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Paulo Amaro Ferreira

Historiador e professor da rede pública de ensino do Rio Grande do Sul

10 artigos

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O 20 de setembro e a Revolução Farroupilha

A Revolução Farroupilha é manipulada pela direita e desfigurada pela esquerda pequeno burguesa, que utiliza o identitarismo contra os trabalhadores também nesse caso

Tropas dos lanceiros, formada por negros (Foto: Reprodução)

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Paulo Amaro, DCO

Dia 20 de setembro é feriado no Rio Grande do Sul. Foi neste dia, no ano de 1835, que se iniciava o mais longo conflito civil da história do Brasil, que durou dez anos ininterruptos, terminando em 1845, através de um acordo oferecido pelo governo imperial aos generais farroupilhas. Durante esses dez anos, o extremo sul do Brasil foi palco de uma guerra digna de produções cinematográficas, com direito à proclamação da república e à libertação dos escravos que lutavam pela causa farroupilha.

A chamada Revolução Farroupilha ocorre no contexto da crise do mercantilismo e da emergência do modo de produção capitalista em nível internacional. Nesse contexto, o escravismo, o monopólio colonial e outras formas de acumulação primitiva, constituiam um entrave ao desenvolvimento pleno do capitalismo, cuja emergência das fábricas modernas e o consequente aumento de produção exigiam nova organização econômica internacional e novas relações de produção.

Entretanto, a emergência da produção do café no sudeste brasileiro acaba por dar uma sobrevida ao escravismo, determinando também a permanência de um governo de tipo imperial, contrariando a tendência da proclamação das repúblicas no nosso próprio continente. Obviamente que um desenvolvimento histórico com tamanhas contradições não poderia deixar de gerar enormes conflitos internos. E é por aí que devemos buscar analisar também a Revolução Farroupilha.

Porém, o que menos ocorre com relação a este acontecimento, ou melhor dizendo, a este período da história regional do sul brasileiro é uma análise baseada no desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção da época. De parte da direita e da burguesia riograndense, o que se enfatiza é uma história baseada em feitos heróicos dos grandes líderes, que supostamente guiados por sentimentos elevados, lutavam por liberdade no sentido mais amplo da palavra. Obviamente, conhecendo as classes dominantes, de fato não é possível acreditarmos nessa versão. Até porque a história não se move através de ideias elevadas ou coisa parecida, mas sim a partir do desenvolvimento material da humanidade.

Entretanto, grande parte da própria esquerda, com destaque para a esquerda pequeno burguesa, tampouco faz uma análise séria da história, limitando-se a emitir juízos de valores, numa espécie de condenação moral, através dos seus tribunais da inquisição identitária. Dessa forma, o conflito civil mais longevo da história do nosso país transforma-se no movimento de homens, machistas, escravistas, e uma porção de “istas” mais, enterrando qualquer possibilidade de análise crítica deste conflito.

As alegações desta esquerda são inúmeras. Uma das mais comuns é a de que os líderes do movimento farroupilha eram donos de escravos, o que é uma verdade. Porém, perguntamos a esses “santos” da história e da esquerda, esses imaculados, qual foi o movimento de luta nesse período que não foi liderado por escravistas? Seria preciso lembrar para esses setores que a história é dialética, que se move através da luta de classes, e não como um conto de fadas ou um movimento celestial. Todo o processo de luta pela independência na América Latina foi liderado por setores cujos líderes eram em grande parte donos de escravos também, com exceção do Haiti. Simón Bolívar, proclamado por muitos desta mesma esquerda como um grande líder latino americano (e não estamos negando que assim o seja), era também um dono de escravos (e não de poucos escravos, diga-se de passagem).

Neste momento da história, a classe que se colocava como líder do progresso histórico era a burguesia, nos diversos lugares do mundo. E antes que nos acusem de sermos direitistas, recomendamos a leitura do primeiro capítulo do Manifesto Comunista, e verão aí, de forma mais clara impossível, como os fundadores do socialismo científico desenvolveram essa linha de pensamento. Sobretudo na América, onde o desenvolvimento do capitalismo será bastante tardio, e onde nas primeiras décadas do século XIX inexistia qualquer classe operária ou até mesmo as próprias relações assalariadas de trabalho eram fenômeno raríssimo, não havia como ser diferente, não havia como outra classe social levar adiante a luta pelo progresso nesse momento.

Outra acusação infantil dessa esquerda é a de que os líderes farroupilhas eram machistas. Ora, convenhamos, numa sociedade baseada em forças materiais tão atrasadas, há quase 200 anos, como esse fator poderia ser diferente? Achem algum líder, algum personagem, ou até mesmo algum movimento desta época em nosso continente que não fosse machista também. Esse argumento ultrapassa todos os limites da infantilidade e da esquizofrenia dos setores da esquerda classe média.

O maior problema, no entanto, não está no fato da má apreciação da história, num sentido pretérito, mas sim na transposição dessa ausência completa de lucidez para a ação política no presente. A chamada festa farroupilha é uma das festas mais populares do Rio Grande do Sul, celebrada em todas as cidades do estado praticamente sem nenhuma exceção. Durante uma semana inteira há uma enormidade de festejos, obviamente capitaneados muito inteligentemente pela burguesia gaúcha, que se aproveita da completa confusão da esquerda para fazer proselitismo entre os trabalhadores que participam destas celebrações.

A classe operária gaúcha é composta, em sua maioria, por trabalhadores que vieram da zona rural para as grandes cidades nos últimos 70 anos, mas que ainda possuem um grande vínculo com um passado rural. Uma parte significativa dessa classe operária celebra a semana farroupilha, ainda que de forma muito confusa, dirigida pela direita, que hegemoniza a organização dos festejos. E, ao invés de buscar um diálogo com essa classe operária, procurando analisar de forma mais crítica a Revolução Farroupilha, problematizando a questão dos camponeses na atualidade, que são expulsos de suas terras pelo latifúndio, a esquerda classe média, guiada pela doença do identitarismo, atua no sentido de estigmatizar todos que participam dos festejos como machistas e apoiadores do escravismo. É ou não é uma política completamente desorientada?

Esses setores são tão desorientados, tão guiados por essa doença que os faz parecerem animais desgovernados e atiçados por algum feitiço, que sequer param para pensar questões que saltam aos olhos até dos mais desatentos, como por exemplo, o fato de que os farroupilhas proclamaram a república, enquanto o governo central era um império, uma forma de governo em clara contradição com o progresso republicano. Ou então, mais gritante ainda, é o fato de que os farroupilhas decretaram o fim da escravidão para todos os negros que lutavam contra as tropas imperiais, enquanto a escravidão estava sendo reforçada no país por conta da ascensão do cultivo do café.

E não, nós não esquecemos o massacre de porongos, onde os negros foram atacados covardemente em seu acampamento, num conluio entre David Canabarro e Caxias. Porém, não podemos esquecer que os farroupilhas perderam a guerra do ponto de vista militar, sendo derrotada também a proposta do fim da escravidão. Dessa forma, os negros transformaram-se no último entrave para o fim do conflito, e seu destino estava já traçado pelos vitoriosos, ou seja, pelo império.

A Revolução Farroupilha foi um movimento altamente popular, que mobilizou os setores mais populares do nosso estado, incluindo tropas exclusivas conformadas por negros, os chamados lanceiros. Não foi nem de longe uma luta das elites. Ela chocou-se contra uma estrutura central de governo que, além de arcaica, colocava todas as demais províncias em situação de submissão aos centros produtores de café. E relembrar essa história, essa passagem marcante para o nosso estado, não transforma ninguém em machista ou muito menos em apoiador do escravismo. Mais valeria para esses setores da esquerda classe média voltar aos livros de história (se é que em algum momento eles já os visitaram), e analisar a história como ela realmente é, ou seja, fruto da luta de classes e do movimento das forças produtivas, e não um movimento celestial da boa moral e dos bons costumes.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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