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Laura Valle Gontijo

Mestre em sociologia pela Universidade de Brasília. Faz parte do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho (GEPT/UnB).

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O mistério está na forma de remuneração

Ele sente que seu salário só depende do seu esforço pessoal, força, energia e persistência. No entanto, não consegue saber quanto irá receber ao final do mês

(Foto: Divulgação)
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Conforme alguns pesquisadores já apontam, apesar de não ser ainda consenso entre os principais escritores sobre o tema, a explicação para muitos dos problemas vivenciados pelos trabalhadores em plataformas digitais está na forma de remuneração.

Os trabalhadores em plataformas digitais são basicamente divididos em duas categorias: trabalhadores dos serviços de entrega de mercadorias na Uber, Delivery, iFood e aqueles que realizam trabalho nas plataformas numéricas de microtrabalho ou “crowndwork”, como anotar vídeos, ordenador tweet, transcrever documentos digitalizados. A plataforma mais conhecida desse segundo tipo de trabalho é a Amazon Mechanical Turk. 

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Esses trabalhadores fazem longas jornadas de trabalho, que são intercaladas com períodos de suposta “inatividade”, momentos em que o trabalhador fica à espera de uma corrida. Essa “inatividade”, na realidade, é trabalho não remunerado. 

O trabalhador sente que possui autonomia e liberdade, podendo determinar o horário e dia de trabalho. No entanto, como qualquer trabalhador, precisa do salário para viver. Então, apesar de possuir de fato maior autonomia, esse sentimento é em grande medida uma ilusão. 

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O trabalhador sente ainda que se empreender os esforços necessários (prolongar sua jornada de trabalho, trabalhar nos feriados e finais de semana, à noite ou pegar o máximo de corridas possível) ele irá aumentar seu salário ao final do mês e isso de fato ocorre, dependendo das circunstâncias. 

Ele sente que seu salário só depende do seu esforço pessoal, da sua força, energia e persistência. No entanto, ele não consegue saber quanto irá receber ao final do mês. 

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Essas são as características descritas por Karl Marx no Livro I, Volume II, de “O Capital”, no Capítulo “Salário por peça”. Destacamos este trecho, mas há inúmeros outros: 

“[...] a maior margem de ação proporcionada pelo salário por peça influi no sentido de desenvolver, de um lado, a individualidade dos trabalhadores e com ela o sentimento de liberdade, a independência e o autocontrole, e, do outro, a concorrência e a emulação entre eles. Por isso o salário por peça tende a baixar o nível médio dos salários, elevando salários individuais [...]. O salário por peça, finalmente, é um dos principais arrimos do sistema de pagar o salário por hora”.

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No Capítulo imediatamente anterior, “Salário por tempo”, Marx descreve outro tipo de contrato que surgiu na atualidade: o trabalho intermitente. 

Afirma Marx que existem duas formas de remuneração muito prejudiciais aos trabalhadores e ideais aos capitalistas: o salário por peça e o salário por hora, quando este é calculado desconsiderando a existência de uma jornada de trabalho:

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“Se o salário por hora for fixado de modo que o capitalista não se obrigue a pagar o salário de um dia ou de uma semana, mas apenas as horas de trabalho que lhe apraz ocupar o trabalhador, poderá ele empregá-lo por espaço de tempo inferior ao que serviu originalmente de base para calcular o salário por hora ou a unidade de medida do preço do trabalho [...]. Rompe-se a conexão entre  o trabalho pago e o não pago. O capitalista pode então extrair do trabalhador determinada quantidade de trabalho excedente sem lhe proporcionar o tempo de trabalho necessário à própria manutenção. Pode destruir toda regularidade da ocupação e fazer alternarem-se de acordo com sua comodidade, arbítrio e interesse momentâneo, o mais monstruoso trabalho excessivo com a desocupação relativa ou absoluta. Pode, sob o pretexto de pagar o ‘preço normal do trabalho’ prolongar anormalmente a jornada de trabalho sem qualquer compensação correspondente para o trabalhador [...]. A limitação legal da jornada de trabalho pôs fim a este abuso”.

A partir dessas questões, temos investigado essas duas formas de remuneração. A principal questão que intriga é como essas formas de remuneração retornaram em pleno século XXI, se elas irão se generalizar e quais serão os impactos disso?

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Alterações na jornada de trabalho são em geral muito lentas,mas as plataformas digitais e as novas tecnologias podem estar acelerando um processo em desenvolvimento.

Já conseguimos sentir alterações profundas no modo como está organizado nosso trabalho, com a introdução dessas novas tecnologias. O WhatsApp se tornou o novo horário de ponto de muitos trabalhadores e o home-office, generalizado para amplas camadas da população com a pandemia, fez sentir a muitos o que os trabalhadores em plataformas digitais sentem: uma dificuldade de separar o tempo de trabalho do tempo de descanso.

Apesar de terminarmos esse artigo com mais dúvidas do que respostas, por trás da brutal exploração sentida pelos trabalhadores em plataformas digitais e da extrema precariedade e insegurança de renda dos trabalhadores intermitentes uma questão que merece ser investigada é a forma de remuneração.

Referências 

ALKHATIB, A.; BERNSTEIN, M.; LEVI, M. Examing Crowd Work and Gig Work Through The Historical Lens of Piecework. Proceedings of The 2017 Chi Conference on Human Factors in Computing Systems, Denver, p. 4599-4616, mai. 2017.
CASILLI, A. A. En Attendant les robots: enquête sur le travail du clic. Paris: Editions du Seuil, La couleur des idées, 2019.
DAL ROSSO, S. A Jornada de trabalho na sociedade: o castigo de prometeu. São Paulo: LTr, 1996.
DUBAL, V. B. The time politics of home-based digital piecework. Centre for Ethics University of Toronto, 2020. Disponivel em: https://c4ejournal.net/2020/07/04/v-b-dubal-the-time-politics-of-home-based-digital-piecework-2020-c4ej-xxx/. Acesso em: 28 abr. 2021.
HUWS, U. A formação do cibertariado: trabalho virtual em um mundo real. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2017.
PIRES, G. N. Uberization of labor and Marx's Capital. R. Katál., Florianópolis, v. 24, n. 1, jan./abr., p. 228-234, jan./abr. 2021.
STEFANO, V. de; ALOISI, A.. European legal framework for "digital labour platforms". Luxemburgo: Publications Office of the European Union, 2018.

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