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Urariano Mota

Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil

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Uma das mulheres bravas do Brasil

Eu me refiro a Mirtes Semeraro de Alcântara Nogueira, que na altura dos seus 70 anos pode ser vista no documentário Memórias reveladas, da jornalista Marilena Lima

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No próximo 8 de março teremos o Dia Internacional da Mulher. Desta minha coluna antecipo a sua celebração com a lembrança de uma sobrevivente à repressão na ditadura. Eu me refiro a Mirtes Semeraro de Alcântara Nogueira, que na altura dos seus 70 anos pode ser vista no documentário Memórias reveladas, da jornalista Marilena Lima. Mais precisamente aqui, no tempo do vídeo que vai de 16:39 a 18:20 

Mas no tempo mais amplo da memória, a jovem e brava Mirtes foi modelo da personagem Selene, não sei se feliz ou infeliz na recriação. Na medida do sentimento e da percepção ela assim aparece no romance A mais longa duração da juventude, em uma de suas páginas:  

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“Em 1970, com a sua face mal iluminada pela luz frágil do bar, Selene é de outro gênero de beleza. Ela é a própria União Brasileira de Estudantes Secundaristas em forma de gente. Isso quer dizer gestos, gostos, afeto, ideias e coração se organizam na luz da sua face. Mas o que é a descrição física do seu rosto? Selene possui cabelos claros, mas na ocasião isso não notávamos nem sequer ousaríamos observar. Há um olhar masculino que atenta o conjunto, no que resulta a soma, nunca o pormenor. Os nossos olhos iam da sua face às coxas, sem paradas ou mediações. Selena possuía seios? Com absoluta certeza, devia tê-los firmes, suculentos de manga no estio. Mas não os percebíamos, nem mesmo sob a blusa. Isso queria dizer, penso agora, que ela não exibia decote. As militantes às vezes tinham um ar de evangélicas, na idealização da luta de soldadas de Mao Tsé-Tung. Então descíamos do rosto para as suas coxas, que nisso era vencedora a fêmea sobre a disciplina. Não lembramos se ela possuía pernas, mãos. Devia tê-los porque gesticulava, fazia acentos da fala com os braços e mãos, que eram delicadas, entrevistas. E as unhas, estariam sem cuidado, como convinham a uma proletária? Não sei. Descíamos do rosto até as coxas. E o pescoço, suave, existia? Sim, mas quem sabe, quem o via? Descíamos do rosto para as suas coxas. Imagino, com um esforço de composição harmônica, em seu rosto se assentava um breve nariz, de barro ou de foca, talvez, mas pequenininho. Assim o recomponho porque o seu nariz nasceu para o conjunto do corpo, que era todo pequenininho. Existem narizes grandes para corpos pequenos. Desde as bruxas infantis sabemos existirem narizes disformes para rostos velhos. Mas esse não era o rosto de Selene. Na verdade, o rosto era o preâmbulo, uma introdução a suas coxas. E a fixação nelas não era só do olho desejoso, tara de jovens solteiros à sua volta no Bar 13 de Maio.  

Nós as vemos porque são inevitáveis. Imaginem um avião que caia na sua frente agora. Ou um disco voador que desabe no seu caminho. Assim eram as coxas de Selene: avião, disco voador, estrela a riscar até o chão da terra. Isso não é tentativa de fazer poesia. As coxas de Selene cresciam sobre nós por três elementares razões: ela usava saias curtíssimas; as coxas eram róseas de tão expostas ao sol do Recife; e logo abaixo, nas pernas havia um rendilhado de chagas. Como não vê-las, como evitá-las, ainda que no limite de um pudor cristão? Todas essas coxas, digo, razões, se expressavam na história de como Selene as ganhara na forma de cicatrizes. Elas eram marcas de ácido sulfúrico jogado pela direita na batalha, no confronto estudantil da Mackenzie, em São Paulo. A batalha da Maria Antonia em 1968. Uma marca, umas pernas que ela própria apontava ao contar a briga feia em São Paulo. Apontava-as com uma verve de narradora e graça de bailarina, quando enfatizava a própria esperteza: a minissaia era para desviar os olhos das feridas abaixo das coxas. Uma graça, na sua narração, que matava dois coelhos com uma só vista. Selene contava a sua bravura e se dava aos olhos virgens dos meninos. Liderança inconteste, nós a adorávamos.  

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Quando desci ao bar, ainda não a conhecia. Sou apresentado a ela por Luiz do Carmo:  

- Direção da UBES.  

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Ao que ela sorri e se apresenta:  

- Eu sou mesmo é Selene.  

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Incrível, notarei mais tarde, ela na clandestinidade ainda não usava nome de guerra. Era mesmo Selene, como aprenderei a partir de então. E se dirige a mim: 

- Estou sem cigarro. O companheiro tem? 

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- Sim – e ponho a minha carteira de Continental com filtro sobre a mesa. Ao ver a sofreguidão com que ela retira um cigarro, tenho vontade de lhe dizer “fique com todos”. Mas me envergonho e baixo a cabeça. Selene fuma, me observa e fala sobre a muda assistência:  

- Companheiro, temos sérias dificuldades de sobrevivência. Física, grana, alimentação, tudo.  

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- Entendo – falo, e sinto vergonha de me queixar do inferno onde habito. “Eu tenho um quartinho no sótão, eles têm nada”. Eu tenho um emprego, um maldito, insuportável emprego, mas com essa alienação posso comer. Selene continua: 

- Mas o que são as dificuldades para a vitória do socialismo, companheiro?  

- Fale baixo, companheira – Célio sussurra, entredentes, atrás.  

Selene o encara, na iminência de lhe enviar um raio. Mas sufoca a fulminação, e sem lhe responder continua um tom menor: 

- O que são nossas dificuldades frente ao heroísmo do vietcongue?  

Então eu, como um pequeno-burguês convertido ao novo evangelho, à pregação apaixonante da revolução pergunto já conquistado:  

- O que posso fazer?  

Selene me olha e responde rápido:  

- Me pague uma sopa.  

Peço e pago uma. E mais uma cerveja para nós. Mas ao chamar o garçom, Célio intervém:  

- Eu troco minha cerveja por uma sopa. Pode ser? 

- Claro, pode – e me digo: “foi-se embora o cinema de sábado”.  

Ao chegar a sopa, densa, de macarrão e carne, Selene a aplaude. O garçom sorri para a mocinha esfomeada. Ela também sorri para o garçom. Então, com a colher que vai ao prato e volta em brevíssimos intervalos de tempo, ela nos fala, deliciada:  

- Sem sopa não há revolução”.  

Assim foi, ou assim tem sido. Na vida, as pessoas mudam, ou ficam mudas, adoecem, morrem. Mas o tempo da sua bravura é a mais longa duração da juventude. 

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