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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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O perdão entre os escombros

"Voei pra lá, sessenta anos depois, para que meu irmão me entregasse o último pedregulho da nossa casa e me dissesse que eu perdoo o nosso pai, nossa mãe, você'

(Foto: Luanna Falcão)
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Com um único minarete que desponta como um dedo em riste (uma súplica) voltado para o céu, a mesquita S., que fica em C., não tem os tradicionais alto-falantes que conclamam os muçulmanos, com fervor, para as orações diárias: “Allahu akbar!” (Alá é grande!).

Em Istambul, nos bairros palestinos de Jerusalém e na Cidade do Cairo, pude ouvir tais alto-falantes alcançando os fiéis, como anjos alados, para que homens e mulheres fossem à mesquita mais próxima e fizessem as cinco orações diárias prostrados em direção à cidade sagrada de Meca, na Arábia Saudita, onde nasceu e morreu o profeta Maomé e onde fica o santuário de Ka’bah, local ungido pelas forças celestiais, segundo a tradição muçulmana.

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As cinco orações diárias acompanham o sol em sua peregrinação pelo céu: a prece com a primeira luz da manhã (al-fajr) só termina com o raiar da aurora (ashruq). A segunda oração começa logo após o zênite solar (al-zuhr) e é sucedida pelo entardecer (al-asr) e pelo pôr do sol (al-maghrib). Entre o crepúsculo e a meia-noite, o fiel pede bons sonhos a Alá com a oração do anoitecer (al-’isha).

À entrada da mesquita em C., quem me recebe é o sheikh Abu Fahid, que, há pouco mais de uma década, ainda era o católico paulista Carlos. Com a barba espessa e um thoubh branco – espécie de batina que se estende do pescoço ao fim das canelas –, Carlos me conta que seu interesse pela história das religiões o levou a estudar a vida de Maomé. Pouco tempo depois, para a surpresa do pai católico e da mãe espírita, Carlos começou a frequentar uma pequena mesquita em São Paulo e, com a intercessão do sheikh local, acabou sendo agraciado com uma bolsa para estudar a shariah, lei islâmica, e a língua árabe, no Sudão, onde permaneceu durante seis anos, após os quais, com a intercessão de um amigo argelino, realizou um curso de teologia islâmica, durante cinco anos, na cidade sagrada de Medina, na Arábia Saudita, onde Maomé buscou exílio para fugir das perseguições religiosas que sofria em Meca por causa de sua nova pregação – episódio conhecido como hégira. Em Medina, Carlos Abu Fahid conheceu sua esposa, uma venezuelana originalmente católica que também se converteu ao islamismo.

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Quando pergunto a Carlos como ele veio parar em Maringá, Abu Fahid me leva à raiz mesma do islã, “que quer dizer submissão à vontade de Alá. Como há uma comunidade muçulmana em número considerável em C. e nas cidades circunvizinhas, encontrei aqui o meu lugar para disseminar as revelações do Alcorão”. Após ouvir a menção ao livro sagrado do islamismo, mostro ao sheikh paulista um exemplar do Alcorão, em português, que me foi dado por um sheikh egípcio, com quem conversei sobre o islã, durante mais de duas horas, na primeira mesquita erigida no continente africano, na Cidade do Cairo.

– Bismilahi! (Em nome de Alá!) – exclama Abu Fahid.

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Bismilahi, por sinal, é a expressão que os funcionários muçulmanos das fábricas de franco em C., muitos deles oriundos da Síria, do Paquistão, de Bangladesh e da Guiné, pronunciam antes de degolar os animais segundo o rito determinado pelo Alcorão. “Só então a carne pode ser exportada para os países islâmicos” – esclarece o sheikh.

Antes de nos dirigirmos ao interior da mesquita para as orações, Abu Fahid pede que eu vá até o banheiro para o ritual de purificação.

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Em Istambul, Jerusalém e no Cairo, há torneiras espraiadas pelo pátio das mesquitas para que os fiéis lavem as mãos, os antebraços, o rosto, a cabeça e os pés antes das orações. Antes de entrar no local das preces, preciso tirar os sapatos.

Via de regra, os locais de oração são acarpetados. Na belíssima Mesquita Azul, em Istambul, o carpete infindo demarca casulos para que cada fiel – homens apartados das mulheres, como nas sinagogas – possa fazer as genuflexões, se prostrar com a testa junto ao tapete e entoar os sete versículos iniciais do Alcorão, a al-fátiha (abertura), que foram revelados a Maomé em Meca:

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1. Em nome de Alá, o Clemente, o Misericordioso.

2. Louvado seja Alá, Senhor do Universo,

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3. O Clemente, o Misericordioso,

4. Soberano do Dia do Juízo.

5. Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda!

6. Guia-nos à senda correta,

7. À senda dos que agraciaste, não à dos abominados, nem à dos extraviados.

Após fazermos as orações – mimetizo, passo a passo, as genuflexões e prostrações do sheikh –, Carlos Abu Fahid me revela que a divindade islâmica tem 99 nomes, a começar por Alá (Deus). Quando deparo com os pares antípodas que qualificam Alá, me vêm à mente Aquiles (“O que Apressa”) e a tartaruga (“O que Retarda”); o Deus do Gênesis (“O Originador e Iniciador de Tudo”) e o Deus do dilúvio (“O Criador da Morte”); o amigo (“O que Honra”) e o inimigo (“O que Desonra”); o tempo de rasgar (“O que Causa Preocupações”) e o tempo de costurar (“A Fonte da Paz”); o alfa (“O Primeiro”) e o ômega (“O Último”); o sermão da montanha (“O que Perdoa”) e o evangelho segundo talião (“O Vingador”). Quando Alá se me apresenta, sem mais, como “A Verdade” e “Aquele que é Real”, pareço ouvir a resposta de Deus a Moisés no monte Sinai: quando interpelado pelo profeta que conduzira os judeus para além do cativeiro egípcio – “Quem é você?” –, Deus troveja, como resposta, um inexpugnável “Eu sou Aquele que sou”.

Enquanto Abu Fahid prossegue em suas orações, entrevejo, de soslaio, um senhor totalmente prostrado que geme de emoção ao exaltar Alá. Faço menção de interpelar o sheikh – será que ele está bem? –, mas fico pesaroso em atrapalhar suas preces. Pé ante pé, vou, então, até o senhor, que chora como uma criança, deitado de bruços e com o rosto enterrado entre as mãos repletas de nódoas e veias intumescidas. Pouso, cuidadosa e amigavelmente, a mão esquerda em seu ombro direito.

– Me desculpe incomodá-lo, mas o senhor está bem?

Minha pergunta parece içá-lo de outra dimensão: o velho levanta a carcaça lentamente e, quando se volta para mim, vejo seu rosto arado por lágrimas, que desaguam em uma barba bem branca, sem bigode, desgrenhada e a lhe percorrer a meia-lua da mandíbula, de ponta a ponta, como se ele fosse um sábio afegão.

– Allahu akbar! Alá é grande! Allahu akbar! Meu irmão e eu, depois de quase sessenta anos, nos reconciliamos... Alá é grande! Allahu akbar! Alá é grande!

– Mas que notícia formidável, fico muito contente pelo senhor e seu irmão!

O velho me estende a mão direita ainda trêmula e se apresenta:

– Meu nome é Hussein Halim Al Ghafur, salaam aleikum (que a paz esteja sobre vós).

Ao que, após cumprimentá-lo e me apresentar, eu prontamente redarguo:

– Waalaikum as-salaam (e sobre vós esteja a paz).

O senhor Hussein enxuga as lágrimas com o dorso da mão direita e sentencia:

– Alá, O Soberano, O Onisciente, O Onipotente, determinou a manhã da minha chegada e ditará a noite da minha partida. Mas, depois de me reconciliar com meu irmão Said, eu já posso morrer... Allahu akbar! Alá é grande! Allahu akbar!

– Não, senhor Hussein, o senhor não vai morrer agora, não, o senhor ainda tem muita lenha pra queimar, insha'Allah! (se Alá quiser!). Mas onde está seu irmão agora, senhor Hussein, para eu tomar, sozinho, duas doses de uma cachacinha da boa em homenagem a essa reconciliação, já que o senhor e Said não podem beber?

O senhor Hussein engole em seco e abaixa o queixo até colá-lo ao peito, de modo a espraiar a barba como um cachecol. Súbito, ele volta a me encarar:

– Meu irmão morreu, ontem, de mãos dadas comigo. Suas últimas palavras foram: “Eu te perdoo, meu irmão... Eu te amo!”.

O senhor Hussein volta a ficar ensimesmado. Súbito, ele passa a falar como se tivesse incorporado o ímpeto narrativo de Sherazade:

– Há quase sessenta anos – talvez menos, talvez mais, eu não quero me lembrar ao certo –, e já com o Estado de Israel a pisar sobre o pescoço da Palestina, alguém bateu à nossa porta enquanto estávamos jantando. Como primogênito, eu já estava pronto a ver quem era, mas, dada a fúria das pancadas, meu pai me fez estacar com a autoridade de seus olhos, mandou que minha mãe levasse a mim e a meu irmão para o quarto e foi até a porta. Quando ele a abriu, um soldado israelense, com o fuzil em riste, lhe gritou que nossa família tinha apenas 24 horas para abandonar, com tudo o que pudéssemos juntar, o terreno e a casinha que passara do meu tataravô Amir para o meu bisavô Hussein; do meu bisavô Hussein para o meu avô Amir Hussein; do meu avô Amir Hussein para o meu pai Said. Se a casa não estivesse desocupada até as 19h do dia seguinte, a retroescavadeira e as balas – o soldado apontou o fuzil para o peito do meu pai – fariam terra arrasada de tudo e de todos que houvesse pela frente.

O senhor Hussein estaca as palavras e leva as mãos ao pescoço com sofreguidão, como se o pomo de Adão, impossível de ser engolido, fosse o tumor da memória.

– Eu me lembro como se fosse agora: minha mãe desesperada, Said e eu em prantos, mas o meu pai, impassível, puxa uma velha cadeira de vime, que lhe viera do meu tataravô Amir, se senta e sentencia: “Alá dá a vida, Alá a tira. Da casa dos meus ancestrais ninguém me expulsa, a não ser Alá. Fátima, junte agora todas as coisas, tudo o que puder pegar, e fuja daqui com Hussein e Said!”. Quando minha mãe faz menção de redarguir, meu pai a mira com a fúria de uma tempestade de areia e vocifera: “Vamos, Fátima! Rua daqui agora, já, leve Hussein e Said com você agora, já!”.

O senhor Hussein retesa os punhos com virulência, como se fosse estancar (ou enforcar) o tempo.

– Said agarra as pernas do nosso pai, enquanto eu tento consolar nossa mãe, que já havido entendido (e temido) a irredutibilidade de mármore do marido. Nossos tios, nossos vizinhos, todos, absolutamente todos, tentam demover nosso pai daquela loucura, mas Said Halim Al Ghafur já se decidira: serei o primeiro shahid de nossa família, de nossa casa e de nossa vila destroçadas pelos sionistas. Alá dá a vida, Alá a tira, e meu martírio é a condição da nossa dignidade. Insha’Allah!

O senhor Hussein abre as mãos que retesara com tanta força a ponto de sulcar as palmas com as unhas, como se reeditasse a impotência de quem velou o pai ainda vivo quando da despedida.

– Não conseguimos ir para longe – Said teimava em voltar, e meu tio precisou esbofeteá-lo e até mesmo amarrá-lo para conter a fúria daquele pequeno órfão de pai vivo. Eu tentava consolar minha mãe, que só fazia balbuciar retalhos de palavras, como se aquela língua desconexa de dor já prenunciasse os escombros de tudo aquilo que havíamos amado.

Não fosse pela intervenção tão amável quanto incisiva do sheikh Abu Fahid, o punho retesado do senhor Hussein bem poderia ter rasgado o carpete da mesquita. (Carlos me olha com um semblante inusitadamente apaziguador, como se entendesse, a reboque de alguma sabedoria para mim intangível, que a memória do senhor Hussein precisa desaguar.)

– Quando voltamos à nossa vila na manhã seguinte à destruição – isto é, quando a vimos, de longe, a partir de um monte no deserto, fora do isolamento imposto pelos soldados israelenses, ainda havia fumaça – uma fumaça malemolente subindo aos céus, como se Alá, O Misericordioso, nos permitisse ver o último aceno de nosso pai. E foi diante daquela cena, com todo o nosso passado, de um dia para o outro, reduzido a escombros, que eu entreouvi, como se fosse uma miragem, meu irmão Said prometer: “Eu vou viver para vingar meu pai, nem que seja a última coisa que eu faça... Eu vou morrer para vingar meu pai!”. Mal tive tempo para esfregar meus olhos e ouvidos para me certificar de que aquilo era real, já que minha mãe, como que possuída, começou a estapear meu irmão com a saudade e a culpa (o crime e o castigo) de quem já se via aleijada do marido para poder salvar os filhos. Minha mãe nunca mais nos amou da mesma forma – depois de longos silêncios, ela nos mirava com o olhar engatilhado, como se nós, seus filhos, fôssemos culpados por ela não ter podido acompanhar meu pai no martírio; como se nós, seus filhos, fôssemos culpados por parecermos com nosso pai; como se nós, seus filhos, não fôssemos vítimas e testemunhas oculares, mas cúmplices; como se nós, seus filhos, fôssemos culpados por ela ter abandonado a Palestina e vindo para o Brasil; como se nós, seus filhos, fôssemos culpados por ela ter querido esquecer; como se nós, seus filhos, fôssemos culpados por lhe trazer uma paz impura, uma paz pecaminosa. A princípio, minha mãe sequer conseguia olhar para meu irmão Said – era como se a resistência do caçula (“Não vou abandonar o papai, não vou, não vou e não vou!”) lhe atirasse a pedra de sua covardia contra o próprio peito. Mas, tempos depois – não me pergunte quanto tempo, eu tenho medo de lembrar... –, minha mãe começou a ralhar comigo, a brigar comigo, porque Said, teu irmão, foi quem pensou no pai, você ficou ali, Hussein, me chaleirando, me acalmando, me consolando, mas como é que alguém pode abraçar a paz às custas do marido soterrado, às custas do amor entre os escombros, hem? Só Alá é Aquele que Tudo Abraça, mas eu, pequenina e humana, eu não aguento, eu não posso, eu não suporto, me tirem daqui, agora, vamos, eu quero voltar, eu quero sangrar, eu quero sofrer, eu quero esquecer... Meu Said, meu amor, pai dos meus filhos, eu ainda não tô seca, eu logo vou te dar um novo menino, ele vai nascer na nossa casa, volta, Said, volta, meu amor!

O senhor Hussein fala, convulso, como uma personagem de si mesmo, como se resgatasse a própria mãe dos escombros que ela tanto queria que a tivessem soterrado. O velho então prossegue, ainda em transe:

– Minha mãe ficou louca, minha mãe morreu louca... de raiva, com raiva! E meu irmão já não falava comigo, meu irmão já não olhava pra mim, era como se eu fosse um leproso, era como se eu fosse o culpado... Said, meu irmão, não me abandone, em nome do pai, bismilahi, em nome de Alá, nós só temos um ao outro, nós somos tudo o que restou da nossa família, eu te amo, Said, eu te amo, meu irmão! (O senhor Hussein então me mira com uma cara de Medusa, e sua voz se altera.) Não, Hussein, nós não somos tudo o que restou da nossa família, não, olha aqui, olha essa pedra, olha essa lasca da nossa casa, olha essa lasca da nossa vila, olha esse escombro da nossa vida. A mamãe não me deixou matar um sionista com esta pedra, você não me deixou matar um sionista com esta lasca... A mamãe, você... A mamãe, não; você, você é o culpado, você, só você!

Como se fosse resgatado do inferno, o semblante do senhor Hussein, súbita e paradoxalmente, se apazigua. (A calmaria dúbia que precede a tormenta.)

– Eu chacoalhei o meu irmão com força, lhe dei um safanão e pedi que ele me ouvisse – pedi, não, mandei! Escuta aqui, Said, em nome do pai, bismilahi, em nome de Alá: não havia o que pudéssemos fazer, os soldados eram muito mais fortes, não fomos culpados, não somos culpados, papai quis morrer como um shahid, como um mártir, como um herói, pela nossa casa, pela nossa causa, pela nossa memória, por nós. Ele não pediu que fizéssemos o mesmo, ele exigiu que fugíssemos, ele queria que sobrevivêssemos a ele, à casa e à vila, ele queria que a memória não fosse soterrada de todo, que ainda houvesse o nosso povo. E aqui estamos, e aqui está você, e aqui estou eu, e nós somos irmãos! Said, meu irmão, você é filho da minha mãe, você é filho do meu pai, em nome de Alá, bismilahi, pense de uma vez e aceite: não há nada, absolutamente nada, que você possa fazer para trazer o papai de volta... Nada! Adianta se vingar? Adianta odiar? Adianta odiar a mamãe? Adianta me odiar? Adianta se odiar? Bismilahi, Said, em nome de Alá, meu irmão, nós estamos aqui, nós temos um ao outro, vamos recomeçar!

Trêmulo e ofegante, o senhor Hussein bebe – ou, melhor, tenta beber – o copo d’água que o sheikh Abu Fahid lhe oferece. Mas é preciso terminar o relato, é preciso regurgitar a memória:

– Said ouviu as minhas súplicas e, há sessenta anos – talvez mais, talvez menos, que diferença faz?, eu não quero me lembrar ao certo –, meu irmão me chicoteou com as palavras mais virulentas que alguém já cuspiu contra mim: “Alá? Alá?! Onde estava Alá, A Verdade, quando nosso pai foi fuzilado e soterrado? (Ou será que nosso pai foi soterrado e fuzilado?) Alá não é Aquele que é Real? Pois me diga, irmão, me diga agora, Hussein: o invisível é mais real do que a aniquilação eternamente injusta e palpável do nosso pai e do nosso povo? Onde está Alá, O Vingador? Pois eu te digo, irmão: Alá não está lá, Alá não está aqui, Alá não existe! Pois eu te digo mais, Hussein: não adianta me chamar à razão se Alá não existe, se não há sentido... Ora, nenhuma vingança vai trazer nosso pai de volta, você diz. E por que eu devo ser razoável em face de uma vida e diante da morte das mortes, a morte do meu pai, que não fazem sentido algum? Não há o que possa redimir nosso pai, não há o que possa redimir nossa mãe, não há o que possa nos redimir, para o bem e para o mal... Fique então com sua paz covarde, engula seu esquecimento cúmplice e suas certezas cegas, Hussein, e me deixe em guerra, para nunca mais me ver, com o crime e a vingança que eu não pude (que eu não ousei...) levar a cabo. Eu fico com o crime e o deserto, você fica com a covardia do castigo e a miragem da redenção…

O semblante do senhor Hussein se transfigura ainda uma vez: em paz, ele nos leva a um leito de UTI na cidade de L..

– Ficamos décadas sem nos ver – nenhuma carta, nenhum telefonema, nenhuma palavra –, mas meu irmão não foi longe, talvez ele soubesse de mim, já que se assentou a menos de cem quilômetros aqui de C.. O fato é que, ontem, alguém (quem?, de onde?, como?) me ligou e me passou o nome do hospital onde Said estava morrendo. “Ele não quer ir embora sem falar com você”. Voei pra lá, sessenta anos depois, para que meu irmão me entregasse o último pedregulho da nossa casa e me dissesse que eu perdoo o nosso pai, eu perdoo a nossa mãe, eu perdoo você, Hussein, mas eu só vou me perdoar, meu irmão, se você me perdoar... Eu te perdoo, Said... Eu te amo, meu irmão! Fico segurando a mão do meu irmão e sinto a pegada se fragilizar e o olhar desfalecer conforme os batimentos cardíacos descem a zero – quando eu aperto a mão de Said como que a resgatá-lo do reencontro com nossos pais, a linha reta da morte rasga o aparelho cardíaco de ponta a ponta com seu apito monocórdio de trem sem volta: “Piiiiii!”.

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