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Jaime Amparo Alves

Jornalista, doutor em Antropologia Cultural com foco nas relações raciais, políticas de segurança e violência espacial no Brasil e na Colômbia. Professor de Estudos Negros na Universidade da California, Santa Barbara

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A esquerda colombiana e o governo das ninguéns

Em eleição histórica, esquerda derrota uribismo e chega ao poder para o governo dos ‘ninguéns’ na Colômbia

Gustavo Petro e Francia Márquez (Foto: REUTERS/Santiago Arcos)
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É tarde de domingo, 19 de junho, em Cali, a cidade colombiana conhecida como a capital da resistência. Estamos na Casa Francia Márquez, a sede do coletivo Soy Porqué Somos, uma coalisão liderada por mulheres negras como a agora eleita vice-presidenta. A emoção é grande. Um mar de jovens, mulheres, população LGBTQ+, população campesina e indígenas acompanham passo-a-passo a apuração dos resultados da eleição presidencial para os ocupantes da Casa de Nariño, a sede do governo. Cada novo boletim é recebido com gritos de “el pueblo no se rinde carajo” ou “até que a dignidade se faça costume”. Os dados vão confirmando a vitória do Pacto Histórico, um esforço único das esquerdas, movimentos sociais e sindicatos para derrotar o uribismo. Aqui os excluídos das periferias de Santiago de Cali ocupam o prédio no centro da cidade racialmente dividida. Uma ativista  grita que coube às mulheres negras como ela “transformar a história desse país.” Ela completa: “sindicatos, movimentos sociais, partidos de esquerda, todos tentaram mas fomos nós que agora tomamos em nossas mãos essa contrução de uma nação plural. Não estamos condenadas a ser apenas empregadas domésticas. Agora é o governo das ninguéns”. 

Esta é uma vitória histórica das forças lideradas por Gustavo Petro (62 anos, se pronuncia Pêtro) e seu Partido Colômbia Humana. Ex-guerrilheiro do M-19 e ex-prefeito da capital Santa Fé de Bogotá, Gustavo Petro foi a principal voz da oposição nas últimas décadas. Ele disputou três eleições presidenciais sob o fogo cruzado da mídia tradicional e setores da Igreja Católica que o consideravam “uma ameaça castrochavista”. Quando a direita colombiana celebrava seu banimento da vida política por meio do lawfare que o destituiu do cargo de prefeito de Bogotá em 2013, Petro recorreu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual obrigou o Estado colombiano a restituir os seus direitos políticos. A experiência como guerrilheiro, senador, deputado e prefeito o transformou em um dos quadros políticos mais preparados do país. Até os adversários admitem que “ninguém conhece a Colômbia como Petro.” Ao mesmo tempo, o candidato-empresário Rodolfo Hernandez (promovido pela mídia corporativa como um político independente, mas na verdade um fiel representante do establishment) assustou até as classes medias conservadoras com seu linguajar vulgar, comportamento agressivo e despreparo intelectual.

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Petro tem o país no coração e na mente. No telão, seu discurso indica os rumos do novo governo: reconciliação, justiça social e justiça ambiental. Talvez lembrando sua própria trajetória política como ex-guerrilheiro (Petro foi torturado e preso e vários membros do M-19 foram assassinados), o agora presidente se emociona ao falar dos custos políticos para que a esquerda chegasse ao poder em um país supostamente democrático. “Quanta gente que não está aqui, quantas pessoas desaparecidas, mortas ou encarceradas simplesmente porque tinham esperança e amor….” Segundo ele, a vitória deste 19 de junho “é um grito da história. É o acúmulo de rebeldias contra as injustiças, a discriminação e as desigualdades.” 

Soy Porqué Somos

Mesmo com quase cinco milhões de voto nas primárias eleitorais, Petro parecia fadado a ser apenas oposição parlamentar ao uribismo. O desempenho eleitoral de Francia Márquez, desbancando candidatos como os centro-direitista Sergio Farjado (ex-governador de Antioquia) e Alejandro Gavíria (ex-ministro da economia) a transformou em fator decisivo para a vitória do Pacto Histórico. Ativista negra da comunidade de La Toma, no estado do Cauca, Francia Márquez (41) despontou como lider social a partir de sua atuação em defesa da comunidade ribeirinha do Rio Ovelha, vítima da mineração ilegal e do paramilitarismo naquela região. Ela organizou uma marcha de 350 quilômetros da Toma a Bogotá. Alí, cento e trinta mulheres ocuparam o Ministério do Interior chamando a atenção do mundo para a violência contra os territórios negros. Márquez, quem sobreviveu a três tentativas de assassinato, é uma das vozes mais atuantes contra as “políticas de morte” que já custaram a vida de mais de mil lideranças políticas assassinadas desde o acordo de paz com a guerrilha, em 2016. Segundo a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), somente em 2021, foram assassinadas 145 líderes sociais.
Nas ruas de Cali, conheci uma Francia Márquez marchando e chorando as mortes de ativistas negras, indígenas e campesinas. Sua luta “por uma paz ecológica e social” foi reconhecida em 2018 com o prêmio Goldman, uma espécie de Nobel do Meio Ambiente. A agora vice-presidenta, também cotada para assumir o novo Ministério da Igualdade Racial, mobilizou aqueles e aquelas a quem ela denomina como as “nadie” ou “ninguéns” em um movimento político que levou a ex-empregada doméstica, mãe solteira e uma das cinco milhões de pessoas refugiadas internas pelo conflito armado colombiano à Casa de Nariño. O movimento, nascido em Cali e liderado por mulheres negras do  excluído distrito de Aguablanca, se consolidou como o principal catalizador das forças políticas e populações marginalizadas cansadas do uribismo mas ainda desconfiadas do discurso cheio de jargões messiânicos e demasiado acadêmico de Petro. Com seu discurso de cuidado pela vida, Francia Marquez e as mulheres negras excluídas da nação colombiana foram a alma da campanha e serão o coração da mudança histórica. Em um esforço criativo, elas  organizaram cozinhas comunitárias, círculos de formação política nas ruas, educação popular nos ônibus urbanos, marchas… e neste domingo acompanhavam a apuração  para evitar fraudes  por parte da direita colombiana que vinte e quatro horas antes da abertura das urnas já divulgava dados (supostamente uma consultoria da Justiça Eleitoral), antecipando a vitória de Rodolfo Hernandez.

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Democracia sangrenta

Ao contrário de seus vizinhos no continente, a Colômbia tem orgulho de ser um país livre do autoritarismo militar. Bem, mais ou menos isso. O século passado viu ‘apenas’ um breve período de controle militar sob o general Gustavo Rojas Pinilla (1953-57), no período conhecido como “la violencia”. A guerra civil foi desencadeada com o assassinato do candidato presidencial do Partido Liberal, Jorge Eliécer Gaitán, nas eleições de 1948. Mesmo nos dez anos de violência quando liberais e conservadores se matavam para o controle do poder, os militares seguiram subordinados ao poder civil. O país mais militarizado do continente, pelo menos no plano formal, não padeceu dos longos regimes de exceção como no Brasil, Argentina, Chile e Paraguay. Ao mesmo tempo, a  marginalização e assassinato sistemático de líderes  à esquerda do establishment – o que gerou o surgimento de grupos armados como as FARC, o ELN e o M-19– demonstram o desprezo das elites pela democracia. Talvez não tão ironicamente, um dos planos mais sangretos de defesa da ordem colombiana, sob a presidência de Álvaro Velez Uribe, era chamado de “seguridade democrática”. Aumento estratosférico dos gastos militares, massacres, desaparições forçadas e “falsos positivos” eram a receita do uribismo para garantir “paz”, “eleições livres” e “ambiente propício” ao desenvolvimento econômico que nunca chegou às regiões negras e indígenas do país. Embora adaptada por seu ex-ministro da defesa (e depois opositor) Juan Manuel Santos, e pelo atual presidente Iván Duque, a lógica da guerra segue sendo o tom da para/política colombiana. Petro agora promete “o governo da vida e da liberdade. A liberdade de não passar fome, de ter uma casa, de viver com dignidade.”
A tarefa é imensa e a expectativa é enorme.  Será o Pacto Histórico capaz de por fim a uma ditadura política e social expressa de maneira brutal nas cifras de assassinatos de líderes sociais e ex-membros das FARC (que aceitaram depor as armas em um acordo de paz firmado em 2016), na concentração da terra (um estudo da OXFAM mostra que apenas 1% das grandes propriedades ocupa 81% da tierra, enquanto 99% das pequenas unidades rurais ocupam apenas 19%), nas desigualdades sociais (segundo relatório do Banco Mundial, o coeficiente de Gini 0,53 é apenas superado pelo Brasil), nos índices extremos de pobreza (dados do governo dão conta de que 39% da população vive em tal situação) e na macabra política de contrainsurgência do Plan Colombia que, vendida como guerra às drogas e financiada pelos Estados Unidos, produziu uma das maiores populações de refugiados internos do mundo?

Potência da Vida

No programa de governo de Gustavo Petro e Francia Marquez figuram iniciativas que podem finalmente mudar as estruturas escravocratas e patriarcais da sociedade colombiana. Os principais pontos incluem mudança do modelo econômico com uma ampla reforma agrária ampliando o acesso femenino, negro e indigena à propriedade da terra,  revisão do tratado de livre comércio com os Estados Unidos para proteger a indústria nacional, expansão do acesso à educação superior para juventude negra, indígena e campesina, substituição gradual da matriz energética petrolífera para energias renováveis, amplo programa de habitação popular com titulação da propriedade para as mulheres, programa de segurança alimentar e defesa do meio ambiente. A marca do governo eleito, Colombia: Potência da Vida sintetiza a busca pela harmonia entre crescimento econômico, justiça social e proteção ambiental. 

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O programa também prevê uma nova relação com a América Latina e com os Estados Unidos, seu principal parceiro comercial e militar.  Por exemplo, Petro promete uma revisão nos acordos militares que praticamente transformaram o país em uma extensão de Washington. Atualmente, a parceria inclue cooperação militar permanente e a adesão da Colômbia como aliado estratégico da OTAN.  Geopoliticamente, a Colômbia tem servido aos interesses estadunidenses de terceirizar as hostilidades ao governo Maduro (Venezuela), a partir da Casa de Nariño, e manter hegemonia frente à presença da China no continente.  Para não mencionar o lucrativo negócio paramilitar no qual ex-oficiais das Forças Armadas Colombianas, treinados pelo Pentágono oferecem serviços mercenários como o assassinato do então presidente haitiano Jovenel Moïse, em julho de 2021.
A esperança que inundava a sede da campanha no domingo histórico do 19 de junho nos remete às palavras de Gabriel Garcia Márquez quando convidado pelo então presidente Cesar Gavíria a participar de uma comissão criada para imaginar a Colômbia do novo milênio. Márquez, ao estilo do seu realismo mágico, descrevia em poucas linhas o que essa “esquina do mundo” poderia ser. A Colômbia do futuro, dizia, não estaria condenada a repetir sua história, mas teria que reencontrar-se com seu passado colonial para superá-lo. Como ponto de partida, Marquez pede que se “canalize para a vida a imensa energia criadora que durante séculos temos exaurido na depredação e na violência e que [esta energía] nos abra  por fim uma segunda oportunidade sobre a terra, a que não teve a estirpe do coronel Aureliano Buendía.” O autor de Cem Anos de Solidão concluía imaginando a Colômbia do terceiro milênio como “um país ao alcance das crianças”.  Em seu discurso da vitória, Francia Márquez revisita o passado colonial, radicaliza as aspirações e acena para “um governo das gentes com as mãos calejadas.” Talvez, finalmente, a ‘tierra del olvido’ abandone a amnésia social, enfrente o trauma histórico da escravidão e se junte a outras forças progressistas da região na busca de um país e de um continente ao alcance dos e das ninguéns.

 

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