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Edwald José Winand

Livreiro, historiador e compositor

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A cabeça de Tiradentes e a traição das elites

Apesar de evidências gritantes do que significam, tem gente que dá crédito a FHC, a Aécio Neves, a João Doria, ao Partido Novo, a senador envolvido com narcotráfico e a Bolsonaro, envolvido com milícias, ocultados por camadas e camadas de mentiras urdidas diariamente pelos seus automáticos porta-vozes de comunicação de massa ou campanhas virtuais de redes sociais

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No final do século XVIII, exatamente no ano que eclodiu a Revolução Francesa (1789), caia por terra uma conjuração de ideias, ideais e poderes locais em Villa Rica, que reunia dos homens mais ricos e perspicazes da região aurífera das Minas. Villa Rica centralizava essa região de vida urbana intensa em serviços e civilidades, dotada de mercado interno baseado na então descendente exploração do ouro e do diamante, mas ainda com grande comércio e própria produção de alimentos. No entanto, tudo isso ainda era para poucos, todo o fausto das igrejas plantadas com a riqueza dos minérios também sombreava a miséria e a tristeza da maioria da população. 

Ainda que houvesse ali como nunca antes visto, escravos alforriados, ainda que houvesse ali pequenas posses de terra cujos produtos enfeitassem as feiras e festas religiosas e complementassem as receitas da administração colonial, ainda que houvesse artistas e artesãos constituindo um expressivo mercado de serviços, aquele mercado interno era, sobretudo um mercado de almas. A prostituição, o roubo, a assim chamada vadiagem, que denominava generalizadamente qualquer um que não pudesse se sustentar dentro de uma estrutura econômica predominantemente senhorial, vigoravam cotidianamente entre trocas de favores, subalternidades, clientelismos, protecionismos, corrupção, partidarismos, revanchismos e conluios. Os “desclassificados do ouro”, como denominou Laura de Mello e Souza, compreendia a própria multidão que transitava entre a vida e a morte, entre o luxo e a miséria e que sustentavam nos ombros as cidades erguidas pela força da preciosa mineração.

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Não faltariam motivos aos desvalidos para que se insurgissem de alguma forma contra uma ordem elitista e autoritária. Mas não foi o caso da assim chamada Inconfidência Mineira. 

Inconfidência, sim, no sentido da não confiança e do desgosto em relação à administração colonial. Melhor palavra não existiria para designar a motivação que reuniu pessoas interessadas não em uma revolução pela independência da colônia, mas apenas em alguma reforma administrativa colonial que concedesse certa autonomia, refletida na formação de uma classe mandatária nativa, em boa parte uma burguesia outorgada, a qual, legal ou ilegalmente diante da Coroa, já praticava largamente a desobediência política por diversos meios.

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A ufanização do episódio da Inconfidência mineira é notória, e perceptível para quem possa ter acesso a algumas páginas de qualquer pesquisa historiográfica crítica da região das Minas ou daquele período. Não havia nem conceito possível de nação para a imensidão fragmentada do Brasil colonial, nem altruísmo democrático ou republicano desejável pelas elites nativas subordinadas. Mesmo havendo tráfico ilegal de livros portadores das novas ideias políticas, mesmo havendo leitores aplicados e confabuladores que, por exemplo, legaram de uma loja maçônica de Villa Rica (atual Ouro Preto), a expressão em latim, (na bandeira de Minas Gerais) “liberdade ainda que tardia”, não havia ideologia de classe capaz de superar a adaptação do liberalismo em andamento (e do latifúndio) ao escravismo vigente, que, de qualquer forma, permanecia como fórmula estimada e providencial dentro de um contexto que fazia confrontar silenciosamente os crimes de uma aristocracia portuguesa decadente, e portanto, avara e corrupta, com os crimes de uma classe mandatária nativa, corrupta e oportunista. 

Apesar desta breve introdução social ao episódio da Inconfidência Mineira, marcada em nosso calendário com a morte por enforcamento do alferes chamado Tiradentes, o Joaquim J. da Silva Xavier, um Dragão de cavalaria a serviço da Coroa portuguesa, a questão que aqui se coloca é talvez menos comum, e com a qual talvez seja possível fazer alguns paralelos com a trágica era Bolsonaro. A questão é a cabeça do Tiradentes, o que ela simboliza o que desejaram que ela fosse e o que dela fizeram? Ao mesmo tempo, a questão também envolve o caráter da Inconfidência Mineira marcada pela traição. Traição de quem? Se pensarmos bem, são traições. E já podemos logo adiantar que o nome de Joaquim Silvério dos Reis, o qual se tornou sinônimo de traição no senso comum brasileiro, é, na verdade menos importante como traidor e mais importante como bode expiatório dos verdadeiros traidores. 

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Dizem que a cabeça de Tiradentes, depois de um ano dependurada em frente ao Palácio dos Governadores, no centro histórico da atual Ouro Preto, foi roubada. Contam-se muitas versões e adotei aqui uma, que por hora considero cautelosa, bem historiada, bem documentada e intelectualmente honesta, que é a versão do jornalista e pesquisador Rubens Fiuza. Também adoto a análise de Rubens Fiuza sobre o verdadeiro caráter e propósito da inconfidência mineira. Seu livro “Tiradentes— Crônicas da Vida Colonial Brasileira” merece ser conhecido e reeditado na clave que ele mesmo propõe, é um livro notável. (um trabalho historiográfico que reconhece as suas limitações, apesar de profunda investigação, ampla documentação, bibliografia e teorização responsável, alinhavando tudo com uma narrativa literária)

Segundo consta, portanto, desta versão rica em depoimentos, escritos, transcritos e documentos, a cabeça do Tiradentes foi levada para uma região do entre rios Abaeté e Indaiá, que embora, já no cerrado mineiro, se ligava à economia da mineração com garimpos de diamante, que inclusive clandestinos, tocados por funcionários graduados da administração colonial, chefes de tropeiros, fazendeiros, enfim, somente quem tivesse poder, proteção influente ou capital se arriscaria em roubar a própria Coroa. Aquela burguesia outorgada, apesar de gozar das melhores posições politicas e econômicas traia a confiança da Coroa sistematicamente.

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A cabeça de Tiradentes, por merecer de companheiros maçons um enterro cristão e por simbolizar a dignidade do ex-alferes, fez uma longa viagem de mais de 300 quilômetros por trilhas e picadas junto da amásia que lhe tinha dado um filho antes de seu enforcamento, moça de talvez 15 anos tomada em pagamento de dívida de um soldado chamado Beltrão. Mesmo antes de ser dada em pagamento, já eram amantes. O credor nunca encontrava o devedor em casa, mas a Eugenia Joaquina, criança concubina, que desapareceu de Villa Rica nos mesmos dias do sumiço da cabeça de Tiradentes, ressurgindo com um nome um pouco diferente meses depois em Quartel Geral, lá entre aqueles rios diamantíferos, conduzida, e também concubina do riquíssimo contrabandista de pedras, latifundiário, chefe de Tropeiros, um dos inconfidentes, o cônego português Francisco de Assis Garcia, protegido do Visconde de Barbacena, este que era o governador geral das Minas Gerais, para o qual, o projeto inconfidente, meio maçônico e apenas reformista, previa a liderança de uma administração com autonomia , menos fisco e talvez até alguma liberdade desenvolvimentista, permanecendo subordinada à Portugal como um vice-reino. 

Em se tratando do Tiradentes, o Joaquim Xavier, ou Xaviel, tomando em consideração as lacunas factuais, mas se tentarmos uma teoria verossímil, era provavelmente, entre os seus companheiros inconfidentes, o menos considerado nas confabulações políticas, mas ao mesmo tempo, no momento oportuno, o que seria “líder” útil, de personalidade egrégia e com o traquejo popular necessário. Tiradentes era de fato, como se comprovou, o mais ousado e próximo das gentes humildes. Pobre não era, instruído por dois irmãos padres, quem sempre poderia ter um livro em sua algibeira, pois um de seus apelidos era “Gramaticão”, lia francês e inglês, estivera na Europa, mas destoava dos demais inconfidentes pelo calor idealista. Para os inconfidentes o liberalismo político já era a linguagem apropriada ao poder que os manteria como elites locais num lugar cômodo, menos oprimido pela matriz. Na esteira de um iluminismo possível, inaugurado em Portugal décadas antes pelo Marquês de Pombal?* Talvez. Já para Xaviel,  faltava uma república e acabar com a escravidão.

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O projeto do Conde de Oieiras, depois Marquês, foi traído pelas elites aristocráticas decadentes após sua saída, aquilo que atrapalhava os nobres foi revogado, uma traição de uma pequena modernização do Estado português. O ideário pessoal de Tiradentes foi traído desde o início pela elite nativa das Minas, ao mesmo tempo, Tiradentes, um notório falador com a cabeça cheia de palavras, o exaltado que começou a falar antes da hora não combinada, foi talvez traído pelo seu próprio ímpeto. Descortinada a Inconfidência  elitista, apenas reformista e liberalista, acusam Silvério dos Reis, quem levou à condenação diversos conjurados, mas não a mais alta cúpula, que também promoveu a morte de Claudio Manuel da Costa, silenciado para  nada confessar. O suicídio foi uma farsa. Portanto Claudio também foi traído. Minas Gerais, a admirável sociedade urbana de economia diversificada, que fugia do padrão monocultural escravista, que cultivava as artes e as letras, que sonhou uma civilidade própria, foi também traída pelos fatos e males de um processo colonial frágil (a corrupção endêmica que vigeu no entorno do ouro e das pedras que o diga), voltando a ser uma sociedade meramente agrária e alienada daquela famosa estampa de esperança na liberdade.

Se olharmos objetivamente através da provável cabeça idealista republicana de Tiradentes, poderemos dizer que na história contemporânea brasileira assistimos mais de uma vez um roteiro politicamente semelhante a este da ascensão e queda do ciclo do ouro das Minas Gerais. Ciclos de desenvolvimento forçado por forças e desejos não programados. Mas também assistimos, inclusive recentemente, ao fenômeno das múltiplas traições acionadas pelas elites, traição da causa nacional, traição da modernização do Estado, traição da democracia que recomeçava.

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Os liberais que vieram para retomar a democracia dando as mãos aos trabalhistas e socialistas antes, durante e depois da constituinte de 1988, também consideraram em seus planos “maçônicos” a serventia e potencial ameaça dos idealistas exagerados que não sabem conter a língua, tais como Brizola e Lula. 

Das elites brasileiras que sempre se consideram liberais, sobraram apenas aqueles ajustes reformistas oportunistas, entreguistas, colonialistas e escravistas, seguindo instintivamente a sua vocação histórica para o latifúndio, o rentismo e para a expropriação, algo tão antigo quanto a vocação de um maçom, “cristão” para o contrabando de pedras e ouro, tal como acontecia entre dignitários das Minas Gerais do século XVIII. 

Em 2003 surge uma nova fase política que foi em certa medida uma resposta da sociedade aos elitistas autodenominados (neo) liberais. Uns idealistas mais exaltados assumiram aquela liderança prometida a Tiradentes dois séculos atrás e tiveram coragem de iniciar um processo democrático e republicano, que de certa forma se dirigiu contra o mesmo escravismo de face urbana e liberal presente nas antigas cidades das Minas Gerais. Em 1965 os militares trouxeram a lume o Tiradentes para a sua própria glorificação, mas a cabeça dele permaneceu oculta,**  somente no início do século XXI, tomaram de volta esta “cabeça”e os seus singelos, mas fundamentais pensamentos  sobre liberdade e republicanismo.

Aliás, outro filão enorme de “ouro preto” fora encontrado em camadas do solo oceânico. Ora vejam, “ouro preto” que desta vez seria para fazer a “vila” realmente rica, em educação, saúde e trabalho. Porém, não exatamente através deste novo “ouro”, já se encaminhavam progressos sociais importantes para a “vila” que antes fora acentuadamente empobrecida pelas mãos de Sarney, Collor e FHC, já os admiradores da cabeça de Tiradentes até acumularam reservas cambiais bilionárias para o país. 

Pela primeira vez, o país estava dotado de uma liderança que, como Tiradentes, confabulava com aqueles círculos “maçônicos”, mas nunca sendo aceita por eles. E de fato, muito antes de se chegar ao final de 15 anos de governo com quatro vitórias federais consecutivas, os ditos liberais, as elites de sempre, os ladrões de sempre, os mentirosos de sempre, os traidores de sempre, reativaram quase que concomitantemente à primeira vitória de Lula, mais um processo de traição. Desta vez, não precisavam escapulir da punição colonialista, desta vez precisavam desesperadamente manter-se colonizados, resignados à suposta superioridade do hemisfério norte. Desaprenderam muito o trabalho e a política, pois uma tradicional e agigantada zona de conforto autoconcedida os mantiveram perigosamente preguiçosos e inconscientemente irritados com a própria decadência, como aqueles “Tiger Kings” dos EUA (em exibição na NETFLIX). 

Essas elites que cada vez menos industriosas e cada vez mais rentistas, acompanhadas de seus serviçais e seguidores das classes médias, presumidamente instruídas, rasgaram o pacto social declarando guerra à possibilidade de uma real social democracia no país. Até então, o jornalismo da direita brasileira, falsamente liberal, vivia placidamente conspirando contra o que pudesse ameaçar a falsa dignidade do tradicional arranjo político e econômico das elites, sustentado por uma tradicional expropriação econômica monstruosa geradora de perversidade social. No entanto, a partir de então, promoveram no imaginário brasileiro uma gradual distorção cognitiva coletiva, fomentando o medo e o ódio entre a população contra uma politica econômica de Estado que retirou 30 milhões de pessoas da miséria, contra efetivas politicas de fortalecimento da cidadania e de emancipação social. Contra a elevada consideração internacional em relação ao estadismo dos governos Lula e Dilma. O Estado social recuperado e amplificado durante 15 anos de governos progressistas imediatamente foi estraçalhado depois do Golpe de Estado contra Dilma Rousseff. Uma verdadeira traição contra a saúde social e econômica do país.

Não há qualquer limite para a traição das elites, elas estão possuídas pelo mau hábito da mentira incontrolável. Pelo uso extravagante da mentira os mentirosos ficam irreconhecíveis. Apesar de evidências gritantes do que significam, tem gente que dá crédito a FHC, a Aécio Neves, a João Doria, ao Partido Novo, a senador envolvido com narcotráfico e a Bolsonaro, envolvido com milícias, ocultados por camadas e camadas de mentiras urdidas diariamente pelos seus automáticos porta-vozes de comunicação de massa ou campanhas virtuais de redes sociais. Não é esse o fenômeno da pós-verdade? Acredita-se naquilo que é crença, afetivamente embalada por formações de opinião enquanto os fatos objetivos são desprezados.

Os mais ricos e influentes formadores de opinião aliados numa guerra (um vale tudo imoral e covarde) sinistra contra a democracia, durante mais de 10 anos criaram as condições para a apoteose da mentira representada pelo Bolsonarismo. As capas, manchetes e editoriais vulgares e extremamente desonestos dos tradicionais veículos de jornalismo e comunicação, incluindo os influentes telejornais, preparam a vinda do dito “Messias”, mitômano e psicótico. 

Prenderam Lula sem provas e com processo judicial negociado entre juiz e promotores, achavam que poderiam dependurar novamente a cabeça de Tiradentes na ponta de um poste para exemplo de que o autoritarismo colonial e elitista ( que hoje é os EUA) pretende-se absoluto, mas se esqueceram que o conteúdo, a ideia da liberdade, a mente, não é aprisionável. Como disse Gandhi, e como repetiu Lula antes de ser preso.

Os maçons queriam libertação do Brasil? Não, de jeito nenhum, apenas um arranjo melhorado. Os liberais tucanos, boa parte dos MDbistas e demais oportunistas também nunca desejaram a democracia, apenas uma face fake. Silvério dos Reis era um covarde traidor? Em nosso senso comum permanece como (providencial) traidor da “bem intencionada” elite mineradora centralizada em Villa Rica, mas na verdade, é bode-expiatório que encobre a traição dessa elite da qual participava. Da mesma forma, Bolsonaro, afilhado extremoso da direita brasileira decadente e desesperada, tolerado e protegido convenientemente por essa gente que tem com ele afinidades e muitas semelhanças, ao cair do poder será utilizado como bode expiatório destas mesmas elites que o criaram, para encobrir-lhes seus próprios crimes de profunda corrupção financeira, corrupção das instituições e do pacto social, crimes imperdoáveis  de lesa pátria, lesa república, lesa democracia, lesa humanidade.  

*A administração pombalina acirrou a cobrança do imposto e a fiscalização sobre a mineração.  

** Lei 4897 de 09/12/1965 que consagra Tiradentes como patrono cívico da nação brasileira.

Bibliografia consultada:

Bethell, Leslie. Org. Brasil: fardo do passado promessa do futuro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2002. 

Fiuza, Rubens. Tiradentes —Crônicas da Vida Colonial Brasileira. Belo Horizonte: Edição de Rita Soares de Faria. 2006.

Linhares, Maria Yeda. Org. História geral do Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 1996.

Souza, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro: A pobreza mineira do século XVIII. São Paulo: Graal, 1986.

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