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Sylvio da Costa Junior

Doutor pela UFRGS; Conselheiro Nacional de Saúde – Entidade FIO; Conselheiro Municipal de Saúde de Florianópolis – Entidade CUT

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Os generais e o SUS

O SUS nasce, a rigor, como uma resposta corajosa diante da gravíssima crise social que o país vivia

SUS - Sistema Único de Saúde (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
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Foi comemorado no dia 17 de maio desse ano o aniversário de 34 anos do SUS, pelo fato de nesse dia ter sido instituída na Constituição de 1988 os alicerces do então novo sistema de saúde, entre seus artigos nº196 a nº200.

O sistema único de saúde é motivo de orgulho do povo brasileiro e, como chamamos de forma recorrente, um patrimônio do país, que muda a lógica e a prática da oferta de saúde, uma vez que abandonamos um sistema federalizado na gestão e na assistência de saúde para um sistema municipalizado de cuidados, onde saímos de uma oferta de serviços de saúde apenas para os brasileiros no mercado formal de trabalho e passamos a oferecer saúde a todos brasileiros e estrangeiros, trabalhadores formais ou não.

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Esse modelo de saúde inaugurado desde então não advém de um parto sem dor, ou de um nascimento ao acaso, como um raio em céu azul. Poeticamente podemos afirmar que ao morrer o velho nasceu o novo, ou que ao cabo de uma ditadura militar e ao início da Nova República, o SUS foi implantado. Essas afirmações estão corretas, mas é importante contextualizá-las em seu tempo e em seu período histórico para que não acreditemos que o SUS nasceu de uma eventualidade, ou que uma cegonha o trouxe do além, a partir de meia dúzia de pessoas que se reuniram e tiveram uma ideia genial, criar um sistema de saúde para todos.

Como escrito na Constituição Federal de 1988, em seu artigo nº 196, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas(...)”.  Logo, quando abordamos a temática da saúde pública é impossível olharmos de maneira analítica sem entendermos a importância da variável econômica como produtora de saúde, ou de doença, a depender de suas consequências sociais. De tal modo, a oferta de cuidados em saúde também se organiza a partir do padrão epidemiológico da sociedade ou do território. Políticas econômicas que geram pobreza e miséria social, para o conjunto da população, geram também padrões de determinadas patologias e doenças. Nesse sentido, a saúde e a economia são campos ideológicos de disputas e conflitos que apresentam múltiplos vasos comunicantes, pois em um ambiente economicamente degradado, ou seja, em uma economia doente, a população também adoecerá.

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Indo ao ponto do presente artigo, uma vez dado o golpe militar em 1964, e radicalizado em 1968 com o AI-5, o país viveu economicamente uma sucessão de crises permanentes, com consequências no campo da saúde e no padrão de adoecimento da população. O golpe de 64 interrompeu o debate que estava vivo na sociedade brasileira sobre as chamadas reformas de base, como a reforma agrária, a reforma tributária, a reforma urbana e a reforma sanitária, não só adiando a resposta para enfrentar os problemas e conflitos vividos pelo país no momento, mas prolongando e dificultando, por conseguinte, uma solução robusta para situações complexos. Assim, a ditadura foi um governo de crise sobreposta, uma seguida da outra. O próprio período de crescimento econômico que o país experimentou entre os anos de 1968 e 1973, conhecido como ‘milagre econômico’, se deu baseado em políticas econômicas de profundo arrocho salarial (reduzindo o salário mínimo em 1/3 de seu poder de compra) e ataque aos sindicatos, tudo com a justificativa de cortar a alta inflacionária. Como também recentemente, em 2016, o governo Temer, fruto também de um golpe, aprovou a ‘Reforma Trabalhista’, um ataque duríssimo ao sindicalismo nacional, sob a alegação de flexibilizar a contratação de mão-de-obra e gerar crescimento econômico. O resultado concreto disso foi que ficamos em 2022 sem direitos e sem crescimento econômico, assim como os anos do ‘milagre econômico’ foi para milhões de brasileiros um infortúnio.

Com a contenção à fórceps do poder de compra e grave crise social, a inflação nos final dos anos 60 reduziu na marra. Foi realizado em seguida um processo de industrialização e investimento em infra-estrutura do país, entre outras coisas, baseado majoritariamente no endividamento externo, como se não houvesse amanhã. Essa política de industrialização à jato e sem planejamento promoveu um fenômeno social nunca revertido, chamado ‘êxodo rural’, onde milhões de brasileiros das regiões mais pobres, notadamente o Norte e o Nordeste, saíram em caravanas, veículos precários de transporte chamados ‘paus de araras’, fugindo da miséria e do abandono para tentar uma vida melhor nas grandes cidades. Como o sistema de saúde da época era de usufruto apenas para os trabalhadores de carteira assinada esse contingente gigantesco de pessoas estava entregue à própria sorte, no tocante a saúde, e sem acesso a consultas, exames e cirurgias. A assistência de serviços de saúde para o grosso da população nesse período se dava por entidades filantrópicas ou religiosas onde os recursos eram escassos e a oferta de serviços precária diante da massa gigantesca de brasileiros desassistidos.  Para se ter idéia, a mortalidade infantil era absurda, morriam crianças pobres como moscas Brasil afora. Mortes por diarréia infecciosa, subnutrição e fome faziam o país ser comparado internacionalmente a nações africanas em guerra.

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Mesmo os trabalhadores no mercado formal de trabalho, que tinham acesso aos INAMPS, nunca tiveram atendimento gratuito. O INPS, e depois o INAMPS, atuavam essencialmente através de convênios com a rede privada ao invés de investir na ampliação e qualidade da rede própria de serviços. O atendimento era majoritariamente conveniado com a rede privada, criando uma verdadeira enxurrada de dinheiro público para ampliação da rede privada de serviços médicos.  O modelo de saúde gerido pelos militares não era apenas desigual, era perverso. Mesmo um pequeno contingente de trabalhadores tendo direito ao usufruto do acesso à saúde muitas vezes não podia fazê-lo porque esse acesso era pago, em clínicas e hospitais conveniados. 

O melhor retrato do ‘milagre econômico’ foi a frase atribuída a Delfim Netto, Ministro da Economia da época, dizendo que “o bolo precisava primeiro crescer para depois ser repartido”, como se dissesse: o crescimento econômico nesse momento não é para todos. Jamais foi. Durante o milagre econômico o bolo realmente cresceu, mas nunca foi repartido de forma equilibrada e equânime. O próprio presidente da época, o general Emilio Garratazu Médici, afirmou que "a economia vai bem, mas o povo vai mal”, dando bem a dimensão do buraco que estávamos metidos. Cabia perguntar: a economia vai bem para quem, cara pálida? Um famoso economista liberal, Edmar Bacha, apelidou o Brasil de então de “Belindia”, uma nação fictícia, formada pela união da Bélgica com a Índia, onde habitavam juntas, em um equilíbrio catastrófico, um pequeno país rico, branco, que consome bens e produtos importados, a Bélgica, e uma imensa nação pobre e desigual, a Índia. Estava claro que o milagre brasileiro era um gigante com pés de barro. O milagre econômico agiu como um cirurgião inapto, que não sabendo o que fazer diante de um paciente gravemente enfermo, o anestesia, mas não o opera, deixando-o lá, em um nirvana passageiro, enquanto a doença evolui.

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Com a primeira crise do petróleo, em 1973, onde países produtores árabes se negam a vender óleo para países aliados de Israel, o sonho pueril do milagre brasileiro acaba de forma trágica, uma vez que toda fonte de energia no Brasil era importada e baseada no petróleo. E no segundo choque em 1979, com a revolução do Irã, a ditadura fica de joelhos. Decorrente da falta de organização e planejamento da ditadura militar para administração do país, a crise econômica explode, pois agora temos um país  com os mesmos problemas do passado e alguns adicionais, como alto endividamento externo e a hiperinflação. O final da ditadura não se deu por fruto da generosidade dos generais, mas diante de um caos social e econômico quase ingovernável. O país estava no final dos anos 70 economicamente caindo aos pedaços.

O último general que governou o país entregou ao governo Sarney uma inflação de 215% ao ano, em 1984, e uma crise intitulada de ‘colapso da dívida externa’, onde de tanto endividar o país em fundos, bancos e organismo internacionais, como por exemplo o FMI, o país não consegue honrar compromissos externos básicos de pagamento de empréstimos, todos em dólar. A ditadura militar leva o país para um pântano hiper inflação associado a um crescimento econômico pífio, desemprego nas alturas, e um endividamento externo que funcionava como uma mão estrangulando e asfixiando o pescoço do país. A ditadura militar entrega o Brasil para os governos civis subseqüentes nesse cenário, com um boom de desigualdade e altíssima concentração de renda, uma verdadeira selvageria social. A herança da ditadura no campo da economia levou o governo civil subsequente à moratória da dívida externa, em 1987, diante do óbvio, o país quebrou!

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Vale lembrar para os mais novos, que não viveram nem estudaram esse período, que a ditadura militar não produziu repressão, mortes e torturas apenas, como se isso já não fosse muito. Tudo que os governos civis tentaram fazer a partir de 1985 foi consertar o estrago militar promovido no país do ponto de vista econômico e social. 

O SUS nasce, a rigor, como uma resposta corajosa diante da gravíssima crise social que o país vivia.

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Essa crise monumental obviamente carrega junto de si o sistema de cuidados em saúde e de aposentadorias, o INAMPS, que vai à lona.  Impossível falar da origem do SUS sem contextualizar o momento social, econômico e político da época. O SUS não nasce de parto normal, nem sem dor, mas num país em convulsão. Por isso que devemos nos orgulhar não apenas do sistema de saúde que temos hoje, por si só, mas também de todos os brasileiros que, tijolo por tijolo, ajudaram e ajudam a construir o mais ambicioso sistema público de saúde do mundo. Viva o SUS, viva o povo brasileiro e viva a democracia. Ditadura nunca mais.

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