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Liliana Tinoco Bäckert

Jornalista e mestre em Comunicação Intercultural pela Universidade da Suíça Italiana, apresenta coluna semanal na Rádio CBN e é autora de livro e textos sobre vida no exterior

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A bolsa de marca: a rainha dos passaportes

(Foto: Divulgação)
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Inúmeros textos muito bons já foram escritos sobre o filme Não Olhe para cima – película da qual, aliás, gostei muito. A bolsa de marca, que quase virou personagem em alguns momentos, parece ter passado meio desapercebida da lente de outros espectadores e de críticos. Não os culpo, tamanho o número de aspectos dos dias de hoje retratados de uma forma satírica e, ao mesmo tempo, assustadoramente realista.

A bolsa de marca, entretanto, visita meu inconsciente frequentemente, embora eu não tenha sequer uma exemplar. Não sei se por inveja de quem tem, por não querer investir tamanho montante em um item supérfluo (não a bolsa, mas a marca) ou por valores de vida distintos, não importa. O fato é que venho me tornando uma observadora informal desse produto. Mesmo sem ser antropóloga do consumo, não pude ter deixado de ver o objetivo como aspecto crítico do filme. 

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Não é de hoje que a bonitona com pedigree vem me provocar, me levar para o campo da reflexão e do questionamento. No filme, ela deu o ar de sua graça em uma das cenas finais, quando orbitava no espaço após o fim do mundo. Em outro momento tragicômico do pós-explosão, um dos personagens aparece segurando o seu modelo, provavelmente caríssima, mesmo que não houvesse nada mais que justificasse carregar qualquer coisa. 

Segundo a Revista Elle, “elas são praticamente a extensão de quem as usa. Por fora, o design escolhido revela um pedaço da personalidade de seu dono, ou pelo menos do que se faz questão de mostrar para todo mundo. Não à toa, a paixão por esse acessório é uma das mais intensas da moda”. Como o texto não é sobre mim, não vou tomar o tempo do leitor tentando descobrir o porquê de eu não comprar esse objeto de desejo absoluto. Mas vou focar no fascínio de exibir, principalmente no âmbito da vida no exterior e na vontade de pertencimento, pateticamente por intermédio de uma etiqueta em uma bolsa. O estudo O fenômeno da contemplação no consumo de luxo, da Escola Superior de Propaganda e Marketing, diz que o deslumbre tem relação com o fenômeno da contemplação, já mencionado pela filosofia em escritos de Platão e Aristóteles. O autor, Leonardo Aureliano-Silva, explica que na perspectiva desses pensadores gregos, por meio desse fato, o ser humano poderia ascender a divindades e, assim, apropriar-se de suas características belas, superiores e divinas. A contemplação também é, em outro momento, apresentada “como um fenômeno psicológico e cognitivo no qual o indivíduo manifesta grande admiração por algo”.

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O texto constata que, “para consumidores com baixo poder financeiro, a aquisição de marcas de luxo lhes confere atributos especiais, como sensação de poder, mobilidade social, exclusividade, status e o possibilita diferenciar-se do grupo ao qual pertence. Para tornar-se diferenciado, a aquisição de marcas de luxo é elemento básico, já que é por meio do símbolo que o indivíduo se apropria das qualidades do objeto”. 

Trata-se aqui, portanto, da forma capitalista mais despida de pudor, que toca no humano de cada um e os nivela de acordo com o que se pode ostentar. 

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Assim como o filme cruamente revela o enternecedor abobamento de uma sociedade de consumo, a realidade confirma uma quase inocência de zumbis que vagam com etiquetas que os validam, com Botox que os rejuvenescem e antidepressivos que os fazem felizes. No âmbito da migração, falo de gente que paga não sei quantas vezes mais para um item cuja etiqueta promete status - preço nem sempre ligado à qualidade em si, mas que, muitas vezes, economiza no curso de idioma do país onde habita. Tornam-se os “mudos” de Chanel à tiracolo, que levam uma vida em gueto por não conseguir participar da sociedade, já que mal falam a língua ou leem os periódicos disponíveis.

No meu livro sobre casamentos de brasileiras com estrangeiros, abordei o tema da bolsa. Não tinha como ignorar. Já ouvi relatos de mulheres que querem tanto pertencer que “afanam” o cartão do marido “gringo” para comprar a mais cobiçada Birkin, da Hermès; ou uma Louis Vuitton do momento. Elas são motivo, portanto, de desavença familiar. 

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Toda a confusão é justificada para levar as mascotes para o café das amigas, momento ímpar de desfile das aparências. Conto no livro o caso de uma brasileira que foi, em uma festa, a todas as mesas das convidadas mostrar uma exemplar que tinha ganhado do marido. Emblemática, a cena se mostrou uma mistura de fenômeno antropológico de contemplação com vergonha alheia. Isso sem mencionar os cochichos maliciosos: “aposto que é falsificada”. 

Ironia do destino ou crônica da enganação capitalista anunciada, a chave do pertencimento não está na aquisição da marca. Em um curso que fiz sobre mercado de luxo, ouvi a professora especialista dizer que quem compra esse tipo de produto são os consumidores da América Latina e de alguns países da Ásia. Nas ruas das cidades europeias, essas lojas vendem para os turistas e raramente para os locais. 

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A plástica necessidade de ser, demonstrada pelo ter, se esvai, junto com os muitos dinheiros gastos em produtos tão supérfluos. Na infrutífera tentativa de pertencer, esse migrante só reforça, talvez, o deslocamento. Ostenta um desejo desesperado de comprovação para com um passado que ficou em seu país de origem. Porque no presente, em outra sociedade de valores distintos, talvez as etiquetes atestem outros atributos, menos o tão almejado status ou a tal integração. Neste caso, um verdadeiro passaporte falso.

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