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Carlos Alberto Mattos

Crítico, curador e pesquisador de cinema. Publica também no blog carmattos

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O Irã que eu vi

Impressões de um viajante ao país dos persas

(Foto: Acervo pessoal/Carlos Alberto Mattos)
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Estou de volta de uma das viagens mais compensadoras que já fiz. Eu li muito e vi dezenas de filmes e vídeos como preparação para minha visita ao Irã. Até certo ponto, não me surpreendi com o que encontrei. Em sua maior parte, tudo confirmou o que já esperava: a beleza da arquitetura e da decoração persas, a escala grandiosa das construções, a hospitalidade do povo, o calor, o trânsito indisciplinado e a prevalência das leis religiosas sobre a vida social.

Comento aqui livremente alguns tópicos que mais chamaram minha atenção. 

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A devoção 

Desde a Revolução Islâmica, em 1979, os grandes investimentos feitos pela dinastia Pahlavi para se ombrear com os reinos passados do Império Persa se voltaram para a construção ou ampliação de mesquitas, santuários e demais instalações religiosas. Sob o pretexto de ascender os espíritos dos fiéis a altas instâncias, tudo é imenso, pesado, um tanto opressivo e sobrecarregado de cascatas de estuques, pinturas, mosaicos de espelhos e lustres imensos. As cores prata, verde e vermelho sobressaem, replicando os tons do Islã e da bandeira iraniana. 

Massa nas proporções e leveza na decoração me pareceu o binômio predominante. Beleza e magnitude para manter o status do Islã como parâmetro de tudo, ao menos na aparência. No mês do Ramadã, por exemplo, é cada vez menor o número de muçulmanos que cumprem o jejum total até o pôr do sol. Em geral, procuram se encaixar em exceções permitidas, como doença e viagem. Viajar no Ramadã tornou-se de lei para fugir da fome e da sede compulsórias. À exceção dos hotéis e de alguns restaurantes, os milhões de lojinhas de comida e fast food mantêm as portas abertas e uma cortina na entrada. Se você afastar a cortina e perguntar por um cheeseburger ao meio-dia, eles prontamente lhe mandam entrar.

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Em conversas que tive com gente esclarecida, o luxo desmedido da monarquia anterior e da teocracia atual contrasta violentamente com a pobreza que assola grande parte da população, sobretudo a rural. As promessas de Khomeini no sentido de reduzir as desigualdades sociais teriam ficado apenas no discurso.

O culto aos mártires é um elo forte entre religião e política. Assim como uma vez por ano os fiéis cantam e se flagelam em grandes cerimônias públicas para lembrar o martírio do Imam Hossein no século VII, as fotos de jovens soldados mortos na guerra contra o Iraque (chamada de "A Sagrada Defesa") pontuam as ruas de praticamente todas as cidades.

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O poder

Os homens barbudos com turbantes redondos na cabeça ("cogumelos", segundo a ironia dos críticos) dominam as leis e a Justiça no Irã. Zapear os canais da TV iraniana é deparar-se com essas figuras onipresentes e seu ar de severidade. A religião controla tudo - dos tribunais ao comportamento das pessoas na rua. Não há oposição possível ao líder supremo (Aiatolá Khamenei) e sua interpretação do Alcorão. 

Nunca entendi muito bem a diferença de poder entre o líder supremo e o presidente eleito sob o controle dos clérigos. O ex-presidente Ahmadinejad deixou uma memória de ódio entre os iranianos mais conscientes. Hoje a população se divide entre uma grande maioria (cerca de 70 a 80%) que se considera de oposição à ditadura teocrática e uma minoria que a apoia por extremo conservadorismo, por interesses econômicos (os comerciantes dos bazares, por exemplo) ou por gozar de privilégios trabalhando para o governo. 

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As mulheres

Desde que eclodiu a onda de protestos pela morte da jovem Mahsa Amin nas mãos da polícia após ser presa por não estar cobrindo a cabeça com o véu islâmico, as mulheres têm desafiado um dos costumes mais severos da vida iraniana. Principalmente na capital, Teerã, mas também nas cidades grandes e médias, eu diria que metade das mulheres jovens estão se arriscando a sair à rua com os cabelos à mostra. Elas se orgulham disso, e é visível a sensação de liberdade e transgressão nos seus olhares.

As mulheres são proibidas de cantar em público, a não ser que estejam juntando sua voz à de um homem. Daí que, diante de um cantor de rua, por exemplo, elas se animem a cantar junto e balançar um pouco seus corpos, geralmente belos e esbeltos. Sobre isso, aconselho conhecer o documentário Canção de Lugar Nenhum, de Ayat Najafi. É bem certo que a febre de cirurgias no nariz está uniformizando bastante a fisionomia das iranianas. Os narizes se reduzem e ficam quadradinhos, bem proporcionados, mas a impressão é de que cruzamos com 400 mil Audrey Hepburns em um único dia. Muitas também engrossam os lábios - e aí a delicadeza me obriga a evitar comparações. 

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Por falar em boca: à boca pequena, comenta-se que o povo iraniano, fundamentalmente amável e pacífico, merecia uma vida melhor, sem os ditames da teocracia nem as sanções internacionais que o impedem de desfrutar de muita coisa e de sair pelo mundo. Além do preço estratosférico das passagens aéreas para os níveis de salário do iraniano médio, a obtenção de um visto é praticamente inatingível, a não ser para a Rússia e alguns países próximos, como a Turquia, a Geórgia e a Armênia - para onde muitos iranianos acorrem a fim de consumir álcool, rigorosamente proibido no Irã. É comum fazer-se vinho em casa e beber às escondidas, mas a qualidade é de doer na alma.

Por tudo isso, a maior parte dos iranianos anseia por uma nova revolução que modernize os hábitos do país e traga democracia. É lícito esperar que as mulheres, com sua audácia, sejam a força impulsionadora de uma mudança. 

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Por enquanto, ainda é comum ver senhoras de chador (o longo vestido que cobre até a cabeça), em geral preto, abordar jovens na rua ordenando que cubram a cabeça. São membros da temida polícia de costumes. Minha guia em Teerã, moça de 38 anos, saía no seu carro com um hijab no banco traseiro e o colocava ou não segundo o lugar onde estivesse: sim em bairros tradicionais, na proximidade de prédios públicos ou religiosos, em bazares, museus e jardins muito frequentados; não em shopping centers, hotéis, restaurantes modernos e áreas muito abertas com pouca frequentação.

Amor e sexo

Paradoxalmente, a Revolução Islâmica instalou uma verdadeira obsessão sexual no Irã. Os aiatolás, imams, mullahs e toda a hierarquia clerical vê sexo em tudo. Uma mulher com os cabelos descobertos ou com uma roupa que delineie o corpo é vista como um atentado ao pudor porque estaria despertando o desejo sexual dos homens. A mulher é perigosa porque, segundo eles, goza dez vezes mais que o homem. Um casal que se abrace ou se beije em público estará a um passo do coito e, por isso, pode ser preso. O toque entre pessoas de sexo diferente é objeto de um código: um homem só aperta a mão de uma mulher se ela tomar a iniciativa de estender a sua. Abraços e beijinhos, nem pensar.

Resultado: não se vê sinal de amor nas ruas do Irã. Alguns casais se dão a liberdade de caminhar discretamente de mãos dadas. Outros sentam-se em algum banco dos belos jardins persas para ver juntos (ou fingir que veem) alguma coisa no mesmo celular, assim aproximando os rostos o mais possível e o mais ternamente possível. 

É claro que não existem motéis, nem nada parecido. Um casal não casado não pode dar entrada num hotel. Tudo é feito na clandestinidade: os namoros mais efusivos, as festas, as danças de homem e mulher, as bebidas, as críticas ao governo.

Como o homossexualismo é crime inafiançável, o governo não só tolera, como aprova e ajuda a financiar cirurgias de troca de sexo. Ou seja, se um homem gosta de homem, então que vire uma mulher. Mudar o sexo como única opção de ter uma vida à margem do gênero original causa transtornos trágicos, como bem demonstra o documentário Be Like Others, de Tanaz Eshaghianz, que já comentei no meu Facebook.

O casamento temporário é outra instituição contraditória no Islã, mas que exemplifica os recursos adotados no país para contornar certas interdições. Um contrato do tipo pode autorizar um casal a morar no mesmo teto ou frequentar um hotel pelo tempo determinado. Tempo este que pode ser de anos, meses, semanas ou até dias. Uma saída também para a prostituição. Sobre casamento temporário recomendo o longa Nahid – Amor e Liberdade, de Ida Panahandeh.

 O cinema

Poucos iranianos têm noção de que o cinema de seu país ajuda e muito os estrangeiros, se não a amar, a desamar menos o Irã. Afora os primeiros longas de Abbas Kiarostami, Jafar Panahi, Mohsen Makhmalbaf e Majid Majidi, os filmes iranianos que fazem sucesso em festivais internacionais e são lançados mundo afora não são conhecidos da maior parte de seus conterrâneos. 

A dieta do circuito comercial iraniano é composta por comédias meio pastelão, filmes de ação incipientes e históricos aprovados pelo governo. Um homem bem informado com quem conversei havia visto filmes relativamente recentes de Panahi (baixados na internet via VPN), mas desconhecia que o cineasta esteve preso e iniciara uma greve de fome. De uma moça moderninha, mas no fundo conservadora, ouvi que desaprova os filmes de Asghar Farhadi por transmitirem a imagem negativa de um Irã cheio de gente pobre. Prova de que ela certamente não conhece a obra do diretor, basicamente centrada na classe média. 

Na minha única sessão de cinema no Irã, assisti a trailers espalhafatosos e 30 minutos de uma comédia boboca passada na epoca do Xá Mohammad Reza Pahlevi. Ao sair do Ghods, cinema de rua em Teerã, reconheci um ator que aparecera num trailer. Pezhman Alipoor era o próprio vendedor dos ingressos na bilheteria do cinema. No Irã, quase todos acumulam dois ou mais ofícios para conseguir pagar as contas.

O Museu do Cinema Iraniano, instalado num belo palacete da capital, foi relativamente decepcionante. Possui uma boa coleção de fotos de filmes antigos, equipamentos e prêmios recebidos por cineastas, muitas silhuetas de atores em tamanho natural e um cineminha que exibe em looping um DVD com trechos de filmes pioneiros. Mas é pouco para uma cinematografia tão importante e que merecia mais orgulho. Infelizmente, nem uma lojinha de suvenires, cartazes, DVDs e coisas do gênero.

O turismo

O que mais vi no Irã foram chineses. Ruidosos como sempre, bagunçam as mesquitas, levantam poeira nas ruínas de Persépolis e ocupam quase todas as mesas no breakfast dos hotéis. Topei com alguns russos, poucos europeus e indianos, muitos de nacionalidade não identificada (provavelmente de países fronteiriços), nenhum latino-americano - muito menos brasileiro - e hordas de turistas internos, especialmente nos fins de semana e nos feriados do Eid (o fim do Ramadã).

A meu ver, é possível, relativamente barato e absolutamente maravilhoso visitar o Irã. O país é tranquilíssimo, as pessoas comuns são amáveis, sorridentes e prestativas. Se você pede uma informação na rua, corre o "risco" de ser levado pessoalmente até o lugar desejado e ainda ser convidado para jantar na casa do informante. Turistas são VIPs. Estar com um turista ao lado abre muitas portas para os iranianos. 

A exceção, como de costume, são os servidores públicos e os que acreditam ter alguma autoridade. Em geral, mas não sempre, esses são um pouco rudes. 

De qualquer maneira, esta é uma viagem que requer boa preparação e a companhia fundamental de um bom e confiável guia. O meu motorista-guia em quase toda a viagem (exceto Teerã), Ali Edrak, é um homem culto, inteligente, muito bem humorado e extremamente competente em matéria de direção, informações e cuidado com seus clientes. Foi um anjo da guarda para mim e um grande amigo que ganhei. 

Pouca gente fala inglês ou qualquer outra língua além do farsí. O guia é essencial para a comunicação e para ajudar o turista a lidar com o dinheiro local. Eu mesmo não aprendi, até o final da viagem, a me haver com rials, tomans, abreviação do número de tomans e sua conversão para dólares. Ao trocar, por exemplo, 100 dólares, você recebe quase meio quilo de notas de várias cores e valores. 

Uma vez que alimentação, ingressos e compras são bem baratos em comparação com o Brasil, vale a pena investir em bons hotéis, mais garantidos em matéria de limpeza, acomodações e serviços.

Shiraz é adorável com seus jardins, mesquitas e santuários. Yazd é envolvente com sua arquitetura em adobe, cúpulas e torres de vento. Isfahan encanta com sua praça monumental, suas pontes e iluminação primorosa. A pequena e vermelha Abyaneh cativa pela singeleza e os trajes típicos das mulheres. Kashan, terra da água de rosas, tem um bazar arquitetonicamente maravilhoso e mansões históricas extasiantes. Qom, o Vaticano do Irã, impressiona pela austeridade de sua população ultrarreligiosa e um santuário esteticamente delirante. Por fim, Teerã é uma megalópole devoradora com seus palácios, museus, shopping centers gigantescos, excelentes restaurantes e um trânsito caótico - mas no fundo harmonioso, em que carros, motocicletas e pessoas disputam espaço na base de quem meter a cara primeiro ganha prioridade.

De resto, o Irã tem tudo para extasiar os olhos, os ouvidos e o olfato. Quanto ao paladar, confesso que não sou muito fã do acúmulo de açafrão, iogurte e frutas secas presente na culinária iraniana. Mas é fácil encontrar os deliciosos kebabs, os arrozes sofisticados e pratos italianos e asiáticos. A gastronomia iraniana tem pouco a ver com a cozinha árabe.

Por sinal, confundir os persas com os árabes é pecado mortal no Irã. Embora usem o mesmo alfabeto em línguas diferentes, além do Islã em comum, persas e árabes são culturas distintas e, em muitos aspectos, antagônicas. Se você entender essa diferença, já começa merecendo o afeto e o bonito gesto com que os iranianos sublinham sua gratidão e reconhecimento: a mão direita espalmada sobre o peito.

Nota: fotografei e filmei intensivamente a viagem com meu celular. Uma seleção de fotos foi postada diariamente no meu Facebook. Em breve vou criar álbuns no Google Fotos. Mais adiante, aos poucos, vou editar os vídeos como de hábito. 

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