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Sudeste

Quase um ano depois da tragédia, psicólogo relata atendimentos em Brumadinho: 'parecia um filme de terror'

"Realizei um grande número de visitas domiciliares para várias famílias, pessoas sem se alimentar, sem dormir, sem informações...", conta Cássio Vilela Prado, sobre os atendimentos subsequentes ao rompimento da Barragem que deixou mais de 250 mortos. Ele também fala sobre as dificuldades trazidas pela relação da cidade com a mineração: "faz parte da cultura histórica de Brumadinho ser refém do extrativismo minerário"

Militares israelenses e equipes de resgate brasileiras durante buscas por vítimas em Brumadinho, onde uma barragem da mineradora Vale se rompeu. (Foto: Washington Alves/Reuters/Direito)
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247 - Morador e trabalhador de Brumadinho, Minas Gerais, o psicólogo Cássio Vilela Prado esteve presente no município desde os primeiros momentos da tragédia provocada pela Vale, em 25 de janeiro deste ano, e conta ao 247, em respostas enviadas por e-mail, a situação das pessoas que vivem no local desde então.

O último balanço das autoridades aponta que 255 pessoas mortas foram localizadas e identificadas até o momento, mas 15 ainda seguem desaparecidas desde o rompimento da barragem da B1. Trata-se da pior tragédia com barragem no mundo em três décadas e o maior acidente de trabalho já registrado no Brasil, uma vez que boa parte das vítimas é de funcionários da Vale.

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247: Seu trabalho é voluntário? Como tem sido o trabalho de voluntários em Brumadinho? 

Cássio Vilela Prado: Sou funcionário concursado da Prefeitura Municipal de Brumadinho-MG (Secretaria de Saúde), psicólogo, desde 2002. Fui acionado no mesmo dia, 25/01/2019, sexta-feira (dia da semana no qual não trabalho pela Prefeitura) tanto por representantes da Secretaria de Saúde local quanto por outros agentes sociais, amigos, etc. para atendimentos psicológicos emergenciais a diversos familiares, parentes e amigos das vítimas do massacre da Vale, que se estenderam a todos os dias da semana, manhã, tarde e noite, sem cessar. Fiz e faço serviço voluntário até a presente data, assim como o meu trabalho na Prefeitura foi disponibilizado para essa finalidade, uma vez que, de forma direta e indireta, toda a população foi afetada (catástrofe coletiva), afetando também o comércio, indústria, turismo, transporte, educação, detonando com o meio ambiente e causando, portanto, um enorme mal-estar biopsicossocial no município e redondezas. 

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Foi muito importante o trabalho voluntário individual e de diversas instituições (CRPMG, Cruz Vermelha, Médicos Sem Fronteiras, demais associações, ONGs, movimentos sociais...) realizados, pois havia um enorme caos nos primeiros dias, até que as coisas começaram a ser simbolizadas, nomeadas e encaminhadas, embora Brumadinho ainda esteja num lento processo de recuperação e sem o devido apoio da Vale, do Estado de Minas e da União, muita burocracia e descaso.

O rompimento trágico de uma das barragens da mina do Córrego do Feijão (Vale) pegou toda a população de surpresa, causando uma imensa perplexidade e impotência, inclusive nos profissionais municipais da Saúde, Assistência Social, Defesa Civil, pois embora eu não possa asseverar, pelo visto, acredito que não havia um Plano de Contingência (conjunto de ações preventivas, de socorro, assistenciais e recuperativas destinadas a evitar desastres e minimizar seus impactos para a população e restabelecer a normalidade social) conforme estabelece em lei; o Decreto Nº 7.257, DE 4 DE AGOSTO DE 2010, para dispor sobre o Sistema Nacional de Defesa Civil – SINDEC - e as orientações técnicas sobre a gestão de risco de desastres, do Ministério da Saúde, de 30 de maio de 2017 – Vigidesastres (A redução do risco de desastres é uma das funções essenciais da saúde pública, que deve considerar em seu processo de planejamento, a inserção de ações para a prevenção, mitigação, preparação, resposta e reabilitação, visando reduzir o impacto dos desastres sobre a saúde pública. Estabelece ainda que, no âmbito da saúde, a atuação em situações de desastres deve ter um enfoque integral, com relação aos danos e a sua origem, além do envolvimento de todo o sistema de saúde, e do estabelecimento de um processo de colaboração intersetorial e interinstitucional voltado para redução dos impactos de emergências ou desastres, sejam eles de origem natural ou tecnológica - leia mais).

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247: Como foram os primeiros atendimentos aos atingidos pelo rompimento da barragem? Em que estado chegaram as famílias?

Cássio Vilela Prado: Os primeiros atendimentos demonstraram um grande desespero das famílias e das pessoas próximas das vítimas. Havia muita dor, inconformismo e indignação. O sofrimento pelos desaparecidos era estarrecedor, vivenciados pela maioria dos familiares e amigos. Pessoas sem nenhuma informação concreta, sem contato nenhum da Vale, corre-corre nos hospitais da região e no IML (Instituto Médico Legal) em Belo Horizonte. Os centros de atendimento improvisados às famílias das vítimas não dispunham dos dados solicitados. 

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Realizei um grande número de visitas domiciliares para várias famílias, pessoas sem se alimentar, sem dormir, sem informações... parecia mais um filme de terror do que uma realidade concreta. Na semana subsequente à tragédia, atendi também muitos casos na Policlínica local, inclusive de sobreviventes que vivenciavam a cena de forma dramática. Os cuidados biopsicossociais estão bem longe de acabar.

247: Quais são os casos mais comuns de problemas das vítimas?

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Cássio Vilela Prado: Com relação à saúde mental, para efeito pedagógico, sem nenhuma rigidez, eu faço uma separação em três grupos principais: os familiares das vítimas que vieram a óbito; os familiares das vítimas desaparecidas e os sobreviventes (que estavam no local ou próximos ao local do desastre e conseguiram se salvar – conforme vários depoimentos, entrevistas e reportagens midiáticas. 

Os primeiros foram os mais atingidos psicologicamente, de forma repentina. Apesar da facticidade abrupta e dolorosa, foram-lhes possíveis iniciar um trabalho de luto com o seu rito cultural-religioso de “separação dos corpos ou fragmentos destes”, embora o nível de investimento (catexia) objetal de cada sujeito singular e a sua capacidade de reinvestimento em elementos vitais determinarão o tempo de elaboração desse luto. Em si, o luto não é uma doença, é um processo de elaboração de alguma perda importante. Não há um tempo determinado para isso. Contudo, o processo de luto pode se desenvolver a determinados lugares não tão vitais quando o sujeito não consegue se desvencilhar do objeto perdido internalizado, retornando como sombra desse “objeto amado” ao ego (eu), identificando-se com ele. Portanto, na trilha de Freud, se se identifica com o “objeto-morto”, de alguma forma “morre-se” também. Conforme dito, é preciso elaborar, tentar retirar a energia libidinal investida na “ausência” objetal e buscar investir na “presença” de outros objetos. Isso não significa negar, eliminar a perda, mas entendê-la também como uma realidade dura da existência. O investimento na solidariedade humana comunitária, nas discussões grupais e coletivas, nos movimentos sociais em busca de reivindicações e reparações, ou seja, naquilo vital no qual o sujeito investia no cotidiano, além do “objeto perdido”, pode colaborar para a elaboração do processo de luto. Se necessário, buscar um apoio psicoterapêutico.

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Os segundos podem vivenciar uma “ausência dupla”, tanto do corpo real e/ou a sua representação simbólica para iniciar o processo de luto. Desde os primeiros momentos da tragédia, percebeu-se uma esperança vazia crescente de encontrar os corpos ou partes destes, acarretando certa desesperança, uma espécie de resignação não assimilada, inaceitável posto não haver corpo real nem simbólico, apenas imaginário, o que dificulta iniciar o processo do luto. Penso que esse grupo requer maiores cuidados profissionais e sócio-familiares, haja vista existir ainda, minimamente, certa “esperança esburacada” de o encontro doloroso do corpo ou sua representação concreta (fragmentos). Volto a dizer, cada experiência singular é única, só mesmo cada sujeito pode falar de si mesmo e de sua vivência.

Os terceiros, os sobreviventes diretos e seus familiares têm a tendência de apresentarem momentos de flashbacks e reminiscências com relação ao cenário real da tragédia na qual se salvaram. Sintomas de ansiedade, estresse, falta de concentração, insônia e outros são comuns. Requerem também cuidados profissionais individuais, familiares, grupos, etc... Sintomas psicofísicos também são inerentes, como dores musculoesqueléticas, cefaleias, alterações cardiovasculares e respiratórias, possíveis intoxicações...

Não obstante, quaisquer sujeitos dos grupos mencionados, mesmo que não estejam envolvidos diretamente com as vítimas, podem manifestar sintomas diversos.

Sintomas decorrentes da destruição da vida do Rio Paraopeba e do meio-ambiente, como intoxicação, epidemias viróticas e bacterianas, lesões de pele e outras não estão descartadas.

Na verdade, o município rompeu com a sua história cotidiana, de forma catastrófica. Há uma Brumadinho antes Tragédia da Vale e outro pós-Tragédia da Vale. Criou-se uma fissura com a qual será necessário lidar, reconstruir...

No momento, todas as características descritas dos grupos acima podem ser desenvolvidas nos seus habitantes e terceiros devido ao mecanismo da identificação individual e/ou coletiva. Neste sentido, a cidade precisa de cuidados materiais, biopsicossociais e espirituais, pois é um município bastante envolvido com a religiosidade.

247: Você direciona o problema para algum poder público ou seu trabalho se encerra na terapia? 

Cássio Vilela Prado: A terapia psicológica individual e grupal são uma parte importante, mas é preciso associá-la e direcioná-la para uma Psicologia Social Crítica e Política. É necessária a mobilização dos sujeitos no campo coletivo, pois o problema extrapola o campo individual. Não se deve aguardar a iniciativa assistencialista pública ou da Vale, é necessário que os sujeitos reunidos em coletivos possam ser escutados individualmente e coletivamente, objetivando a produção de vida em abundância em várias direções. Quem sabe o que é melhor para o município é a sua população, por isso é preciso falar, se colocar para a efetiva recuperação das pessoas, da população e da cidade. Aceitar tacitamente os desígnios propostos por autoridades e empresários é deixar de fazer a história de si mesmo enquanto cidadão e dos destinos de Brumadinho neste momento trágico. Por isso, a politização e a emancipação coletiva são imprescindíveis. Excesso de tecnicismo e burocracia da Assistência Social, da Saúde e demais setores públicos normatizadores não são bem-vindos, principalmente agora. Como eu disse, a reconstrução do município de Brumadinho requer uma participação coletiva ampla, de baixo para cima, e não o contrário, mas para isso a participação e a mobilização de coletivos são urgentes. É indispensável romper com a “naturalização” da realidade social criada e “cimentada” (Gramsci) pelas engrenagens enferrujadas do capitalismo selvagem. Tudo o que os poderes instituídos não querem (essa ruptura).

247: O poder público tem cumprido com as suas promessas depois da tragédia?

Cássio Vilela Prado: Já decorridos cerca de 11 meses da tragédia e o seu desastre subsequente de ampla repercussão, algumas medidas já foram tomadas, principalmente como a contratação temporária de profissionais na área da saúde mental e assistência social, embora a população reivindique psicólogos e psiquiatras na Unidades de Saúde da Família de forma permanente e ininterrupta, assim como plantões aos finais de semana no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), haja vista o aumento significativo de tentativas de autoextermínio, o uso abusivo de substâncias psicoativas como álcool, antidepressivos, benzodiazepínicos, estabilizadores de humor, antipsicóticos e outros, etc. 

O trânsito e as obras para recuperação do município e adjacências realizadas pela mineradora (a maioria em seu proveito próprio) castiga a população com a poeira, o barulho, o trânsito caótico e vários outros incômodos abissais na região. Não há informações precisas sobre a real toxicidade dos rejeitos expelidos nem o nível da poluição por metais pesados, extremamente deformantes e/ou letais para a saúde a médio e a longo prazo, conforme se anuncia em Mariana-MG. Todos nós conhecemos o modus operandi Vale. 

O município de Brumadinho, como outros dependentes da mineração, vive do recebimento dos royalties do minério de ferro e outros impostos e doações. Perfeitamente compreensível. Isto não é uma posição subjetiva e administrativa apenas da gestão atual, faz parte da cultura histórica de Brumadinho ser refém do extrativismo minerário. Mas um dia a casa cai, conforme caiu (aliás, muitas casas, prédios, vidas). Embora seja extremamente difícil romper com essa lógica subjetiva capitalista neoliberal, deve-se pensar em outras atividades produtivas para o município, como a agricultura familiar, o investimento em produtos e eventos culturais locais, etc. Conforme todos sabem, o minério é um recurso não renovável e um dia se esgota. A tragédia era anunciada e, mesmo que não fosse, isto não constituía óbice para a criação e implementação do Plano de Contingência para Desastres, conforme citei. A tragédia poderia ter acontecido durante quaisquer das gestões municipais anterior, atual ou posterior. Ainda há muito o que realizar, o caminho é árduo e longo.

247: Como está a situação da cidade e redor em relação ao comércio, turismo e a atividade das empresas que funcionam no local?

Cássio Vilela Prado: Pousadas, residências, sítios, agricultura familiar, pesca, hortifrutigranjeiros, pecuária foram destruídos numa área enorme pela lama dos rejeitos tóxicos despejados. O tráfego entre o centro da cidade e a zona rural foi praticamente regularizado, depois de interdições prolongadas pelas lamas. O comércio apontou sinais de recuperação na área central após o pagamento de indenizações emergenciais individuais, pois perecia nos primeiros meses após a hecatombe valiano. Atualmente, de acordo com alguns comerciantes, as vendas voltaram a cair pois o nível de endividamento da população em geral aumentou. Houve queda significativa de reservas nos hotéis e pousadas devido também ao receio de novos rompimentos, a toxicidade e mortalidade do Rio Paraopeba. Até o Museu do Inhotim, que não está na área afetada pelos rejeitos, teve uma redução importante nas suas atividades devido à redução da procura.

247: Ainda há 14 desaparecidos. Qual a real expectativa de que se encontre todos esses corpos? A velocidade e intensidade das buscas são as mesmas hoje desde o início? 

Cássio Vilela Prado: A cada dia fica mais difícil o resgate de corpos. Na verdade, o que houve foram resgates de fragmentos de corpos triturados e despedaçados pelas lamas da Vale na área mais afetada (em torno de 10 Km2). No momento, os restos mortais estão em estado avançado de decomposição, apesar da saponização (fenômeno que transforma o cadáver, conservando-o da decomposição integral) de poucos corpos/partes encontrados. Uma quantidade dessa lama já desceu até o Rio Paraopeba. As barreiras de contenção colocadas pela Vale não foram eficazes, permitindo o escoamento desses rejeitos tóxicos, afetando várias comunidades próximas ao leito do rio. O Corpo de Bombeiros realiza um trabalho hercúleo, seus soldados são erigidos a verdadeiros heróis, todavia não se sabe ainda se todos os corpos/fragmentos serão encontrados e identificados. 

Nesse momento, movimentos sociais e representantes da população do município se unem em torno de uma pauta reivindicatória de melhorias, reparações e a manutenção das indenizações individuais emergenciais as quais a mineradora causadora da tragédia pretende tesourar. O desastre ambiental e psicossocial infelizmente está apenas no começo, percebo também o início do estresse pós-traumático tardio (o mais grave), com pânico súbito, tentativas recorrentes de auto-extermínio. O momento é desfavorável, mas o povo de Brumadinho é guerreiro. Vamos superar a catástrofe da Vale, embora a ferida ainda esteja bem aberta em busca de sua cicatrização, o que não está nada fácil. 

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