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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Para Givaldo Gualberto, professor de história e livreiro

Se Givaldo me conceder um perdão, acredito poder divulgar um trecho que escrevi inspirado na sua pessoa

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Nos mais recentes temos, me pergunto: por que não se contam os feitos notáveis das pessoas quando estão vivas? Apesar de, muitas vezes, não existir outra opção, e penso no súbito falecimento do escritor e pensador José Carlos Ruy, autor de um fecundo Dicionário Machado de Assis, até hoje inédito. Apesar de tais perdas súbitas, sinto que devo continuar com uma galeria de amigos vivos que são essenciais.

Mas ocorre um problema. Quando retomo o elogio em vida de amigos, novas dificuldades se levantam. Algumas vezes, companheiros de jornada desejam uma apologia, com a exclusão do divertido em suas trajetórias. Compreendo, mas como escritor devo me equilibrar entre a justa homenagem e a verdade do cômico, que todos temos em nossas vidas. Nem sempre consigo o equilíbrio. Notem em que dificuldade me encontro agora, quando me refiro ao amigo Givaldo Gualberto. Ele possui dignidade extraordinária, mas ao mesmo tempo traços dignos de um sorriso à distância. Sigamos.

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Givaldo Gualberto começou a sua atividade política no ano de 1961 na Juventude do Partido Comunista Brasileiro, PCB, passando depois, em 1966, a militar em Ação Popular, AP. Preso em setembro de 1967, junto com outros estudantes do Colégio Estadual de Pernambuco e em setembro 1977, quando participava com outros estudantes da Universidade Católica, de um ato de protesto pela proibição de um debate entre 3 senadores da república que iria se realizar na Faculdade de Direito. Ele já foi gerente da Livro 7, a maior livraria do Brasil, e depois proprietário da pequena livraria Quilombo.

Formado em História, professor de escola pública. Mas nunca deixou o ramo livreiro, de pesquisador de livros, de compra de raridades. No seu apartamento, onde mora sozinho, os espaços todos são tomados por livros em prateleiras de metal. Todos os espaços, da sala ao banheiro.

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O seu estado de saúde hoje inspira muitos cuidados. Em mensagem que enviei, em 12 de julho de 2023, ao Ministro de Direito Humanos para que lhe fosse concedida um justa pensão pelo que passou na ditadura, relatei:

“Solicito a atenção de Vossa Excelência para a urgência do processo de Anistia 2010.01.67794, de Givaldo Gualberto da Silva. Ele foi um importante militante contra a ditadura no Recife, conhecido livreiro e referência da memória da cidade do Recife. No momento, Givaldo Gualberto da Silva se encontra na idade de 81 anos (em 2023), com gravíssimo estado de saúde. A saber: quase cego...” E mais não devo divulgar, em respeito à sua privacidade. E concluí: “O que importa é Givaldo Gualberto da Silva terminar os seus dias com um mínimo de conforto, depois de tanta luta. Assim, solicito ao Mui Digno Ministro de Direitos Humanos que ‘faça por ele como se fosse por mim’, como no samba de Ismael Silva. Com esperança e levando a em conta a história do Ministro de Direitos Humanos Silvio Luiz de Almeida

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Atenciosamente

Urariano Mota”.

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E neste lento e gradual passo até hoje ainda estamos, sem recompensa merecida pelo amigo.

Agora, se Givaldo me conceder um perdão, acredito poder divulgar um trecho que escrevi inspirado na sua pessoa, publicado no romance “A mais longa duração da juventude”. Se não me punir com qualquer mágoa, vamos ao personagem recriado.

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“Em uma reunião de mestres de escola pública, o nosso personagem pergunta a um professor de português:

- O senhor já falou da obra de Solano Trindade para os seus alunos?

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- Isso não está no programa.

- E Graciliano Ramos?

- Vidas secas. O exigido para o vestibular.

- O professor precisa é ser reciclado. Nem o senhor mesmo conhece Solano Trindade. Eu tenho a certeza.

- É? E o senhor precisa aprender ortografia. Me perdoe a franqueza. Já vi caderno de aluno que copiou o seu resumo do quadro.

‘Ele era um policial, com certeza. Me fiscalizava até nos cadernos dos alunos’, nos contou. ‘Aí eu explodi’:

- Eu posso até haver cometido um cochilo, professor. Mas ninguém vai me acusar de desconhecer a glória da Revolução Pernambucana. O senhor sabe qual é?

- Sei. A intentona comunista de Gregório Bezerra. Isso é doutrinação, professor.

Os demais professores acompanhavam tensos o debate, no mais clamoroso silêncio. Mas concordavam com o ‘policial’ professor de português, com quem dividiam o julgamento sobre os alunos, ‘que não queriam nada com a vida’. E nosso personagem cavou mais uma vez o seu abismo:

- Eu sei por que o mestre pensa que a Revolução Pernambucana foi a Intentona Comunista. Sabe por quê, mestre? É porque o senhor precisa ler um livro. Só um! Um só, mestre, entendeu? Aliás – e se virou para a diretora, enquanto a mão girava sobre a assistência muda -, o livro mais lido aqui é o livrinho da Avon. É o best-seller dos mestres!

O diabo, se explodisse numa nuvem de enxofre, não faria mais efeito. A plateia silenciosa se transformou e reagiu aos berros:

- Calúnia! Nós só damos uma olhadinha pra ver a promoção de batom.

- E de perfume também. Com esse salário que o Estado nos paga...

- Subversivo! – gritou o professor de português.

- Eu sou um servidor público – reagiu nosso personagem. – Não venha com acusação de policial da ditadura. Pra cima de mim, não, meu irmão.

- Você não passa de um doutrinador comunista.

- E você é uma múmia do golpe de 64. Múmia!

- Eu vou denunciá-lo ao Secretário de Educação.

- Olhe, não puxe denúncia que eu tenho muitas a fazer. De você e de muitos aqui.

- Então fale. Seja homem!

- Vocês roubam merenda dos alunos! Roubam galinha dos estudantes. Fazem a feira, eu já vi.

A gritaria foi geral. Então a diretora, que a tudo assistia calada, tentou pôr ordem:

- Se o senhor presenciou um roubo, e não o denunciou, é cúmplice. Agora, é tarde. – E se levantando: – Reunião encerrada”.

Que estas mal traçadas linhas sejam compreendidas, amigo Givaldo Gualberto. Com um abraço fraterno e admiração,

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