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Taciano Valério

Professor UFPE/Caruaru

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O excelente curta Animais na Pista como metáfora de um país em desconstrução

Muitas semelhanças do curta de Otto Cabral com a nossa atual condição de limiar, em que enfrentamos um mundo em falência, onde o ódio é a moeda, escreve Taciano Valério

(Foto: Reprodução e divulgação)
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As mãos sujas de sangue são as mãos que cometem um crime, mas quem tem arma e atira pode encontrar resistência. Há quem resista sem armas e mesmo ferido e tateando ao chão consegue fazer valer seus últimos olhares ao mirar os olhos do criminoso e perturbar o seu ódio. É como se a vítima estivesse morrendo diante do bandido e dissesse com o olhar: “a gente vai te pegar seu filho da ...” ou, “por que você fez isso comigo?”. Através dos olhares finais da vítima o criminoso tem mais ódio e age com mais munição resolvendo disparar as balas restantes, tamanho o medo diante do tamanho olhar da vítima. O criminoso se precipita ainda mais a atirar, e depois sai em disparada deixando a vítima no chão ou tratando de cuidar da cena do crime fazendo o disfarce, modificando a cena do crime conforme/uniformes. 

O curta metragem “Animais na Pista”, do paraibano Otto Cabral, trouxe-me, através do olhar de uma criança no final do filme, as imagens descritas acima que não estão na película, mas presentes na cena quando olhamos o drama brasileiro de um Estado Nacional, que faz o disfarce e não para de transformar milhares de vidas num acidente de percurso, onde um carro desgovernado atropela todos e o motorista põe a culpa num homem que observava o gado nas cercanias ao lado do asfalto. Diante disso, outros veículos e pessoas são envolvidos no acidente e de repente o motorista passa a culpar nem mais o pedestre ou os outros veículos, mas uma vaca que atravessou a pista, afinal é tudo uma questão de narrativa. 

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Não se trata de uma narrativa verdadeira para fazer valer a retórica do motorista, dizendo que uma vaca entrou na zona proibida, mas, por exemplo, que o carro era verde e a vaca confundiu o carro com capim e avançou em busca de saciar a sua fome. Há quem vá acreditar nessa narrativa desde que haja quem acredite no motorista. É uma questão realmente de crença e não de racionalidade ou fatos concretos. Depois disso, não saberemos mais de nada quanto ao caso. Começa-se a discutir no âmbito da pecuária e do espaço geográfico o lugar em que a vaca e o gado deveriam realmente ocupar. 

  • O gado não poderia estar à solta na BR - diz o motorista.
  • Para onde o levamos? - pergunta o influencer. 
  • Para as Redes Sociais! - responde o motorista
  • E o que fazemos com os corpos das pessoas na pista? - questiona o influencer. 
  • Não são mais corpos! CPFs cancelados, tá ok. kkkkkkk!

Ao ver o curta-metragem “Animais na Pista” e suas dobras, outras narrativas vieram como um roteiro. Acima foram exposições e divagações muito mais próximas da realidade brasileira enquanto absurdo do que da realidade do filme enquanto ficção

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O curta metragem me provocou a busca das verdades fora do filme e não a verdade do filme. Mas, qual a verdade do filme Animais na Pista? Não precisamos elucidá-la, mas senti-las. 

Através de um longo plano sequência, o curta de Otto Cabral nos impulsiona a vivenciar várias sensações. As primeiras imagens acompanham a personagem (Kassandra Brandão) andando pelo mato e chegando até o asfalto onde ela entrega um objeto metálico a um homem. Uma criança morta, adultos, destroços na pista, pisca alerta de carros, luzes piscando, profissionais conversando em tom baixo, um fotógrafo fazendo imagens do interior de um veículo e uma atmosfera de que algo está acontecendo diante de um acidente automobilístico com vítimas fatais. A câmera do fotógrafo Rodolpho Barros vai se revelando de forma esquiva, ou seja, reproduz um provável olhar de desvio frente ao impacto do que vê. 

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Não há como olhar um acidente de forma contemplativa, com planos gerais, enquadramentos perfeitos e olhares objetivos. O acidente é um embaraço e quem vive sabe o quão as coisas ficam turvas, desalinhadas, incongruentes. Vemos tudo de forma confusa, pois o nosso olhar não se limita a ver o objeto exposto, mas se confunde conosco, colocando-nos em situação de medo e horror. Então, a fotografia do filme nos leva a sentir que alguma coisa está acontecendo e o menos importante parece ser as vítimas. 

Um cenário de carros, luzes, profissionais que se olham, conversam, parecem tramar alguma coisa. O semblante se faz presente. Há pessoas com facas retirando das entranhas a carne de um animal bovino. Um conluio de gente que se organiza em meio ao caos para vorazmente darem conta de uma vaca. Enquanto isso, na surdina, sentimos que existe alguma coisa errada com homens que parecem disfarçar a cena do crime. A câmera, já perto do final do curta metragem, fixa-se no olhar da personagem feminina que se firma diante do olhar do menino. No cruzamento do olhar da mulher com o personagem descobrimos que se trata do menino morto que aparece no início do filme através da imagem do seu tênis ao chão. A sua imagem vai se esvaindo e some completamente. Enfim, a câmera desde o início do filme reproduzia o olhar do menino que observava a barbárie.

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Assim, a construção do filme segue desde o início com a trilha sonora que parece brotar da terra. A música atravessa os confins do caos manifesto pelas imagens desviantes. O olhar do menino é o impacto que a câmera nos apresenta e dispara a todo momento o registro do quão sutil é a fronteira entre civilização e barbárie. 

Em “Animais na Pista” os mortos são as pessoas vivas. O trânsito está parado e o fluxo são os parasitas que vilipendiaram os cadáveres humanos através da indiferença, do disfarce e, principalmente, do ato de rasgar a pele de um animal buscando entre as vísceras um pedaço de carne no mundo. 

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Muitas semelhanças do curta Metragem de Otto Cabral com a nossa atual condição de limiar, em que enfrentamos um mundo em falência, cujas instituições e os seus convivas se locupletam cortando na carne dos seus e o trânsito dos afetos em estado zero onde o ódio é a moeda. 

O cinema de Otto Cabral nos dá esse curta metragem tal como Rubem Fonseca na literatura nos deu o Conto Animais na Pista. Sobre a obra Rubens Fonseca falou: Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência.

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 Por enquanto, há muitas coincidências do filme com a vida em seu estado de embrutecimento. Acreditamos, no entanto, no que brota da terra tal como a música de Eli - Eri -Moura, autor da trilha do filme, que vai nos conduzindo para algum tipo de resistência e nos desviando desse caos. 

Ainda há uma outra questão no filme. Nos créditos finais há o nome de Ely Marques como Montador e Finalizador do curta metragem. Trata-se do maior Montador do cinema paraibano dos últimos anos. Cineasta, entusiasta, militante, professor, amigo. Ely Marques morreu de Covid no dia 03 de abril e esgarçou em muita gente o efeito de angústia, dor, perplexidade e revolta, senão um trauma numa legião de amigos, parceiros e familiares. Ely Marques foi uma vítima do motorista desgovernado e do gado assim como outros tantos milhares de brasileiros nesta pandemia. Ao ver o filme pela segunda vez, não tive como deixar de associar o olhar final do menino para com essa tragédia. 

Ely no destaque e a equipe que realizou o curta
Ely no destaque e a equipe que realizou o curta (foto: arquivo pessoal)(Photo: Arquivo pessoal)Arquivo pessoal


Ely Marques se foi e quem bebeu da sua fonte sabe da sua influência em cineastas e realizadores desde o Curso de Arte Mídia na UFCG até os coletivos de cinema em João Pessoa e no interior do estado da Paraíba. Montei o meu primeiro longa com ele e um curta em 35mm. Ainda me sinto como alguém que perde um ente querido em um acidente - sem acreditar. 

Animais na Pista é um filme sem concessões. Se carecemos de utopia ante a realidade viva, nua, crua e cortante prefiro acreditar, ainda, que o olhar do menino vai nos trazer senão outros grandes filmes, mas também, uma consciência que precisamos também dar um corte no mal à solta espalhado por aí que devora nossas entranhas. 

Observação: Outros filmes de Otto Cabral tais como: Instrumento Detector de alguma coisa, Chã de Fora e Curva Turva nos colocam diante do limite entre a dimensão do homem no mundo e suas relações com os limites da nossa criação, bem como da animalidade e da morte. Abaixo deixo os links para vocês assistirem e conhecerem três curtas do Diretor Paraibano Otto Cabral. Vale a pena.

Instrumento Detector de Alguma Coisa

 

Chã de Fora

 


Curva Turva

 

Serviço: o filme Animais na Pista ainda se encontra no círculo restrito de festivais de cinema no Brasil e no exterior.

 



 


 


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