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José Machado

Economista pela USP e pós-graduado pela Unicamp. Filiado ao PT, foi deputado estadual constituinte em 1986. Foi prefeito de Piracicaba e deputado federal

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Regulação e democracia

A competência para retirar uma atribuição delegada legalmente à ANA só pode ser retirada por nova lei

Falta de saneamento ainda é problema para grande parte dos municípios brasileiros (Foto: Carolina Gonçalves - Agência Brasil)
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Por José Machado, ex-presidente da ANA (2005-2010)
e Vicente Andreu, ex-presidente da ANA (2010-2018)

Lendo o documento “Relatório do Grupo Técnico-Cidades”, com 56 páginas, verifica-se que menos de 10 linhas tratam da regulação do setor de saneamento. Limita-se o Relatório a propor “a transferência da competência de definir normas e recomendações para a regulação do saneamento básico, atualmente alocadas na Agência Nacional de Água (ANA), para um departamento da SNS (Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental)”, motivada por “insegurança jurídica pela delegação da criação de normas de referência pela ANA/MDR, gerando conflito de interpretação do papel das agências de regulação subnacional, que são as responsáveis pela regulação dos titulares da prestação de serviços”. Ipsis litteris.

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As “normas de referência” são um conjunto de procedimentos que visam uniformizar a regulação de fato, “na ponta”, papel das agências reguladoras de saneamento existentes no país, e não são obrigatórias, mas condicionam o acesso dos prestadores de saneamento a recursos federais.
Qual foi a avaliação da equipe de transição que motivou esta recomendação? Ou buscando ser mais claro: os prestadores de saneamento, as empresas e agências reguladoras subnacionais (atualmente são 86) concordam que há insegurança jurídica em normas de referência editadas pela ANA-Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico?

Diversas matérias recentes em veículos da grande mídia expressaram a discordância de entidades representantes do setor privado com exatamente essa conclusão do Relatório. Como há grandes contradições entre as “visões de mercado” com a gestão pública dos serviços de saneamento, principalmente em relação a vários mecanismos definidos na lei 14.026/20 (conhecida como Novo Marco do Saneamento, iniciada por Temer e concluída por Bolsonaro) que induzem à privatização do setor e ao desmonte das empresas estaduais, não parece simples distinguir a relação entre privatizar ou não o saneamento com existir ou não normas de referência.

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Historicamente o setor de saneamento foi autorregulado, ou seja, seus prestadores faziam o que bem entendiam, da definição das tarifas à qualidade dos serviços. Com a lei 11.455/07, e com a progressiva exigência da regulação dos serviços, assistimos, em poucos anos, à criação de diversas agências reguladoras especializadas no saneamento, mas ao mesmo tempo à generalizada “captura do ente regulador pelo regulado”.  As agências reguladoras, por várias razões, em geral de natureza política, mas principalmente porque sua sobrevivência deve-se às receitas pagas pelas empresas que regulam, têm cada vez mais garantido os principais interesses econômicos das empresas mais poderosas. Diretamente ao ponto:  têm validado, sistematicamente as tarifas desejadas pelos prestadores, vestindo-as com “roupagem técnica”, o que, de fato, apenas retira o ônus público e político dessa decisão dos titulares do serviço (dirigentes, prefeitos, investidores, governadores).

A atual direção da ANA é ideologicamente pró-privatização de qualquer coisa - não só das empresas de saneamento como até do acesso à água bruta no país - e tem abandonado a regulação técnica do saneamento em prol dos temas de mais interesse desse “mercado”. A presença física de vários dirigentes da ANA no recentíssimo leilão de privatização da CORSAN (empresa de saneamento do RS), não apenas é totalmente inadequada com o papel da Agência (vai comparecer no caso de estatizações?) como dá justificativas fortes para outro representativo setor da sociedade para   defender retirar de lá as normas de referência.Ao final do ano de 2021, a então direção da ANA anunciou que pretendia editar normas de referência que  buscassem dar um conteúdo mínimo aos contratos de concessão de água e esgoto bem como apresentou  uma agenda regulatória inicial   onde constava, entre outros : padrões e indicadores de qualidade e eficiência e avaliação da eficiência e eficácia; indenização de ativos para água e esgoto; modelo organizacional das agências reguladoras infranacionais; transparência; diretrizes para infrações e penalidades do prestador dos serviços de água e esgotos;  matriz de riscos de contratos para água e esgoto; diretrizes para metas progressivas de cobertura para água  e esgoto e sistema de avaliação; reajuste tarifário para água e esgoto, entrando em temas  absolutamente necessários,  ensejando ao setor privado que reagisse de forma brusca e contrariada: “ANA gera apreensão no setor de saneamento” (https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/12/20/ana-gera-apreensao-no-setor-de-saneamento.ghtml). Com o abandono ou postergação sistemática da agenda técnica inicial (prevista para estar concluída em dezembro de 2022), esse mesmo setor ,em nota do último dia 20 de dezembro, defende agora que a ANA continue com tal competência.

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A agenda regulatória prevista pela ANA permitiria, por exemplo, evitar que os usuários paguem  em duplicidade por investimentos já cobertos pelas próprias tarifas, ou ainda, também como exemplo,  modificar a regulação tarifária que obriga os moradores de Borá – município com menos de 1.000 habitantes, no interior de São Paulo – a pagar tarifas para cobrir a despoluição do Rio Pinheiros. Neste aspecto, agentes privados e companhias estaduais públicas parecem compartilhar do conceito de uma “regulação faz-de-conta”: pode ter, mas sem dar tanta transparência que afete os negócios!  Não é por acaso que a justificativa do Relatório para retirar da ANA a competência de fixar normas de referência é o surrado argumento liberal da “insegurança jurídica”, fazendo crer que não existe tal insegurança em normas feitas por  “um departamento de uma secretaria do Ministério das Cidades”.

A Secretaria Nacional de Saneamento já existiu por vários anos e nunca tratou dessa agenda regulatória e poderia tê-lo feito.  Essa recomendação simplista de “tira daqui e põe ali” parece conceber que, devido suas complexidades, diversidades regionais, consequências sobre os prestadores, a regulação pode estar melhor resolvida através de um ambiente de conforto nas relações locais, esquecendo que assim foi e não funciona.

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O Relatório aponta ainda, corretamente, que não houve “participação social e dos agentes de políticas públicas na formulação das normas e acompanhamento dos cumprimentos de metas” mas, já de início, padece das mesmas carências pois, pela sua natureza, mesmo sendo um grupo extremamente qualificado, o GT Transição Cidades foi reduzido quanto à sua representatividade.

Por último, é bom lembrar que a competência para retirar uma atribuição delegada legalmente à ANA só pode ser retirada por nova lei. Assim, é oportuno retirar essa recomendação de mera troca de caixinhas formulada pelo Relatório (que, em essência, é muito bom) e abrir uma ampla discussão com vistas a viabilizar uma regulação duradoura, consistente e transparente que possibilite avançar verdadeira e sistematicamente no equacionamento de um dos principais problemas do Brasil, onde há um profundo débito social, econômico e ambiental, principalmente com os mais pobres.

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