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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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Patíbulo e perdão

Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento.

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O condenado sobe ao cadafalso. 

Apupos da multidão sedenta. 

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Sob a máscara, o carrasco o espera. 

O condenado deve ajoelhar-se. 

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O condenado deve acoplar o pescoço ao talhe de madeira. 

Tão logo o condenado estique os braços trêmulos, 

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o machado despencará. 

Logo, já não haverá choro e ranger de dentes. 

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Antes de içar a lâmina, o algoz suplica ao condenado: 

“Você me perdoa?”.

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O evangelho segundo talião, Flávio Ricardo Vassoler

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I. A piedade de Talião

 

No dia 17 de janeiro de 2015, à meia-noite e meia – às 15h30 do dia 16 de janeiro, no Brasil –, o carioca Marco Archer Cardoso Moreira, de 53 anos, foi fuzilado em um presídio de segurança máxima na ilha de Nusa Kambangan, na costa sul da Ilha de Java, na Indonésia. 

Marco, um instrutor de voo, havia sido preso em 2003, ao tentar entrar na Indonésia com, aproximadamente, 13 quilos de cocaína escondidos nas ferragens de uma asa delta – o sistema de raio-x do Aeroporto Internacional de Jacarta pôde identificar a droga. Marco ainda conseguiu fugir do aeroporto, mas, duas semanas mais tarde, a polícia o prendeu. Em 2004, Marco foi sentenciado à pena de morte por tráfico internacional de drogas. 

O padre católico Charles Burrows, que atua no país há mais de 40 anos – a Indonésia é a nação com a maior população muçulmana do mundo –, relatou os últimos momentos de Marco Archer em uma entrevista para o grupo de mídia australiano Fairfex: 

Marco era católico e foi executado sem poder receber extrema-unção. Os momentos finais foram de grande desespero. Ele teve que ser arrastado da cela e saiu clamando por socorro. “Me ajudem, me ajudem!”. Marco chorava o tempo todo e chegou a defecar nas calças. 

 

 Quando ao condenado à morte Meursault, protagonista do romance O Estrangeiro, de Albert Camus, são oferecidos consolo espiritual e extrema-unção, a personagem agarra o padre pela batina e assim sentencia com a fúria de quem vai assistir ao próprio funeral: “Saiba que toda a sua metafísica pálida não vale um único fio de cabelo de mulher! Fora daqui com a piedade de quem vai sobreviver, rua!”.

As execuções no presídio de segurança máxima da ilha de Nusa Kambangan quase sempre acontecem à noite. O condenado é algemado e levado a um local secreto. Marco pôde escolher se enfrentaria o pelotão de fuzilamento em pé, sentado ou deitado. Ele também pôde escolher se seria executado sob uma venda, coberto por um capuz ou se assistiria a seu assassinato com os olhos esbugalhados. 

Consta que o chefe da brigada policial comanda um pelotão de fuzilamento composto por 12 soldados armados com rifles. Os algozes se perfilam a uma distância que oscila entre 5 a 10 metros em relação ao condenado. Ao comando do chefe da brigada, todos atiram ao mesmo tempo contra o peito do condenado. Consta que, dos 12 rifles, apenas dois estão carregados com balas de verdade – os demais levam balas de festim. Dessa maneira, os soldados não sabem quem foram os verdadeiros algozes. 

A ironia, o açoite sádico que Machado de Assis entrevia como o motor da história humana, mistura o joio e o trigo: a razão de Estado sente piedade pelo remorso que seus soldados eventualmente possam regurgitar com seus assassinatos burocráticos. Para o condenado, no entanto, só há a clemência do tiro de misericórdia. 

Se, após os disparos contra o peito, o condenado ainda estiver vivo, o chefe da brigada policial lhe dá um tiro no crânio. (Não há informações sobre se a Indonésia, a exemplo da República Popular da China, teria mandado para a família de Marco Archer Cardoso Moreira a fatura dos gastos estatais com a munição junto com as cinzas do condenado.) 

Se a razão de Estado realmente se preocupasse com o bem-estar psíquico de seus carrascos, Joko Widodo, presidente da Indonésia, deveria distribuir exemplares da autobiografia de Rudolf Hoess para seus chefes de brigada. 

Rudolf Hoess, comandante do campo de concentração de Auschwitz, se mostrou administrativamente preocupado com o alto índice de pesadelos, alcoolismo, rinhas de bar, agressões contra as esposas e os filhos e suicídios entre os algozes que compunham seu pelotão de fuzilamento. (É algo digno de esperança que mesmo a frieza nazista não tenha conseguido erradicar de todo o último resquício de humanidade dos soldados que ainda sentiam remorso.) 

Para aumentar a produtividade letal de Auschwitz, Hoess resolveu abstrair o sofrimento dos insumos humanos que eram escoados para seu campo de concentração ao empregar o gás Zyklon B como o novo carrasco de suas câmaras de morte. Os antigos membros do pelotão de fuzilamento deixaram de ouvir as súplicas dos condenados, eles já não precisavam esbofetear a mãe que se ajoelha por seu bebê, já não havia mais sangue sob os coturnos. Os antigos algozes se transformaram em operadores das câmaras de gás. O ofício da morte se tornou impessoal, clínico e indolor. (É bem verdade que as paredes das câmaras de gás ficavam repletas de unhadas dos asfixiados – os desenhos rupestres da civilização que regride à barbárie –, mas as portas espessas vedavam o desespero.) Depois do enésimo “banho de desinfecção” – assim os nazistas ludibriavam os condenados cartesianamente perfilados diante da morte –, os técnicos da câmera de gás só precisavam extrair eventuais dentes de ouro e empilhar os corpos rumo ao crematório. Já não havia choro e ranger de dentes.

Se compararmos as câmaras de gás à guilhotina e a guilhotina à morte medieval a pauladas e a machadadas, acompanharemos a evolução racional da piedade: o condenado moderno tem uma morte clínica, higiênica e indolor. Instantânea. A compaixão minimiza a agonia – e anula as chances de sobrevivência. A razão instrumental não nos livrou do cadafalso. Ela aprimorou a decapitação. 

 

 

II. Recordações da casa dos mortos

 

São Petersburgo, Praça Semiônov, 22 de dezembro de 1849. 

Os membros do Círculo de Petrachévski, um grupo de socialistas revolucionários que se contrapunha ao regime tsarista, estão postados diante do pelotão de fuzilamento. Entre os condenados à morte, encontra-se o escritor Fiódor Dostoiévski. 

As armas são apontadas. 

As armas são engatilhadas. 

Antes dos disparos, Dostoiévski já sente a vida se lhe esvair com o ranger de dentes e as pernas frágeis e trêmulas como dois gravetos. O (suposto) crime está para se deparar com o castigo: 

 

Onde é que eu li aquilo de um condenado à morte que no momento de morrer dizia ou pensava que se o deixassem viver num alto, numa rocha e num espaço tão reduzido que mal tivesse onde pousar os pés – e se à volta não houvesse mais que o abismo, o mar, trevas eternas, eterna solidão e tempestade perene –, e tivesse de ficar assim, em todo esse espaço de um archin, a sua vida toda, mil anos, a eternidade... preferiria viver assim a morrer imediatamente? O que interessa é viver, viver, viver! Viver, seja como for, mas viver!

 

Segundos antes de o chefe da brigada militar ordenar “fogo!”, um mensageiro da corte grita “alto lá!” 

O chefe da brigada militar se põe em polvorosa, mas mesmo sua patente não pode ignorar uma carta com o selo dinástico do tsar. 

Atônitos, os condenados se entreolham como se já fossem os fantasmas de si mesmos.

Súbito, após ler a carta com os olhos arregalados, o chefe da brigada militar estende o punho direito – seu polegar em riste fica paralelo ao solo. Dostoiévski mal pode acreditar quando o líder dos carrascos gira o polegar para cima e sentencia: “O tsar, em sua magnânima misericórdia, acaba de comutar a sentença capital. Homens, descansar armas! Os ex-condenados à morte deverão cumprir pena de trabalhos forçados na Sibéria. Deus salve o tsar!”. 

O corpo de Dostoiévski se desfaz como um monte de escombros, o escritor chora e ri convulsivamente, os mortos-vivos se abraçam, eles sequer entreveem as agruras da Sibéria, o que importa é se aferrar à vida, ao fio exíguo da vida – o elo que quase fora irremediavelmente partido. 

A experiência de quase morte se tornaria o grande espectro da obra pós-siberiana de Dostoiévski. A imaginação espiritualmente escatológica do escritor pôde se municiar com a angústia pela vida que está para ser ceifada do corpo – e do universo. A experiência de finitude radical impulsionou o cristão Fiódor Dostoiévski a refletir sobre os sentidos e os ressentimentos da modernidade que relega Deus ao exílio. 

“Se Deus não existe, tudo é permitido”: a máxima atribuída ao niilista Ivan Karamázov, o parricida emblemático de Os irmãos Karamázov, sintetiza as contradições apreendidas por Dostoiévski para um mundo que se distancia radicalmente das noções de evolução moral e eternidade. 

Ora, o que poderia refrear o ímpeto hedonista e utilitário dos homens e mulheres condenados à fugacidade de um presente que a morte logo vai ceifar? 

Sem a eternidade como base para as ações morais, o que poderia hastear a bandeira branca da trégua em meio à guerra hobbesiana de todos contra todos? 

Se a morte extingue a continuidade da vida de uma vez por todas, o que poderia refrear a sanha por prazer – e vingança? 

 

 

III. A outra face de Talião

 

Irã, abril de 2014. 

O jovem Balal, de vinte e poucos anos, está com os olhos vendados e uma corda ao redor do pescoço. Logo atrás do condenado à forca, estão os pais de Abdolah Hosseinzadeh, o jovem de 18 anos que, sete anos antes, fora assassinado a facadas por Balal. 

Para que a sentença capital seja consumada, os pais de Abdolah devem chutar a cadeira sobre a qual o tremor de Balal tenta ficar em pé. 

Assim falou o Evangelho segundo talião: 

 

Todo aquele que ferir mortalmente um homem será morto. Quem tiver ferido de morte um animal doméstico dará outro em seu lugar: vida por vida. Se um homem ferir o seu próximo, assim como fez, assim se lhe fará; fratura por fratura, olho por olho e dente por dente; ser-lhe-á feito o mesmo que ele fez ao seu próximo. Quem matar um animal restituirá outro, mas o que matar um homem será punido de morte. Só haverá uma lei entre vós tanto para o estrangeiro como para o natural: porque eu sou o Senhor, vosso Deus. 

 

Certa vez, no café de uma famosa livraria situada na Avenida Paulista, em São Paulo, ouvi a seguinte colocação de um senhor sentado próximo a mim e que, com a barba devidamente escanhoada, gesticulava com veemência e fazia vibrar seu Rolex prateado – um potencial morador dos Jardins: 

− A meu ver, a Lei de Talião é muito branda. A morte é coisa pouca para um assassino! A morte põe fim a tudo – e depois? Os pais continuarão a chorar pelo filho assassinado, enquanto o carrasco executado já não existirá para continuar a sofrer. Se dependesse de mim, a coisa deveria ser feita da seguinte maneira: o assassino ficaria encarcerado para sempre no corredor da morte, mas ninguém lhe revelaria que ele estaria cumprindo prisão perpétua. O assassino viveria a cada dia e a cada minuto a expectativa sobre a sentença capital. “Será que eu vou ser executado? Será que eu vou escapar?”. Súbito, a sentença seria pronunciada – haveria, sempre, a resolução pela condenação capital. A princípio, o assassino ficaria desolado, é claro, uma vez que já não haveria quaisquer esperanças. Mas, se notarmos bem, a angústia que o havia consumido durante tanto tempo teria um fim. Como não caberiam mais recursos à sentença capital, o assassino acabaria se resignando diante da pena de morte. Ora, isso não é justo para com os pais da vítima que continuariam a sofrer mesmo após a execução do assasssino. Por isso, sou a favor do agravamento da lei de talião: assim que o assassino se mostrasse minimamente calmo em sua cela – eis a calmaria daquele que já entende a morte, corporalmente, como um destino inexorável –, o carcereiro lhe viria dizer, horas antes da execução, que a sentença fora protelada por um período ainda não determinado. A mensagem seria transmitida de tal maneira que o assassino entrevisse um fio de esperança – uma expectativa sem fundamento que, na verdade, só levaria às últimas consequências a angústia que voltaria a chicoteá-lo cada vez mais e sempre. Se dependesse de mim, essa operação seria repetida à exaustão, modulando-se sempre os lapsos de tempo para que pudéssemos enganá-lo com um fio de esperança, de modo que a expectativa afiasse a angústia como um punhal. 

O hipertaliônico (e potencial) morador dos Jardins parece fazer coro ao niilismo de Ivan Karamázov. No capítulo “A revolta”, que narra o diálogo de Ivan com o monge Aliócha, seu irmão, Ivan assim sentencia: 

 

Quero o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. Só não quero que a mãe perdoe ao carrasco, não tem esse direito. Que lhe perdoe seu sofrimento de mãe, mas não o que sofreu seu filho [assassinado]. Ainda mesmo que seu filho perdoasse, não teria ela o direito. Se o direito de perdoar não existe, que vem a tornar-se a harmonia [eterna]?

 

Ivan já dissera ao monge Aliócha Karamázov que admito Deus, não só voluntariamente, mas ainda sua sabedoria, seu fim que nos escapa; creio na ordem, no sentido da vida, na harmonia eterna. Imagina que, em definitivo, esse mundo de Deus, eu não o aceito e, embora saiba que ele existe, não o admito. Não é Deus que repilo, nota bem, mas a criação; eis o que me recuso a admitir.

 

Ivan não nega Deus, mas o mundo por Ele criado – o mundo que só faz reproduzir (e agravar) a lei de talião. Mas, como quer o próprio Ivan Karamázov, se Deus não existe e tudo é permitido, então é possível que Deus, a eternidade e o perdão retornem do exílio. 

Narremos o arremate da história ocorrida no cadafalso iraniano, história que bem poderia ser uma estória de Fiódor Dostoiévski. 

Consta que, três dias antes da execução de Balal, a mãe de Abdolah Hosseinzadeh teve um sonho escatológico com o filho. Abdolah lhe apareceu em um lugar muito bom e lhe fez o seguinte pedido: “Mãe, está tudo bem comigo. Não mate o Balal, nós não devemos retaliar”. 

No momento em que os pais de Abdolah iam chutar a cadeira para que o corpo de Balal despencasse rumo à forca, a mãe, aos soluços, só fez gritar: “Eu te perdoo, eu te perdoo!”. 

Após lhe dar um tapa no rosto, a mãe de Abdolah abraçou o assassino de seu filho, e o pai do jovem esfaqueado retirou a corda do pescoço de Balal. A mãe de Balal acorreu ao cadafalso e abraçou os pais de Abdolah com uma alegria tão efusiva que chegou a converter a horda de espectadores que, momentos antes, clamava por justiça e ansiava por ver o corpo do assassino estrebuchar na forca. 

O perdão concedido pela mãe de Abdolah torna-se ainda mais extraordinário quando ficamos sabemos que seu filho caçula, Amirhossein, morrera anos antes em um acidente de moto. Amirhossein tinha apenas 11 anos. 

A mãe de Abdolah oferece a outra face ao assassino de seu filho para que Ivan Balal Karamázov, após retornar do mundo dos mortos, um dia consiga perdoar a si mesmo.

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