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Pedro Simonard

Antropólogo, documentarista, professor universitário e pesquisador

92 artigos

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Sociedade anestesiada

"Elemento que pode explicar esta passividade é a cooptação das lideranças populares para cargos públicos, durante os governos do PT. Importantes lideranças foram tiradas de junto do povo e dos sindicatos e colocadas em escritórios burocráticos"

(Foto: Reprodução/Twitter)
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Morei um tempo no Canadá, na cidade de Québec. Lá tinha uma empresa farmacêutica para a qual não faltavam cobaias humanas que apresentavam-se, voluntariamente, para participar de testes de novos medicamentos. Em geral, os que dispunham-se a participar desses experimentos eram canadenses pobres e imigrantes que punham suas vidas em risco em troca de alguns dólares pagos pela empresa. A falta de dinheiro era o principal agente motivador destas cobaias humanas. Não é um motivo nobre, mas é um motivo justificável.

A sociedade brasileira contemporânea parece formada em sua maioria por milhões de voluntários que oferecem-se como cobaias humanas para que um gigantesco laboratório hipotético possa testar um novo e, pelo visto, extremamente eficiente, anestésico. Nada mais aflige, desconcerta, desconcentra, desordena, subverte, perturba nossos concidadãos. Os brasileiros fazem isso de graça e não ganham nem um centavo de dólar por servirem como cobaias humanas.

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O Brasil cada vez mais assemelha-se a um enorme laboratório onde a vida humana é vilipendiada de maneira crescente sem que a maioria das pessoas esboce a menor reação de resistência. Qualquer coisa é vista como normal, como legítima.

A pandemia da Covid-19 já atingiu mais de 6,7 milhões de brasileiros e matou mais de 179 mil pessoas. O general “especialista em logística” e atual ministro da saúde perguntado sobre a compra de vacinas contra o coronavírus respondeu que comprará “se houver necessidade” e disse que apresentará um plano de vacinação em 60 dias. Pelo andar da pandemia, parece que o ilustre “especialista em logística” esperará atingir 200 mil mortes para considerar a possibilidade de adquirir as vacinas. Por outro lado, o ser humano tosco que assumiu a presidência do país em 1 de janeiro de 2019, difundiu um vídeo onde, com voz em falsete, ironiza as mortes e as vítimas da Covid-19. A sociedade anestesiada não reagiu a essas declarações que teriam chocado o povo em qualquer outro país do mundo.

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A morte de cidadãos considerados descartáveis – pobres, negros, LGBTQI+ e outros – tornou-se corriqueira e invisível. Não choca mais. Um sem teto morreu dentro de uma padaria em Ipanema. O estabelecimento permaneceu de portas abertas com os clientes tomando café da manhã de maneira natural. O gerente da padaria fez a “gentileza” de cobrir o cadáver para que a visão do mesmo não chocasse tão distinta clientela.

As primas Emily e Rebeca, de 4 e 7 anos de idade, foram mortas vítimas de bala perdida em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, enquanto estavam brincando diante do portão da casa de uma delas. Um tiro de fuzil, ao que tudo indica disparado por um policial militar, transpassou a cabeça de Emily e atingiu a corpo de Rebeca. Emily foi enterrada com o caixão fechado porque o tiro destruiu seu rosto. Em 2020, 853 cidadãos foram mortos só no estado do Rio de Janeiro em cerca de 4,2 mil tiroteios. Os anestesiados não reagiram. É como se estas mortes fossem mais do mesmo neste museu de velhas novidades em que tornou-se o Brasil; fariam parte do novo normal.

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A morte das meninas foi mais um caso dentre os muitos que tiraram a vida de afrodescendentes no Brasil e que já vitimaram João Alberto Silveira Freitas, morto por agentes de segurança de uma loja do supermercado Carrefour em Porto Alegre, Jane Beatriz Silva Nunes, ativista negra, morta em uma operação da polícia militar também em Porto Alegre e tantos milhares de outros descartáveis. Todos mortos devido ao racismo encruado nas nossas instituições. Houve uma pequena reação causada pela morte de João Alberto, mas, no geral, a anestesia aplicada no tecido social brasileiro foi eficaz na dose e a indignação social concentrou-se mais nas reações difundidas pelas redes sociais. Ativismo de Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp não muda nada nem leva a lugar nenhum.

Em plena pandemia, no momento em que o número de infectados volta a aproximar-se dos índices de julho e agosto passados, o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, desperdiça tempo e dinheiro público atacando a Venezuela de Nicolás Maduro a mando do governo dos EUA. Faria melhor se estivesse negociando a compra de vacinas, seringas e outros insumos necessários à vacinação em massa. Esta atitude também não chocou os brasileiros anestesiados.

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Como também passou como normal a presença do presidente da República e da primeira dama na abertura de uma exposição contendo os trajes cafonas que ambos utilizaram no dia da posse de Bolsonaro. Seria engraçado se não fosse trágico. 

Inflação subindo, combustíveis e energia elétrica mais caros, bujão de gás custando quase o dobro do que custava na época do golpe contra Dilma Rousseff, ataques à democracia, casuísmo jurídicos e políticos, nada disso é suficiente para acordar o gigante anestesiado.

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Não éramos assim... ou éramos e não sabíamos e a internet permitiu que esta súcia fascista manifestasse-se de maneira barulhenta. Quando eu era mais jovem, participei de grandes movimentos de massa que lutavam por direitos e em defesa da cidadania. Mesmo recentemente ainda ocorreram manifestações de grande porte. Por que agora nos limitamos a assistir, anestesiados, a esta chuva de atos insensatos que assola o Brasil?

Estamos anestesiados e esta anestesia fica explícita não só pela falta de grandes movimentos de massa, como também no crescente número de abstenções, votos em branco e nulos nas eleições.

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Alguns elementos podem explicar a passividade da sociedade brasileira. A grande penetração das igrejas pentecostais e sua teologia da prosperidade. A substituição da teologia da libertação pelos movimentos carismáticos católicos. A teologia da prosperidade e o movimento carismático aproximaram o cristianismo dos setores populares. Contudo, é um cristianismo “pelego” que não organiza o povo e os movimentos populares, como faziam os sacerdotes ligados à teologia da libertação. Seu modus operandi são cerimônias catárticas onde grande dose de energia vital e mental são descarregadas. Desta maneira, os fiéis submetem-se aos sacerdotes que pregam a palavra de um Deus punitivista e vingativo e obedecem aos ditames dos sacerdotes, por mais absurdos que sejam.

Outro elemento que pode explicar esta passividade é a cooptação das lideranças populares para cargos públicos, durante os governos do PT. Importantes lideranças foram tiradas de junto do povo e dos sindicatos e colocadas em escritórios burocráticos. Concomitante, não foram formadas novas lideranças que ocupassem o lugar daquelas que foram ocupar cargos públicos. Como consequência, os partidos de esquerda e os movimentos sociais ficaram acéfalos e/ou deixaram-se levar por uma crítica centrada no identitarismo, esquecendo-se da crítica ao capitalismo. Órfãos de lideranças de esquerda, os trabalhadores foram cooptados pelos sacerdotes cristãos de diversos matizes que canalizaram os setores sociais mais carentes e que mais sofrem com as medidas neoliberais para a teologia da prosperidade práticas carismáticas.

Junte a esses dois elementos a enorme produção de desinformação e notícias falsas que manipulam a opinião pública e que atingem o trabalhador por meio dos canais abertos de televisão, dos programas populares de rádio, dos jornais, das mídias ligadas às igrejas evangélicas e à Igreja Católica e teremos um anestesiante de eficácia comprovada.

É interessante conversar com as camadas mais baixas dos trabalhadores. Elas reclamam do aperto salarial, da inflação, do desemprego e de tudo que afeta diretamente a sua vida cotidiana. Defendem políticas públicas de geração de renda, melhora nos serviços de saúde e educação. Contudo, quando perguntados se são socialistas ou se votam na esquerda, é comum ouvir-se um veemente não que não são socialistas nem comunistas e que odeiam os partidos de esquerda porque roubaram o país. Repetem o discurso que ouvem na mídia empresarial e nos templos cristãos e não conseguem perceber a contradição entre as medidas e políticas públicas que defendem e o discurso que proferem e que os leva à inação política.

Cabe aos movimentos sociais e aos partidos de esquerda aproximarem-se do trabalhador desenvolvendo junto com ele um contradiscurso que exponha as contradições entre o seu cotidiano e aquilo que os sacerdotes e a mídia empresarial defendem. Desta maneira seria possível organizar um novo movimento de massas que propusesse uma pauta nacional-popular para a tomada do poder.

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