26 acampamentos improvisados da região metropolitana de Porto Príncipe. É desses acampamentos que se formarão, necessariamente, os novos migrantes e refugiados haitianos. 

Outra consequência foi o surgimento de organizações civis e de policiais como resposta à violência das gangues, essa resposta ficou conhecida pelo slogan “O medo mudou de lado” (la peur a changé de camp). Os agentes de segurança nacional, alvos diretos dos bandos, impuseram um plano de greve constante contra o governo de Ariel Henry e sua inação, falta de investimentos e desinteresse no fortalecimento ao combate aos paramilitares (relembro o clima de suspeita que há em torno do atual presidente devido ao seu suposto envolvimento no assassinato, em 2021, do então presidente Juvenel Moïse). Grupos civis de defesa organizados a partir de igrejas ou associações de bairro, criaram organizações como o Bwa Kale (madeira cascuda) que, em abril do ano passado, como prova de fogo, interceptaram uma van com 14 indivíduos fortemente armados e os executaram ali mesmo.

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“Cansados de ser vítimas”, relata o Le National, “no sábado, 26 de agosto de 2023, várias centenas de fiéis da igreja L'Église Piscine de Bethesda, liderados pelo conhecido como Pastor Marco, armados com facões, paus ou lanças, marcharam em direção a Canaã (ao norte da capital) para desalojar a poderosa gangue homônima que ali operava. Segundo as informações, várias dezenas de fiéis foram mortos e outros ficaram feridos”.

Entretanto, e ao contrário do editorial do Le Nouvelliste, esses movimentos de resposta conseguiram diminuir o nível de insegurança em diversas regiões do país. Segundo relatório do Centro de Análise e Pesquisa em Direitos Humanos (CARDH) publicado em 24 de junho de 2023, 204 membros de gangues foram mortos no Haiti; 155 supostos foram executados pelas organizações civis, incluindo 24 em Artibonite, 12 em Grand Anse, 5 no departamento do Planalto Central.

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Por fim, em uma entrevista ao Le National, Sam Guillaume, gestor de comunicações do Grupo de Apoio aos Retornados e Refugiados (GARR), considera que as principais razões que levam os haitianos a abandonar o seu país continuam a ser o desemprego e a insegurança: “Infelizmente, eles não têm escolha, pois o país não lhes oferece alternativa economica e social”. 

Este foi o balanço que fizeram os principais jornais do país. O que houve de novo: o empoderamento dos bandos paramilitares, diversificação de suas atividades e as respostas da sociedade civil organizada. Mas de modo algum esse quadro caótico é novo ou pode ser categorizado como “crise” como, vez por outra, quando o Haiti é lembrado, faz a imprensa e os órgãos internacionais para justificar intervenção militar, de ONGs ou impor políticas de mesmo viés. E esse é um ponto que precisamos dominar se quisermos ombrear os resistentes haitianos, caribenhos e latino americanos.

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A migração haitiana é estrutural e não fruto de uma crise, como venho afirmando desde meus primeiros trabalhos sobre o tema. O termo “crise” é variável em seu sentido conforme o contexto. Nos últimos anos, devido a explosão de migrantes venezuelanos no Brasil e no mundo, é ela que tem dado o sentido que o termo assume no debate geral. Mas a migração haitiana não é fruto de um acontecimento inesperado, extraordinário e muito menos recente, que represente uma crise. Aliás há que se discutir se alguma das migrações recentes o são. 

Os haitianos migram, pelo menos, desde o reconhecimento de sua independência, em 1825, pelas potências colonizadoras que nós, 200 anos depois, inda conhecemos bem, a saber: França, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos. Não é preciso dizer que esse reconhecimento foi obtido mediante um acordo em que, de um lado estava um Haiti devastado pelas 3 décadas de guerras e destruição, e de outro os 14 navios de guerra franceses com seus 528 canhões com ordem por fogo na ilha. O estado haitiano estava obrigado a pagar uma indenização de 150 milhões de francos. O plano de pagamento da dívida se deu sobre o aumento de impostos que recaiu sobre os camponeses, os primeiros a migrar após a Independência. 

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Além disso o Haiti foi embargado, demonizado, para usar a expressão correta. Sim, o haitianismo, propagado pelas elites escravocratas, era um tipo de doença à qual era preciso medidas de maior precaução. No Brasil essa doença foi reconhecida e está documentada, por exemplo, nas atas do Senado e da Câmara, e nas ordens dos senhores latifundiários de Minas Gerais e Rio de Janeiro, que orientavam suas milícias, embriões da moderna polícia, a desbaratar quaisquer agrupamentos de negros, revistá-los, examinar o que chegava nos portos, e prendê-los e espancá-los caso necessário. Um dos documentos falam de medalhas encontradas nos bolsos de escravos com a insígnia de Jean Jacques Dessalines e sua célebre frase: “Ousemos ser livres. Ousemos ser assim por nós e para nós mesmos”. As elites escravagistas não dormiam, e podemos imaginar a força com que investiram na contenção de sua contaminação. 

De lá pra cá o Haiti foi palco de golpes de estado, guerras, ocupações estrangeiras, catástrofes naturais, fome, pobreza e sofrimento. Em resumo, ali não se viveu uma só década que não tenha ocorrido um caos desestruturante no país. E se considerarmos a migração dentro da diásporas haitiana, temos de nos reportar aos sequestrados da África ocidental como seus precursores. Pois grande parte dos escravos que fizeram a revolução, por exemplo, eram boçais, isto é, tinham nascido na África ou eram a primeira geração nascida em Haiti. Os haitianos, para citar Édouard, pesquisador natural de lá, foram os primeiros a viverem isso que chamamos de globalização. 

A migração haitiana só se caracteriza como crise se estirarmos o conceito 180º e o ampliarmos para suportar também o seu contrário, como o faz Mészáros em relação às crises do Capital, isto é, para indicar aquilo que é contínuo, duradouro e regular. O Haiti e grande diaspora têm, por fim, na crise o seu elemento estrutural, necessário e funcional dentro desse quadro de crises globais. 

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