O mistério está na forma de remuneração
Ele sente que seu salário só depende do seu esforço pessoal, força, energia e persistência. No entanto, não consegue saber quanto irá receber ao final do mês
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Conforme alguns pesquisadores já apontam, apesar de não ser ainda consenso entre os principais escritores sobre o tema, a explicação para muitos dos problemas vivenciados pelos trabalhadores em plataformas digitais está na forma de remuneração.
Os trabalhadores em plataformas digitais são basicamente divididos em duas categorias: trabalhadores dos serviços de entrega de mercadorias na Uber, Delivery, iFood e aqueles que realizam trabalho nas plataformas numéricas de microtrabalho ou “crowndwork”, como anotar vídeos, ordenador tweet, transcrever documentos digitalizados. A plataforma mais conhecida desse segundo tipo de trabalho é a Amazon Mechanical Turk.
Esses trabalhadores fazem longas jornadas de trabalho, que são intercaladas com períodos de suposta “inatividade”, momentos em que o trabalhador fica à espera de uma corrida. Essa “inatividade”, na realidade, é trabalho não remunerado.
O trabalhador sente que possui autonomia e liberdade, podendo determinar o horário e dia de trabalho. No entanto, como qualquer trabalhador, precisa do salário para viver. Então, apesar de possuir de fato maior autonomia, esse sentimento é em grande medida uma ilusão.
O trabalhador sente ainda que se empreender os esforços necessários (prolongar sua jornada de trabalho, trabalhar nos feriados e finais de semana, à noite ou pegar o máximo de corridas possível) ele irá aumentar seu salário ao final do mês e isso de fato ocorre, dependendo das circunstâncias.
Ele sente que seu salário só depende do seu esforço pessoal, da sua força, energia e persistência. No entanto, ele não consegue saber quanto irá receber ao final do mês.
Essas são as características descritas por Karl Marx no Livro I, Volume II, de “O Capital”, no Capítulo “Salário por peça”. Destacamos este trecho, mas há inúmeros outros:
“[...] a maior margem de ação proporcionada pelo salário por peça influi no sentido de desenvolver, de um lado, a individualidade dos trabalhadores e com ela o sentimento de liberdade, a independência e o autocontrole, e, do outro, a concorrência e a emulação entre eles. Por isso o salário por peça tende a baixar o nível médio dos salários, elevando salários individuais [...]. O salário por peça, finalmente, é um dos principais arrimos do sistema de pagar o salário por hora”.
No Capítulo imediatamente anterior, “Salário por tempo”, Marx descreve outro tipo de contrato que surgiu na atualidade: o trabalho intermitente.
Afirma Marx que existem duas formas de remuneração muito prejudiciais aos trabalhadores e ideais aos capitalistas: o salário por peça e o salário por hora, quando este é calculado desconsiderando a existência de uma jornada de trabalho:
“Se o salário por hora for fixado de modo que o capitalista não se obrigue a pagar o salário de um dia ou de uma semana, mas apenas as horas de trabalho que lhe apraz ocupar o trabalhador, poderá ele empregá-lo por espaço de tempo inferior ao que serviu originalmente de base para calcular o salário por hora ou a unidade de medida do preço do trabalho [...]. Rompe-se a conexão entre o trabalho pago e o não pago. O capitalista pode então extrair do trabalhador determinada quantidade de trabalho excedente sem lhe proporcionar o tempo de trabalho necessário à própria manutenção. Pode destruir toda regularidade da ocupação e fazer alternarem-se de acordo com sua comodidade, arbítrio e interesse momentâneo, o mais monstruoso trabalho excessivo com a desocupação relativa ou absoluta. Pode, sob o pretexto de pagar o ‘preço normal do trabalho’ prolongar anormalmente a jornada de trabalho sem qualquer compensação correspondente para o trabalhador [...]. A limitação legal da jornada de trabalho pôs fim a este abuso”.
A partir dessas questões, temos investigado essas duas formas de remuneração. A principal questão que intriga é como essas formas de remuneração retornaram em pleno século XXI, se elas irão se generalizar e quais serão os impactos disso?
Alterações na jornada de trabalho são em geral muito lentas,mas as plataformas digitais e as novas tecnologias podem estar acelerando um processo em desenvolvimento.
Já conseguimos sentir alterações profundas no modo como está organizado nosso trabalho, com a introdução dessas novas tecnologias. O WhatsApp se tornou o novo horário de ponto de muitos trabalhadores e o home-office, generalizado para amplas camadas da população com a pandemia, fez sentir a muitos o que os trabalhadores em plataformas digitais sentem: uma dificuldade de separar o tempo de trabalho do tempo de descanso.
Apesar de terminarmos esse artigo com mais dúvidas do que respostas, por trás da brutal exploração sentida pelos trabalhadores em plataformas digitais e da extrema precariedade e insegurança de renda dos trabalhadores intermitentes uma questão que merece ser investigada é a forma de remuneração.
Referências
ALKHATIB, A.; BERNSTEIN, M.; LEVI, M. Examing Crowd Work and Gig Work Through The Historical Lens of Piecework. Proceedings of The 2017 Chi Conference on Human Factors in Computing Systems, Denver, p. 4599-4616, mai. 2017.
CASILLI, A. A. En Attendant les robots: enquête sur le travail du clic. Paris: Editions du Seuil, La couleur des idées, 2019.
DAL ROSSO, S. A Jornada de trabalho na sociedade: o castigo de prometeu. São Paulo: LTr, 1996.
DUBAL, V. B. The time politics of home-based digital piecework. Centre for Ethics University of Toronto, 2020. Disponivel em: https://c4ejournal.net/2020/07/04/v-b-dubal-the-time-politics-of-home-based-digital-piecework-2020-c4ej-xxx/. Acesso em: 28 abr. 2021.
HUWS, U. A formação do cibertariado: trabalho virtual em um mundo real. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2017.
PIRES, G. N. Uberization of labor and Marx's Capital. R. Katál., Florianópolis, v. 24, n. 1, jan./abr., p. 228-234, jan./abr. 2021.
STEFANO, V. de; ALOISI, A.. European legal framework for "digital labour platforms". Luxemburgo: Publications Office of the European Union, 2018.
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