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      Urariano Mota

      Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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      O frevo que se canta hoje no Recife

      A nossa elite não sabe, despreza: a fala popular é a própria língua da história. A população fala a língua que guarda um fio de continuidade entre a identidade de um lugar e a civilização

      Frevo (Foto: Urariano Mota)

      No Marco Zero, tocava uma orquestra afinada, passistas faziam um passo de acrobatas, cercados de gente de muitas idades e lugares. Mas eis que de repente, no azul do céu do cais, foi anunciado o frevo de bloco Evocação nº 1, de Nelson Ferreira. Para mim, coisa melhor não há, e me deixei ficar em desarmada prelibação do que viria. Um calor de felicidade correu no peito em atenção à lembrança que guardamos da letra, da canção, do coral de Batutas de São José, do tempo imorredouro da melodia. Então a voz da cantora soltou:

      "Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon
      Cadê teus blocos famosos?..."

      Mas esses primeiros versos não dizem bem o que ouvi. Outra canção se fez presente já no começo, porque a cantora cometeu um "Fê-linto". De imediato, esclareço que tal variação na prosódia local não é coisa boba, sem importância. Nós estamos falando de um hino da cidade. Trata-se de uma das maiores obras de Nelson Ferreira. Mas o melhor veio depois. Terminada a música, fui ao animador do encontro e lhe fiz ver que aquela "pronúncia" não era conforme a original. Então ele me respondeu com o ar mais puro da tarde:

      - Todos cantam assim.

      Eu lhe respondi:

      - A gravação original da Evocação nº 1 não é assim.

      O rapaz ficou atônito. Que coisa mais chata é esse cara vir dizer que estão cantando mal Nelson Ferreira. Mas ele foi salvo por uma senhora, que a tudo ouvia e, mesmo sem ser chamada, achou por bem intervir. Ela me mostrou o celular onde estava a letra da Evocação no trecho "Felinto, Pedro Salgado....". E me disse:

      - Está vendo? É assim que se escreve: Fê-lin-tô.

      Toma, além de me ver como um homem sem memória, ela me transformou num analfabeto. Eu lhe respondi:

      - É assim que a senhora lê? Fê-lin-tô?

      - Sim - E me fitou de cima a baixo, indignada, como a me responder "se o senhor não sabe ler, o problema é seu". Mas veio mais suave, apesar de autoritária: - Eu sou professora de português.

      - Então a senhora sabe que as palavras não se leem como se escrevem.

      - É? Saiba que português não é inglês. É diferente: aqui a gente lê como se escreve.

      Vocês veem que era um diálogo impossível. Uma verdadeira peleja do bem, que é a nova pronúncia, contra o mal, que pesquisa a história de uma cidade. E o mal sempre perde no fim. Mas para o leitor retomo a palavra que não pôde ser ouvida. Primeiro, escute a gravação original da Evocação nº 1. https://www.youtube.com/watch?v=7FNhDiqLErY

      Ouvimos Filinto, não é? Depois, ouça os Fê-lintos, até no Bloco da Saudade.

      https://www.youtube.com/watch?v=jre2nzziqyU

      Lembro que a mudança no som das vogais não é exclusiva da Evocação nº 1. Cantam agora o Bloco da Vitória, de Nelson Ferreira, assim: "quando o povo dê-cide".

      https://www.youtube.com/watch?v=ZeroK43LGt4

      Ora, o verso de Nelson vinha do refrão eleitoral "quando o povo diz Cid". O original do Bloco da Vitória fazia um trocadilho entre "o povo diz Cid", da campanha de Cid Sampaio em 1958, e o verbo decidir. Daí que "diz Cid" virou "decide" na letra e dicide no som.

      https://www.youtube.com/watch?v=BuhSbY_r9a8

      Mas por que a mudança hoje? Seria uma evolução natural da língua, que virou a nova prosódia pernambucana? Na verdade, os cantores dos frevos de bloco reproduzem um modelo de fala que julgam culta, educada. É constrangedor ouvir, ver blocos de carnaval do Recife submissos à prosódia dos apresentadores de televisão. Cantam Nelson Ferreira traduzido para um modelo de locução que vem de fora. Nada mais antipernambucano, violentador da história da cidade.

      A nossa elite não sabe, despreza: a fala popular é a própria língua da história. A população fala a língua que guarda um fio de continuidade entre a identidade de um lugar e a civilização. Os professores deviam gravar a fala do povo nas feiras, nos mercados públicos. Aí aprenderiam que Felinto sempre foi Filinto, jamais Fê-lin-tô. Pelo menos no Recife.

       

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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