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Alex Solnik

Alex Solnik é jornalista. Já atuou em publicações como Jornal da Tarde, Istoé, Senhor, Careta, Interview e Manchete. É autor de treze livros, dentre os quais "Porque não deu certo", "O Cofre do Adhemar", "A guerra do apagão" e "O domador de sonhos"

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O dia em que conheci Brilhante Ustra (3)

"Fazia frio, eu não tinha tido coragem ainda de me colocar embaixo daquele cano que eles chamam de chuveiro, de onde sai água fria"

Carlos Alberto Brilhante Ustra (Foto: ABr)
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Eu estava naquela que era a minha posição favorita, sentado no “meu” colchão, encostado à parede do fundo, o mais longe possível das grades, talvez para que não percebessem que estou onde estou, talvez assim esquecessem, talvez eu ficando sentado no fundo eles não me chamem para ir ao segundo andar, era o que eu mais temia, a qualquer hora isso podia acontecer, do dia ou da noite, lá não tem hora, é 24 por 24, já era o meu terceiro dia ali, fazia frio, eu não tinha tido coragem ainda de me colocar embaixo daquele cano que eles chamam de chuveiro, de onde sai água fria, fazia frio na época, ainda bem que eu tinha vindo de pijama de flanela, e também ganhei uma malha azul, bem quente, que meus sequestradores apanharam para mim no dia do meu sequestro, então de vez em quando passava pela minha cabeça a ideia de tomar banho, mas eu logo matava a ideia, um frio do cacete, água fria e tem mais uma coisinha, a toalha, eu não tinha toalha, nem os caras forneciam, pensa o que?, que é hotel, cada um se vira como pode, se enxuga com uma camiseta, sei lá, improvisa, o brasiliro é rei do improviso, se vira em qualquer situação, pro brazuca não tem tempo ruim, não tem tu, vai com tu mesmo, quem não tem cão, caça com gato, e por aí vai, e eu tive a infeliz ideia - já não lembro se fui eu mesmo, se foi O.R., o que garanto é que as pessoas que habitavam as seis celas daquele pequeno quintal ficaram sabendo que eu precisava de uma toalha para tomar banho, se alguém podia emprestar, se alguém podia ajudar, acho que foi O.R., num dos raros momentos em que não estava no segundo andar, porque eu não tinha essa intimidade toda para pedir uma toalha, só que a consequência disso, alguns minutos depois o carcereiro apareceu na frente do X-5.

    Ele já tinha uma puta duma cara de malandro, mas dessa vez estava mais irônico do que nunca, as suas sobrancelhas mostravam ironia, os seus olhos se divertiam com tudo aquilo, e aí ele me estendeu alguma coisa e disse que os camaradas do X-1 tinham mandado a toalha que eu pedi, “pega, vai tomar banho”, “é toda sua”, “gostou da cor?”, o que eu vi na sua mão foi mais um pano de chão totalmente molhado que uma toalha, reclamei em voz alta, mas nem precisava porque a cela deles estava perto da minha, e quando eu reclamei os caras do X-1 caíram na gargalhada, eles acharam engraçado mandar um pano de chão em vez de toalha, cada um se diverte como pode.

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   Continuei sem banho, sentado no “meu” colchão, encostado à parede, e pensando sem parar, é claro que todo mundo pensa sem parar o tempo todo, mas uma coisa é pensar quando você está numa zona de conforto, previsível, quando sabe que depois da aula tem o recreio, depois do recreio outra aula e depois você pega o ônibus ou o carro e previsivelmente você vai almoçar, os pensamentos em situações assim são leves, discretos, silenciosos (dá para falar consigo mesmo em voz baixa ou alta, embora ninguém possa ouvir), pensamentos banais e também previsíveis, mas quando te jogam num abismo, os pensamentos mudam de figura, eu a primeira coisa que sempre penso é o que eu fiz de errado, o que fiz de errado para me trazerem para cá, e não consigo encontrar um motivo, não pode ter sido por culpa minha, eu não fiz nada para eles, embora em pensamento odeie o governo militar, lógico, não os odeio em particular, por que me trouxeram para cá, os pensamentos numa situação como a minha parecem bombas que explodem uma contra a outra, penso no que está fazendo a minha namorada, penso se um dia vou sair daqui, se me sequestraram sem motivo aparente algum (a não ser pelas latas de filme) podem desaparecer comigo também sem motivo algum, eles não precisam de motivo, estão motivados e energizados para acabar com quem eles quiserem, e eu não posso fazer absolutamente nada, a não ser tentar me esconder no fundo da cela, quem sabe me esquecem.

   Quando O.R. voltou de mais uma sessão de tortura compartilhei com ele minhas dúvidas e temores, e ele procurou me tranquilizaR, VOCÊ VAI SAIR LOGO, VOCÊ NÃO DEVE NADA, MAS NÃO VEJO NINGUÉM SAIR, EU DISSE, TODO MUNDO QUE CHEGA FICA. nÃO, NAÕ É ASSIM ELE DISSE, te levaram para uma sala com um espelho, não levaram, onde você ficou sentado sozinho um tempão, não levaram?, pois é, enquanto você estava sentado do lado de fora você foi visto por todo mundo que está preso aqui, o espelho que você viu dentro, lá fora é uma janela, todo mundo te viu e ninguém reconheceu, por isso eu estou dizendo que você vai sair logo, ninguém te conhece, por isso também você está na cela comigo, porque todos os outros me conhecem e eu conheço os outros, ou você é tão importante que ninguém conhece ou não é nada, talvez eles estejam investigando essa hipótese de você ser um chefão acima de todos, e aí eu disse pra ele que estava preocupado com as latas de filme, mas ele não conseguiu responder, o carcereiro veio correndo, chamam O.R. de novo ao segundo andar, isso podia acontecer, o cara voltar do interrogatório (tortura) não quer dizer que não será chamado de novo, de repente alguém contou alguma coisa de um jeito e ele de outro, era preciso checar.  

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