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José Carlos Moreira da Silva Filho

Professor na Escola de Direito da PUCRS e Sócio Fundador da Associação Brasileira de Juízes pela Democracia - ABJD

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Precisamos ligar os pontos da nossa história e fazer nosso dever de memória

Devemos, igualmente, fazer o dever de memória quanto ao legado pernicioso deixado pela operação lava-jato e o seu flagrante desrespeito ao devido processo legal

(Foto: Divulgação)
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Escrevo este texto como um chamado. Temos hoje, mais uma vez, a oportunidade de ligar os pontos da nossa história. Tal qual o conhecido jogo, que vive nas memórias da nossa infância, estamos com o lápis na mão diante de um cenário que apresenta pontos falsos e verdadeiros. Temos a clara sinalização dos pontos verdadeiros no papel, mas precisamos desenhar com o lápis unindo os pontos sinalizados, para que a verdadeira figura apareça.

Recentemente, o Presidente do Superior Tribunal Militar (STM), Luis Carlos Gomes Mattos, desdenhou das revelações de áudios contendo trechos das sessões secretas do STM durante a ditadura civil-militar. Os áudios foram revelados pelo historiador Carlos Fico a partir da pesquisa que vem desenvolvendo há alguns anos. Os trechos divulgados revelam que os juízes da Corte estavam cientes da prática da tortura nos porões da ditadura. O hoje Presidente da Corte, após a enorme repercussão dos áudios promovida pela mídia nacional, após dizer, em sessão do tribunal, que a notícia não havia “estragado a Páscoa de ninguém”, afirmou que a notícia era tendenciosa, pois novamente só “varrem de um lado, e não do outro”. Para além das palavras chucras e deselegantes que escolheu, reproduziu o discurso falacioso dos “dois lados”. 

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Ligamos os pontos e notamos que esse mesmo discurso conduziu a interpretação autoritária da lei de anistia de 1979 para invocar uma suposta proporcionalidade entre agentes da ditadura e pessoas que a ela se opuseram. Nem mesmo esta falaciosa proporcionalidade foi respeitada, pois aqueles que lutaram, com ou sem armas, contra a ditadura foram ferozmente perseguidos, torturados, humilhados, agredidos, julgados, condenados, presos, exilados, compelidos à clandestinidade, demitidos, expulsos, e tiveram seus nomes inseridos em listas sujas para não conseguirem mais emprego. Muitos desses, que foram condenados por envolvimento na luta armada, não foram sequer anistiados. Do “outro lado” não houve nenhum processo de responsabilização, seja administrativa, civil, política ou penal.

Fora o desrespeito à suposta proporcionalidade que se poderia depreender implicitamente do discurso dos “dois lados”, ele é falacioso pois tenta equiparar grandezas absolutamente incomparáveis. Ao contrário do que propaga a Doutrina da Segurança Nacional e suas variantes atuais, não se tratava de uma guerra, portanto não havia “dois lados”, muito menos dois exércitos que se enfrentavam em combate com alguma paridade de forças. Tratava-se da desproporcional e criminosa ação do Estado contra os seus próprios cidadãos, armados ou não. Tratava-se de uma política de Estado criminosa, levada adiante por uma entidade que detém o monopólio da força em suas mãos, e que detém o controle do aparato repressivo das forças armadas, das polícias, do sistema de justiça e de toda a institucionalidade pública. 

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O que de fato importa é que as instituições estatais, um patrimônio que é de toda a sociedade, que é público, teve suas estruturas e engrenagens, que deveriam estar voltadas à proteção dos direitos fundamentais dos seus cidadãos, esvaziadas por dentro, dilapidadas, descaracterizadas. A presença da lógica da guerra, da lógica militar, ocupando um espaço que jamais deveria ocupar, o espaço da ação política, da esfera pública, promove tal perversão. Liguemos os pontos e notemos que isto é o que hoje ocorre no âmbito do governo eleito em 2018. Milhares de militares ocupando o governo, e trazendo para dentro das instituições públicas a mesma lógica de uma guerra que só existe no seu imaginário contaminado por uma visão deturpada e jamais combatida dentro da própria instituição. 

Liguemos os pontos e notemos que o desrespeito às regras democráticas e à legalidade ocorrido em 2016 com o impeachment inconsistente da ex-Presidenta Dilma Rousseff foi representado, da pior maneira, no voto em favor do seu impedimento proferido por aquele que hoje ocupa a Presidência da República. Neste voto foi homenageado um dos torturadores da Presidenta deposta e um dos símbolos mais fortes da tortura sistemática praticada na ditadura, o já finado Coronel e já declarado torturador pelo judiciário brasileiro em todas as instâncias. 

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Liguemos os pontos e notemos que no dia 28 de abril de 2022, a tortura sofrida por Dilma Rousseff foi mais uma vez reafirmada com a ultrajante decisão da atual Comissão de Anistia que indeferiu, com fundamentos ilegais, a devida reparação e reconhecimento devidos à ex-Presidenta. Tal decisão representa o claro desvirtuamento do propósito constitucional da Comissão de Anistia, assim como a Operação Lava-Jato representou o desvirtuamento do devido processo legal e do funcionamento democrático do Poder Judiciário, assim como as conduções das pastas da saúde, da educação, dos Direitos Humanos, do meio-ambiente, dentre outras, tem sido, desde 2019, a verdadeira antítese do propósito e das missões desses Ministérios.

Liguemos os pontos e vejamos que a anistia aos torturadores, aí incluídos mandantes, facilitadores e executores, imposta pela ditadura em 1979 sem espaço para negociações, é reafirmada em 2010 por decisão da Suprema Corte, e espelhada em 2022 na graça concedida por Jair Bolsonaro ao Deputado Daniel Silveira, notório agressor da imagem e reputação de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada por se contrapor às milícias e à sua brutalidade. Milícias estas defendidas tanto por quem concedeu a graça como por quem a recebeu. 

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Assim como a anistia aos agentes da ditadura foi estabelecida a partir de um gesto de autodefesa da ditadura, a graça ao deputado também foi concedida a partir de um gesto de autodefesa do governo antidemocrático de Jair Bolsonaro, defensor da ditadura, da tortura, da queimada das florestas, da invasão de terras indígenas por garimpeiros, das milícias e dos ataques ao sistema eleitoral e à Suprema Corte do país, ataques esses defendidos em termos literais pelo beneficiário da graça presidencial. 

E assim como a anistia aos torturadores deveria ser nula perante o direito internacional, inclusive perante as duas sentenças da Corte Interamericana contra o Brasil (o caso Guerrilha do Araguaia em 2010, e o caso Vladimir Herzog em 2018), e perante o direito nacional também, por absoluta incompatibilidade com a defesa e promoção dos direitos humanos, a graça concedida por Bolsonaro também o deveria ser por absoluto desvio de finalidade e incompatibilidade com os fundamentos democráticos abrigados na Constituição de 1988.

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Ao ligar os pontos mencionados neste texto e tantos outros pontos que aqui não há espaço para mencionar, salta a figura de uma história de violência estrutural e institucional, de um país que tem dificuldade social e política de se reconhecer. Tal dificuldade aumenta quando se encastelam nos poderes políticas de esquecimento e de negação, em cujas sombras operam políticas de destruição de conquistas libertárias e emancipatórias. 

A história de um povo, sua tradição, verdadeiro cimento das suas expressões culturais e estruturas institucionais, é fruto de contínuo esforço conjugado de ações coletivas, múltiplas, nos mais diversos campos. Demanda sobretudo um dever de memória, em especial voltado para os grandes traumas de violência sofridos, a escravidão, o racismo, o machismo, o extermínio de culturas e etnias indígenas, os regimes de força que edificaram a tortura e a brutalidade como política de Estado, a morte evitável de centenas de milhares de pessoas na pandemia de COVID-19. 

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Se de fato queremos rumar para um país mais justo e democrático, devemos fortalecer a realização do dever de memória, dever que pressupõe o reconhecimento, a reparação, a reforma e a justiça. No horizonte próximo nos aguarda, mais uma vez, a oportunidade para reparar os maus feitos à nossa democracia. 

Ainda podemos fazer o dever de memória quanto à ditadura, cobrando da Suprema Corte a necessária reinterpretação da lei de anistia de 1979; anulando todas as decisões da atual Comissão de Anistia por absoluto desvio de função; produzindo mais barreiras, inclusive legislativas, para impedir que Presidentes e forças armadas comemorem golpes e ditaduras, para impedir que militares ocupem o espaço da política e para edificar forças armadas que respeitem a democracia; devemos também implementar as recomendações da Comissão Nacional da Verdade e das condenações sofridas pelo Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. 

Devemos fazer o dever de memória quanto à destruição provocada pelo governo Bolsonaro, reparando as vítimas sobreviventes da gestão criminosa da pandemia e honrando a memória dos que sucumbiram; reconstruindo toda a burocracia estatal erodida pelo desmantelamento do capital humano e técnico promovido por equipes sem preparo ocupadas em saquear o butim; anulando a infinidade de decretos ilegais e inconstitucionais; reconstruindo a necessária proteção às pessoas trabalhadoras deste país; reconstruindo a política de proteção aos povos indígenas do Brasil e às florestas e matas nativas; retomando as políticas de distribuição de renda, de promoção da agricultura familiar e sustentável e de bloqueio ao uso indiscrimado de agrotóxicos; retomando a construção de um sistema educativo inclusivo e comunitário, que nos ensine sobre nossa realidade e sobre como transformá-la, sobre valores humanos, democráticos, solidários; entre outras tantas retomadas e reconstruções que nos esperam. 

Devemos, igualmente, fazer o dever de memória quanto ao legado pernicioso deixado pela operação lava-jato e o seu flagrante desrespeito ao devido processo legal, aos direitos fundamentais e aos direitos políticos das brasileiras e brasileiros, e que, entre outras proezas, impediu ilegalmente o ex-Presidente Lula de concorrer ao pleito de 2018. Um legado que arrastou a imagem do judiciário brasileiro para a lama, fazendo a estátua de Themis, a deusa da justiça, corar de vergonha. 

Ligar os pontos já é uma tarefa ativa, política e histórica. Precisamos trabalhar pelo reconhecimento cada vez mais amplo, mas não parar por aí. É preciso fortalecê-lo e preservá-lo com o cumprimento do dever de memória, sem isso não tardaremos a viver novos retrocessos e estaremos presos a este insistente looping de miséria, violência e autoritarismo.

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