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Igor Corrêa Pereira

Igor Corrêa Pereira é técnico em assuntos educacionais e mestrando em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro da direção estadual da CTB do Rio Grande do Sul.

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Somos sapos na panela?

O capitalismo, em especial na sua versão neoliberal, coloca em primeiro e único plano a reprodução infinita do dinheiro, do lucro. A vida não é uma prioridade. Nem a sua, nem a minha, nem a de ninguém. A destruição de toda a vida natural e social é parte da reprodução do capital. Isso é um absurdo absoluto.

Passar fome no Brasil é uma grande mentira. (Foto: AGÊNCIA BRASIL)
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A imagem de um sapo cozinhando vivo na panela ficou martelando minha cabeça até que escrevesse esse artigo. Um sapo, confrontado com uma água fervente, reagirá fugindo da fervura, acionará seu instinto de preservação. Já o sapo que, mergulhado numa água na temperatura ambiente da lagoa, tiver embaixo de si uma chama baixa de fogão, dentro da panela, não vai perceber a temperatura aumentar lentamente. Seu corpo se adapta ao aumento progressivo do calor. Quando a água estiver fervendo, seu corpo já estará fraco demais para que ele pule fora. Morrerá cozinhado vivo. 

Você deve me perguntar por que estou perturbando você com essa terrível cena do sapo a cozinhar vivo na panela. A ideia me parece uma metáfora brilhante e tenebrosa sobre como o poder domina em nossos tempos. Cozinhar vivo não é uma ideia aceitável para ninguém, seja sapo ou qualquer ser que morra diante de temperaturas elevadas. Mas o que é o neoliberalismo senão um conjunto de ações que deteriora a vida da maioria das pessoas como sapos cozinhando vivos? Como foi possível que esse projeto de sociedade tão corrosivo pudesse ser aceito em alguma medida?  

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Dentre os valores cultivados com investimento de tempo e recursos para que fosse uma ideia tão aceita socialmente a ponto de ser tornar um componente curricular na educação e o tema de centenas de milhares de palestras motivacionais, está a ideia de resiliência. Essa ideia foi trazida da ecologia para a economia e as relações sociais pelo Prêmio Nobel de Economia Friedrich Von Hayek. Quando formulou sua versão da teoria da resiliência, o economista neoliberal buscava confrontar a planificação do Estado de Bem-Estar Social e do socialismo soviético, em um contexto de plena Guerra Fria.  

 Sua discordância desses dois modelos reside na proteção que eles oferecem a sociedade diante de crises econômicas e sociais. Seguridade social, direitos trabalhistas, por exemplo, eram vistas por Hayek como improdutivas e ineficazes. Para ele, a crise é permanente e até mesmo desejável. Ao contrário dessas proteções sociais, o que deveria ser cultivado na população era a resiliência, que é a capacidade de se adaptar a deterioração das condições de trabalho, de vida. Em resumo, Hayek trouxe o conceito de resiliência das ciências da natureza esperando transformar as pessoas em sapos que se adaptam ao aumento progressivo do calor da água até cozinharem vivos.  Explicada dessa forma, a ideia parece absurda e o leitor pode reagir saltando fora da água, ou negando que poderia acreditar nisso. Mas os ideólogos do neoliberalismo foram hábeis em aumentar progressivamente a temperatura. Os grandes organismos multilaterais ligados às Nações Unidas elaboraram diretrizes que expressavam o nobre objetivo de construir comunidades resilientes para reduzir vulnerabilidades. Ora, quem pode achar algo de errado nesse objetivo? o título de um documento da Organização das Nações Unidas (ONU) apresentado na Conferência Rio +20 é “Povos resilientes, planeta resiliente”.   

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Outro grande advogado da ideia da resiliência, a ponto mesmo de dizer que seria uma habilidade a ser construída desde a primeira infância, é James Heckman. Não por coincidência, também Prêmio Nobel da Economia. Heckmann argumenta que a criminalidade é o resultado de más escolhas dos indivíduos, e que se fosse trabalhado desde a infância valores como a resiliência, se reduziria a possibilidade de tomar decisões ruins. A ideia de Heckman terá grande impacto nas políticas curriculares internacionais ditadas por organizações como UNESCO e OCDE. Para estes organismos, que influenciam grandemente os currículos pelo mundo e eem especial no Brasil, o sujeito contemporâneo precisa desenvolver o empresariamento de si, a competência, a estabilidade emocional, a resiliência, e acima de tudo flexibilidade como indivíduo.   

Um sujeito flexível e resiliente é o contrário de um sujeito reativo e resistente. A reação de “saltar da panela”, diante de um calor que aumenta a temperatura da água é, portanto, desincentivado. Pelo contrário, é preciso estar “aberto a mudanças”. Mesmo, e sobretudo, se elas forem negativas. A resiliência aceita a crise como permanente, não protege o indivíduo da crise. Pelo contrário, mergulha o indivíduo na crise com a atitude de sempre se adaptar ao aumento de temperatura. Por isso, a racionalidade neoliberal tem uma grande capacidade de pacificação de resistências. A resiliência, em grande medida, confere mais flexibilidade diante de condições extremas e insalubres, reduzindo tensões advindas de resistências. O governo sobre os indivíduos não é impositivo ou disciplinar, mas sim ambiental ou de controle. O empresário de si se vira diante de uma situação extremamente perigosa, como uma pandemia por exemplo. Ele enfrenta, se adapta, não vai deixar a economia parar para proteger sua vida. Nem tampouco vai resistir coletivamente para buscar melhores condições. O sujeito resiliente se adapta ao aumento progressivo da temperatura da água.  

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 Eu não perturbei sua cabeça com a ideia do pobre sapo cozinhando vivo na panela para produzir um gatilho emocional negativo. Se você chegou até aqui, deve ser movido pelo interesse em saber como isso acaba. Lamento, mas eu não sei. Só posso te devolver a pergunta. O que comunidades resilientes, que se adaptam a progressiva deterioração das condições, podem esperar para si e para o futuro? O capitalismo, em especial na sua versão neoliberal, coloca em primeiro e único plano a reprodução infinita do dinheiro, do lucro. A vida não é uma prioridade. Nem a sua, nem a minha, nem a de ninguém. A destruição de toda a vida natural e social é parte da reprodução do capital. Isso é um absurdo absoluto. A humanidade, a natureza, a ciência e a técnica estão hoje mergulhadas nessa grande panela que aumenta a temperatura progressivamente. Os acontecimentos globais nos impelem a pular fora, a romper organizadamente com esse absurdo. Existe esperança. E ela está em romper com a resiliência individual para construir uma resistência coletiva.

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