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Paulo Moreira Leite

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Perseguição a sem-teto é herança dos capitães do mato da escravidão

"Ao negar liminar que pedia imediata libertação de dois lideres do movimento de moradia de São Paulo, STJ recorda tenebrosas tradições da história brasileira," escreve Paulo Moreira Leite, articulista do 247. "Sem a exibição de qualquer indício criminoso para justificar a perda de liberdade dos acusados, a situação já lembra os capitães do mato que perseguiam escravos que se rebelavam contra o cativeiro no século XIX".

(Foto: Reprodução)
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Por Paulo Moreira Leite, para o Jornalistas Pela Democracia - Com a perseguição a Preta Ferreira e Sidney Ferreira, lideranças reconhecidas do movimento sem-teto de São Paulo, o Estado brasileiro reencontra as mais tenebrosas tradições da história brasileira. 

Sem que a polícia paulista tenha apresentado qualquer indício para demonstrar que eles tivessem coagido ou ameado testemunhas,  motivo alegado para uma prisão que se prolonga desde 24 de junho, o Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, recusou um pedido de soltura imediata, para que ambos pudessem responder se defender em liberdade. 

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Em nota oficial, os advogados de ambos classificam Preta e Sidney Ferreira,  filhos de Carmen Ferreira, 59 anos, uma das grandes referências do movimento de moradia de São Paulo, como  "presos políticos". A definição é correta mas o caso é mais grave do que isso. 

Marca o renascimento da função de capitão do mato entre autoridades policiais do país. Reproduz, em pleno século XXI, uma atuação perversa de 200 anos atrás, quando o Estado organizava expedições  na captura de escravos que ousavam rebelar-se contra o cativeiro e eram levados de volta a seus proprietários após serem submetidos a castigos corporais.  

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Se você achar que a comparação é exagerada, só precisa reconhecer que, em nosso país, os fatos do dia muitas vezes expressam a permanência de desvios e atrocidades ocorridas ao longo de nossa história. 

Enquanto a escravidão era abolida na maior parte dos paises da América -- 1822 no Haiti, 1833 na Colombia, 1854 na Venezuela --, o cativeiro permanecia como principal meio de trabalho do Brasil após a independência e até a véspera da República. 

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Nascido autoritário nas instituições políticas, e reacionário na esfera social, o estado brasileiro conservou-se como um dos mais atrasados do Continente, virando o rosto até para a influência das ideias norte-americanas, que no início do século XIX chegaram a ser evocadas como referência pelos movimentos revolucionários que pensavam a independência, como a revolta de Frei Caneca em Pernambuco. 

Enquanto Abraham Lincoln foi à guerra para acabar com a escravatura, no Brasil de Pedro II o poder econômico foi capaz de conservar o cativeiro sem necessidade de ir a luta, pois o pacto dos Orléans e Bragança com a Coroa britânica, em 1822, permitiu colocar o Estado a seu serviço desde o 7 de setembro.  

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Num momento marcante dessa história, em 1850 o Imperador Pedro II,  ("por graça de Deus e unânime aclamação dos povos Imperador Constitucioal e Defensor Perpétuo do Brasil"), assinou a lei de número 601. 

Peça-chave para o entendimento da tragédia social brasileira, que mais tarde irá incluir a criminalização do movimento-sem terra, no artigo 1o a lei estabelecia: "Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o da compra". No artigo 2o, já definia a punição aos "que se apossarem de terras devolutas ou de alheias, e nelas derrubarem matos ou lhes puserem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de benfeitorias, e de mais sofrerão a pena de dois a seis meses do prisão e multa de 100$, além da satisfação do dano causado". 

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Definiu-se,  assim, uma das legislações mais regressivas de que a humanidade tem notícia -- uma barreira que impedia o acesso à terra justamente por parte daqueles que necessitavam do reconhecimento do Estado,  pois não tinham recursos para pagar por ela. Ao incluir as "terras devolutas" como seu objeto, a lei 601 deixava claro que não bastava proteger a propriedade privada, garantia legítima num capitalismo que se espalhava pelo planeta. Também era preciso impedir os pobres -- em parte escravos emancipados por medidas levemente abolicionista do período -- de ter acesso  às terras públicas que, por definição, poderiam  garantir sustento sem prejudicar ninguém. 

A ideia era que, mesmo fora do cativeiro e da senzala, todos fossem impedidos de se emancipar, para serem mantidos em disponibilidade,  obrigados a fazer qualquer coisa pela sobrevivência. Outra diferença em relação a história americana, onde a abolição foi acompanhada por vários programas de reforma agrária. 

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No Brasil de Pedro II, que não foi capaz de se industrializar entre outras razões pela incapacidade de conviver com o trabalho de homens livres, a terra era meio de exploração da mão-de-obra escravizada. 

No Brasil de nossos dias, onde 7 em dez brasileiros residem nas cidades, a terra também é moradia e bem-estar. 

Nesse ambiente, os sem-teto ocupam as propriedades "devolutas" e ali conseguem resolver, por conta e risco, uma dificuldade fundamental da vida de nossos dias  -- encontrar moradias apropriadas, relativamente seguras, de manutenção a preços compatíveis com a renda, em localização conveniente para o trabalho, com escola para os filhos e locais de convívio social. 

Como lembram Patrícia Zaidan e Martha Raquel numa reportagem de leitura obrigatória publicada pelo portal Jornalistas Livres, cujo foco é a atuação de Carmen Silva em São Paulo, "há muito a fazer até zerar a demanda de quase um milhão de cidadãos em busca de 358 mil lares na capital. A conta poderia fechar mais rapidamente se, no centro expandido, por exemplo, fossem aproveitados os 700 imóveis privados que se deterioram e devem IPTU há decadas, e as centenas de prédios da União, Estados e Municípios igualmente imundos, sob o risco de ruir e descumprindo a 'função social da propriedade', conforme exigência da própria Constituição brasileira". 

Também incluída no inquérito policial que levou a prisão de seus filhos, Carmen já foi julgada e inocentada pelas mesmas acusações que se voltam contra ela, mais uma vez, sem qualquer novidade ou justicativa.

Está errado, no aspecto jurídico e político.  Quem é capaz de refletir sobre nossa herança escravocrata, presente 130 anos após a abolição, só pode reconhecer o benefício que os movimentos por moradia geram para o conjunto da sociedade brasileira. Numa visão sem preconceitos, deveriam ser reconhecidos e elogiados como o que são, verdadeiros empreendedores. 

Dando vida a esqueletos de cimento que se transformaram em lixo urbano, oferecem uma resposta humanitária e responsável para uma tragédia que o Estado brasileiro não pode e não quis resolver ao longo da história. 

Alguma dúvida? 

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