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Ramon Brandão

Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

23 artigos

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Reflexões sobre a doença ideológica: de Domingos Montagner à George Orwell

Somente alguém tomado por uma doença severíssima para insinuar o envolvimento do PT no afogamento de Domingos Montagner, tal como um post que viralizou no Facebook poucas horas após a confirmação da morte do ator. O pior é que não se trata de uma brincadeira (infelizmente)

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Somente alguém tomado por uma doença severíssima para insinuar o envolvimento do PT no afogamento de Domingos Montagner, tal como um post que viralizou no Facebook poucas horas após a confirmação da morte do ator. O pior é que não se trata de uma brincadeira (infelizmente).

Dentre os absurdos, nos deparamos com o texto abaixo:

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“Pessoal, todos sabemos que a Camila Pitanga é uma militante do PT, inclusive filiada ao mesmo. Considerando os últimos fatos ocorridos em relação ao Lula … teria a atriz assassinado Domingos Montagner, o empurrando para a água para ser levado pela correnteza? Com a morte do protagonista da novela das oito, as denúncias contra Lula seriam abafadas na mídia pois sabemos como os atores da Globo são queridos pela população. (…) Deve-se investigar bastante esse caso, muito suspeito … Camila Pitanga também já declarou ser adepta do ateísmo, ou seja, não teria remorso para cometer crimes do tipo”.

Em nome de um suposto anti-petismo, o post congrega paranoia, ignorância, fundamentalismo religioso e ausência total de empatia com os atores envolvidos no acidente. Mais curioso ainda é que este não foi o único comentário absurdo – isso permitiria, em alguma medida, que nós o isolássemos de modo a considerar que o autor é alguém que sofre de sérios distúrbios mentais.

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Outro usuário – dessa vez no Twitter – livrou Camila Pitanga do envolvimento na morte do artista, mas acrescentou uma crise conjugal ao seu devaneio conspiratório. No post, ele diz (ou simplesmente delira):

“Primeiro a Globo separa o William e a Fátima pra abafar o golpe, agora some com o Domingos pra abafar a prisão do Lula”.

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Houve, também, quem aproveitasse da comoção pela morte de Domingos para atacar Lula e Dilma:

“Podia ter morrido o Lula, a Dilma… Que fizeram mal para tanta gente, mas não, morreu o Montagner. Triste isso”.

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Manifestações dessa natureza são muito comuns nas redes sociais e nos sistemas de comentários dos portais de notícias. Para aqueles que se dão ao difícil trabalho de ler alguns deles (é necessário ter estômago), é estarrecedor constatar que, do terremoto que atingiu a Itália no mês passado à extinção do rinoceronte-negro do oeste, tudo pode ser usado para atacar Lula, Dilma e o PT.

O maior indício de que essa nova doença brasileira pode ser perigosa são os surtos de ódio registrados fora da esfera virtual, como as agressões direcionadas a pessoas vestidas de vermelho ocorridas na época dos protestos contra a votação do impeachment de Dilma na Câmara. Nem mesmo cachorros, crianças e bebês de colo escaparam das ofensas e das agressões proferidas pelos “cidadãos de bem”. A irracionalidade doentia chegou a tal ponto que uma médica pediatra teve o despudor de se recusar a atender uma criança simplesmente por ser filha de mãe declaradamente petista. E o pior: foi “aplaudida” por centenas de pessoas nas redes sociais. Outro caso notório foi o de um professor da UNESP (sim, existem ignorantes com doutorado) ter comemorado a perda de visão de uma jovem que estava em manifestação contra o governo Temer.

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Tal cenário me rememorou, imediatamente, o célebre livro de George Orwell, “1984”. Na história, havia um momento do dia dedicado aos “Dois Minutos de Ódio”, no qual todas as pessoas, sem exceção, participavam – mesmo que não fossem obrigadas.

Transcrevo uma passagem:

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“[...] um guincho horrendo, áspero, como de uma máquina monstruosa funcionando sem óleo, saiu da grande teletela. Era um barulho de fazer ranger os dentes e arrepiar os cabelos da nuca. O Ódio começara. Como de hábito, a face de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do Povo, surgira na tela. Aqui e ali houve assovios entre o público. A mulherzinha de cabelo cor de areia emitiu um uivo misto de medo e repugnância. Goldstein era o renegado e traidor que um dia, muitos anos atrás (exatamente quantos ninguém se lembrava), fora uma das figuras de proa do Partido, quase no mesmo plano que o próprio Grande Irmão, tendo depois se dedicado a atividades contra-revolucionárias, sendo por isso condenado à morte, da qual escapara, desaparecendo misteriosamente. [...] Era o traidor original, o primeiro a conspurcar a pureza do Partido. Todos os subsequentes crimes, todas as traições, atos de sabotagem, heresias, desvios, provinham diretamente dos seus ensinamentos. [...] Antes do Ódio se haver desenrolado por trinta segundos, metade dos presentes soltava incontroláveis exclamações de fúria. [...] Ver ou mesmo pensar em Goldstein produzia automaticamente medo e raiva. [...] No segundo minuto o ódio chegou ao frenesi. Os presentes pulavam nas cadeiras, e berravam a plenos pulmões, esforçando-se para abafar a voz alucinante que saía da tela. A mulherzinha de cabelo de areia ficara toda rosa, e abria e fechava a boca como um peixe jogado à terra. [...] A morena atrás de Winston pusera-se a berrar “Porco! Porco! Porco!”. De repente, apanhou um pesado dicionário e atirou-o à tela. [...] Num momento de lucidez, Winston percebeu que ele também estava gritando com os outros e batendo os calcanhares violentamente contra a travessa da cadeira. O horrível dos Dois Minutos de Ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vindita, um desejo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho [...]”.

*

Ao me deparar com brasileiros e brasileiras escarrando ódio e intolerância, como não temer pelo velho fascismo, tão brilhantemente ilustrado no romance de Orwell? Lembremos, insistentemente, que Hitler chegou ao poder na Alemanha através de um golpe parlamentar semelhante ao que experimentamos com Dilma. É evidente que vivemos em outro contexto histórico e que o nazismo alemão ou fascismo italiano jamais chegariam, hoje, com a mesma roupagem de seu tempo histórico. No entanto, é sabido que a história se repete. Ora, uma pessoa que deseja a morte de outra publicamente por não concordar com suas posições políticas não deve – ou não pode – ser considerado um fascista? Um médico que se recusa a atender uma criança por discordar das posições políticas dos pais não pode – ou deve – ser considerado um fascista?

Lembremos que uma das características fundamentais do fascismo é, justamente, a imposição de um valor individual sobre outro. Assim, se você é um simpatizante das teorias conspiratórias que envolvem o PT, Lula ou Dilma, chegou a hora, pelo bem de todos (mas, sobretudo, pelo seu), de refletir.

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