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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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Ninguém mais escreve cartas de amor ao Talibã

Eu fiz uma profecia muito simples na época, que em pouco mais de 6 meses nenhum dos analistas campistas quereria mais a paternidade do exército talibã

(Foto: Reuters)
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Virei crítico contumaz do que tenho denominado (e alguns outros articulistas também) de “campismo”. Uma visão que reduz o mundo a um tabuleiro de war e no qual as pessoas, as classes sociais e os povos desaparecem. Há inclusive um esforço para denominar este reducionismo como marxismo, a um arremedo de maniqueísmo, visão mecanicista de história e historicismo de direita. A ideia de que só os “players”, só os Estados, os chefes de Estado, os exércitos e suas maquinações de gabinete importam, na análise, se aproxima do historicismo de direita alemão e tem pouco que ver com as análises históricas de Marx, Engels e Lênin.

Sim, os 3 sempre levaram em consideração a estrutura, as máquinas de guerra, o poder de Estado, mas em todas as análises que faziam levam em consideração os interesses das classes em conflito, dos povos em luta, das frações de classe, do aspecto humano marxista, na qual, para se determinar se algum movimento ou guerra é justo ou injusto, não basta uma visão maniqueísta de se um país é antitético aos EUA ou não, mas se intrinsecamente estes movimentos são de libertação dos povos, do proletariado, da grande maioria da população de um determinado país. A maior prova disto são os textos de Marx posteriores a derrocada da Primavera dos Povos de 1848-1851, em que ele faz uma análise detalhada das perdas e da eliminação (inclusive física) da vanguarda de diversos países, prevendo que, por pelo menos uma década, não haveria movimento revolucionário na Europa. Estava certíssimo, só haveria novamente um levante progressista com a Comuna de Paris, duas décadas depois, em 1871.

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Lênin, por sua vez, em seus escritos sobre os conflitos que geraram a Primeira Guerra Mundial (incluindo as guerras nacionais russas que ele denominou de nacional chauvinistas) nunca tomou uma posição em favor das potências em conflito, muito pelo contrário, classificando as lutas nacionais, entre Estados sob dominação burguesa, de conflitos interimperialistas. Lênin fazia análises minuciosas, expressando o desejo que os conflitos levassem a um desgaste do domínio da burguesia em cada país e um avanço na consciência de classe, e que a única guerra justa era a guerra de Libertação de classe contra as elites em cada país.

A dialética não é esta estranha forma de análise, na qual se hipostasia uma tese anterior, e os fatos só poderão comprovar a tese feita, sem nenhum conhecimento factual. O que se tem feito no Brasil são análises prévias de “geopolítica”, nas quais ideias previamente concebidas sempre serão magicamente comprovadas peal realidade, que sequer é conhecida a fundo.

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Este pensamento mágico transformou a Rússia de Putin numa espécie de defensora dos ideais de Liberdade, de um mundo que forçosamente será multilateral, e a comprovação deste fato é apenas o discurso repetido por analistas que auto referendam uns aos outros. Desta feita, nem se precisa se buscar um conhecimento mais preciso das razões históricas da guerra entre Rússia e Ucrânia. Basta reduzir a Ucrânia a um acampamento de nazistas e a Rússia a uma missão desnazificadora da humanidade. É o outro lado da moeda da ideia do eixo do mal fabricado pela imprensa da OTAN. Todos os detalhes, inclusive de classe e de interesse desta guerra somem. Se a BBC, a CNN, o El País e toda a imprensa ocidental pintam a Rússia como o diabo vermelho malvadão a ser derrotados (pelos interesses do imperialismo da OTAN presentes nesta guerra), há um punhado de jornalistas que faz a mesma coisa do outro lado, reduz a Ucrânia ao batalhão de Azov e transforma o conflito numa batalha do bem contra o mal.

Mas este artigo não é sobre a Ucrânia e a Rússia, já escrevi aqui 4 artigos sobre o mesmo tema, é, na verdade, de como esta versão mecanicista e antidialética de análise é, ao fim e ao cabo, antimarxista. Fere as ideias básicas de Marx e Lênin sobre a autodeterminação dos povos e obscurecem os interesses contraditórios da classe dominante da própria Rússia, que está longe de ser revolucionária ou socialista. Mas o assunto em voga é o Talibã e não a Rússia desta vez.

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Em 2021 os Estados Unidos retiraram-se do Afeganistão. Os campistas exultaram exaltando a vitória da “guerrilha libertadora do Talibã” contra o imperialismo estadounidense. Obviamente que qualquer marxista defende que cada povo determine por si sua história e a retirada em si das tropas americanas é um fato positivo. O problema da análise era a paixão repentina pelo Talibã, transformada, da noite para o dia em guerrilheiros da Liberdade. 

Fui um dos poucos que se colocaram contra esta visão romanceada do Talibã. Lembrei muito da história do esquecimento, no Massacre de Macondo, nos 100 anos de solidão, do Gabriel Garcia Marques. Uma crônica do Bogotaço colombiano, silenciado pela imprensa, como se nunca houvera existido. De uma hora para outra, nossos geopolíticos, que se outorgam como radicais marxistas, esqueceram completamente qual era o caráter de classe dos mujahedins Talibãs. Tornaram-se ahistóricos, da noite para o dia. O Talibã sequer pode se considerar uma guerrilha totalmente afegã, boa parte dos soldados arregimentados para esta guerra o foram na Arábia e em outros países árabes, para uma “guerra santa” contra os “infiéis russos”. Um movimento de guerra santa muito próximo que faz o ISI, e que foi financiado, assessorado e municiado pelos Estados Unidos e pela Arábia, com participação direta da CIA.

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Uma guerrilha fundamentalista anticomunista, feudal e reacionária, que prega a total submissão das mulheres, e que se caracterizou por um regime absoluto de terror a todos que se opõe a seus métodos. Cheguei a observar que, além da incoerência de analistas comunistas chamarem de “libertadores” a anticomunistas com métodos nazifascistas, as mulheres não eram um detalhe e havia um relativismo ético extremamente condenável ao celebrar a vitória de uma guerrilha que escravizaria mais da metade da população afegã. Na época desta ilusão coletiva dos “analistas de geopolítica” tive que ouvir joias do tipo: “Por conta da comunidade internacional, o Talibã terá que ser mais respeitoso com as muheres”, “o Talibã evoluiu e não tratará as mulheres do mesmo jeito”, “Para se relacionar com a China e a Rússia os talibãs seguramente tratarão melhor as mulheres” e bobagens do mesmo jaez.

Na análise campista os fatos são trocados por desejos, que vão confirmar a hipótese hipostasiada que divide o mundo entre bons e maus, os que estão contra os EUA e os que estão a favor. Esta simplificação teórica é lamentável, não é verdade que o inimigo do meu inimigo é meu amigo, aliás, isto obscurece as lições de Lênin sobre alianças circunstanciais, táticas, temporárias com inimigos de classe, sem ter ilusões sobre eles e seus propósitos. Assim, as pessoas, as classes e suas frações, os homens, as mulheres, seus desejos, que devem ser considerados na ideia original de emancipação da humanidade (que é o leitmotiv do marxismo) desaparecem, para sempre se confirmar a hipótese religiosa campista, que parece ser conduzida por algum deus ex machina que opera apenas nesta dualidade de amigos e inimigos.

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Assustadoramente os campistas ficam muito próximos do pensamento de Henry Kissinger, que apoiou aberto a ditadura de Pinochet e teria cunhado a frase, “é um ditador, mas é o nosso ditador”. Os talibãs seriam a “versão de esquerda” (lembrando que eles não são de esquerda) desta visão torpe de “tirania aliada”. Eu alertei na época, que passados 6 meses, nenhum dos campistas que celebravam o talibã quereriam falar mais deles.

Neste momento as mulheres estão proibidas de frequentar qualquer escola e faculdade, não podem sair às ruas sem a autorização e ou companhia de seus pais, irmãos mais velhos ou maridos e são condenadas à morte pela simples tentativa de estudar ou por toda e qualquer violação da Xaria. Não, Rússia ou China não estão evitando nenhum tipo de exagero do talibã e, como previsível, os afegãos não foram libertados, mas sim submetidos a uma cruel tirania. Aliás, a própria forma da retirada estadounidense é suspeita, haja vista a grande quantidade de equipamentos militares deixados para os ex aliados dos próprios americanos.

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Nenhuma das previsões de distensão pacífica pelo Talibã feita pelos “analistas” foi confirmada. 

A outra hipótese, mais simples, para a retirada das tropas, era a de que a própria ascensão da Rússia como protagonista dispensava aos Estados Unidos a necessidade de permanência no Afeganistão, de criar a narrativa do grande satã terrorista, e deslocar esta área de tensão para a própria Rússia (o confronto Rússia-Ucrânia, aliás, serve muito bem a estes propósitos). Se podia novamente realocar a narrativa do eixo do mal para Rússia e China. Seria mais interessante aos Estados Unidos retirar-se e deixar esta permanente área de instabilidade exatamente às fronteiras de seus dois inimigos, deixar o povo afegão a sua própria sorte, dominado por um exército tirânico extramente bem armado e disposto a executar toda e qualquer pessoa que discorde de suas orientações político-religiosos.

Eu fiz uma profecia muito simples na época, que em pouco mais de 6 meses nenhum dos analistas campistas quereria mais a paternidade do exército talibã. O silêncio é ensurdecedor. Ninguém mais escreve cartas de amor ao Talibã.

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