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Leonardo Avritzer

Professor de ciência política na UFMG

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O que resta de Auschwitz

O professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG Leonardo Avritzer escreve sobre o o livro de Giorgio Agamben "O que resta de Auschwitz"

Auschwitz (Foto: REUTERS/Kacper Pempel)
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Por Leonardo Avritzer

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Theodor Adorno afirmou certa vez que não era possível fazer poesia depois de Auschwitz. Em Sombras sobre o rio Hudson (Companhia das Letras), um personagem de Bashevis Singer afirma que não é possível sustentar a existência de Deus depois de Auschwitz. Na obra de Hannah Arendt, encontramos várias vezes a sugestão de que a fabricação da destruição sistemática dos homens tornou impossível pensar a política depois de Auschwitz.

O livro O que resta de Auschwitz, de Giorgio Agamben, mostra que Auschwitz, ao invés de demonstrar a impossibilidade da filosofia, da poesia ou da política, abriu uma nova possibilidade de pensar cada uma dessas dimensões, que seria pensá-las no limite, no limite entre a vida e a morte, o humano e o não humano, a dignidade e a não dignidade, a política e a fabricação.

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Em um conjunto de quatro ensaios – “A testemunha”, “O muçulmano”, “A vergonha ou Do sujeito” e “O arquivo e o testemunho” –, Agamben aborda as questões que podem fundar uma filosofia política dos limites: o testemunho sem experiência ou a condição humana entre a vida e a morte. É com base nessas questões que ele pretende discutir o que é o verdadeiramente humano na situação limite. Pretendemos aqui acompanhar o autor em dois dos seus ensaios principais para tentar encarar a seguinte questão: qual seria a concepção de política possível depois de Auschwitz?

O ensaio sobre “A testemunha” começa com uma observação de Primo Levi. Ao ser perguntado qual era a sua profissão, sem hesitar afirmou ser um químico. Ele havia se tornado um escritor apenas para testemunhar a experiência que vivera em Auschwitz. Agamben lembra, ao discutir a afirmação de Levi, as duas acepções da palavra testemunha: aquele que se põe como um terceiro em um processo e aquele que viveu algo.

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No entanto, no mesmo momento em que Agamben classifica Levi na segunda categoria, ele se põe uma questão importante, que aponta na direção da relação entre Auschwitz e os limites da filosofia. É possível afirmar que todos os que testemunharam Auschwitz na sua integralidade foram mortos. Da perspectiva da integralidade da experiência, Auschwitz não deixou testemunhas.

Como nos diz Agamben, “neste caso o testemunho vale por aquilo que nele falta; contém, no seu centro, algo intestemunhável”. Agamben institui, assim, um novo conceito de testemunha. No limite entre a vida e a morte, o holocausto foi um acontecimento sem testemunhas e, portanto, a palavra é insuficiente para descrever o que foi vivenciado. Esse seria um primeiro elemento de uma filosofia dos limites da experiência.

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Alguns homens e mulheres em Auschwitz já estavam mais além da vida, mas ainda não haviam morrido. Eram cadáveres ambulantes cujas funções fisiológicas já não funcionavam e que já haviam perdido o domínio da linguagem. Esses homens e mulheres eram conhecidos como muçulmanos. Não se sabe, ao certo, qual foi o motivo de se designar como mulçumanos os indivíduos nessa condição.

Mas não é possível subestimar as conseqüências dessa condição e de sua designação. Segundo Agamben, “antes de ser o campo da morte, Auschwitz é o lugar de um experimento ainda impensado, no qual para além da vida e da morte, o judeu se transforma em mulçumano e o homem em não homem”. O muçulmano em Auschwitz é um ser numa situação muito particular, na qual deixam de fazer sentido as categorias de respeito e de dignidade. Também a linguagem já não faz nenhum sentido para o muçulmano. Em Auschwitz, toda comunicação foi substituída pelo bastão de borracha, o cacetete, que, surpreendentemente, lá recebeu o apelido de “o intérprete”. Assim, a filosofia do limite é aquela que teoriza a vida e a morte utilizando a experiência que pode prescindir da palavra.

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Mais uma vez chegamos a uma situação limite para a filosofia e para a política. Os muçulmanos, ou os cadáveres ambulantes de Auschwitz, recolocam a questão da relação entre política e vida na modernidade. O conceito medieval de política é aquele que vincula a soberania à prerrogativa daqueles que ocupam o poder de decidir sobre a vida e a morte dos seus súditos. Toda a política moderna está fundada nos limites a essa prerrogativa. Auschwitz redefiniu a política ao mudar os termos dessa relação.

O Estado não apenas volta a ter controle sobre a vida e morte. Auschwitz significa a própria redefinição do conceito de vida e de morte. Como nos lembra Hannah Arendt, não havia morte em Auschwitz, e sim a fabricação de cadáveres pelo estado, conceito que desvincula a morte da experiência da finitude humana. A única maneira de superar Auschwitz politicamente é reconstruir o conceito da pluralidade humana. O surpreendente nessa tentativa é a ambiguidade do uso do termo muçulmano. Ele expressa, ao mesmo tempo, o não humano presente em Auschwitz e sua ambígua continuidade na tentativa de reconstrução da pluralidade humana no pós-guerra.

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Referência

Giorgio Agamben. O que resta de Auschwitz – O arquivo e a testemunha. Tradução: Selvino J. Assmann .São Paulo, Boitempo, 168 págs.

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