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Marcelo Gruman

Doutor em Antropologia Social (MN/UFRJ); especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura (UnB); atualmente é administrador cultural da Funarte/MinC

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A guerra contra a homofobia

Um dos pais acha que a geração de nossos filhos viverá um mundo mais democrático, aberto à diversidade, em comparação ao mundo em que nós e nossos pais vivemos

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Certo dia, num parque perto de casa, nosso filho encontrou um colega da escola acompanhado de sua avó. Essas coincidências são ótimas, tanto para os pais, que podem descansar um pouco a coluna dos jogos e brincadeiras inventados pelos filhos, quanto para os próprios filhos, que podem se divertir com companheiros da mesma idade e com igual disposição para correr de um lado para o outro. Sentamos no banco, eu e a avó, observando filho e neto no balanço, na gangorra, chutando a bola de futebol. Num dado momento, aproximou-se de nós uma criança, um menino, mais especificamente, da mesma faixa etária dos nossos, brincando com o pai, com asinhas de fada. A reação da avó foi quase instantânea, de reprovação, "que pouca vergonha", "onde já se viu, onde estamos", "que absurdo". Eu permaneci calado, pusilânime, admito. O colega de meu filho deu uma risadinha quando percebeu as asinhas; meu filho não reagiu desta forma que, nas crianças, pode ser mortal e traumática. Observando o pai do menino, percebi, talvez erradamente, seu constrangimento, sua vergonha. Talvez constrangimento pela ignorância alheia, vergonha alheia. Mas ele estava desconfortável, porque sabia que as feras estavam à espreita, observando a presa indefesa, prontas para comê-la moralmente. Quem sabe este pai é, ao contrário, forte o suficiente, moralmente superior, para aguentar o desprezo de que é alvo, junto com seu filho. As aparências enganam. Senti-me culpado por não tido qualquer reação contrária ao espetáculo de ignorância e preconceito daquela senhora machadiana, obesa e cheia de varizes. Opa... Olha o preconceito de novo, por aqui. Quem com ferro fere...

Mal sabe (ou será que sabe?) a simpática vovó que uma das professoras de seu neto é lésbica. Não, a professora não anunciou aos sete ventos sua orientação sexual, tampouco tentou seduzir os alunos, como devem imaginar os homofóbicos que confundem criminosamente homossexualismo com pedofilia. Ninguém sai por aí anunciando suas preferências sexuais, também não devemos esperar que a professora o fizesse apenas porque sua opção não é a mais comum, embora não seja "antinatural" ou "anormal". A unanimidade é burra. Foi num churrasco da turma que o segredo foi revelado para bons observadores da vida alheia. Chegou acompanhada de uma moça, até aí nada de mais, exceto, talvez, as mãos dadas por baixo da mesa, mãos tímidas. Embora num ambiente amigo, não hostil, formado por pais cuja mentalidade está longe daquela característica dos homens das cavernas, intolerantes, o alerta não desligou em momento algum, nenhum beijo foi dado ou roubado. A vergonha era patente, a repressão estava ali, presente. A professora foge do estereótipo das lésbicas, masculinizadas. Minha mulher já revelou que, lésbica fosse, estaria apaixonada, o mesmo diria eu.

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Eis que no dia 28 de fevereiro, na Praça São Salvador, tradicional local de convivência entre diferentes, sejam eles sexuais ou culturais, um casal foi covardemente agredido porque, pecado dos pecados, expressava seu amor com um beijo. O casal foi alvo de xingamentos e de garrafas e copos de vidro. O vereador Renato Cinco recebeu a denúncia da agressão homofóbica e, do púlpito do plenário da Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro, relatou o seguinte, nas palavras de uma testemunha:

Enquanto uma amiga comemorava o aniversário em um bar na Praça São Salvador, um casal gay era agredido em frente. Dois homens tripudiaram e jogaram uma garrafa em cima deles. O casal pediu ajuda ao guarda municipal, que nada fez. Ainda na frente do guarda, um dos homens socou a cara de um dos meninos que fora pedir ajuda. Eles também pediram ajuda à patrulha da PM que fica na praça, que nada fizeram, só orientando a dar queixa na 10ª DP. Indignados, os convidados do aniversário resolveram promover um beijaço, que mal começou e já sofreu represália dos agressores. Gritavam palavras chulas, jogavam cerveja, até darem uma garrafada em um dos manifestantes. Partiram para socos e pontapés em todos os envolvidos no beijaço. Novamente os policiais da praça foram chamados e, de maneira impressionante, foram coniventes com os agressores, coibindo os agredidos, meio que recriminando as pessoas que estavam denunciando as agressões. Após muito custo, e só quando uma nova confusão ocorreu, com a revolta das pessoas na praça, que partiram para agredir os agressores, e diante da omissão da Polícia Militar, as pessoas que estavam na praça começaram um processo de agressão contra os agressores homofóbicos, e aí foram todos encaminhados para a 10ª DP. Não é fácil perceber quando uma agressão ocorre pela falta de compreensão do que é o outro. Todo agressor parte de verdades inquestionáveis. Por isso, não há palavra que o segure! Ontem foi a primeira vez que o ódio chegou perto de mim e dos meus. Conheci a raiva direcionada ao que não se compreende ou se aceita. No momento em que acontece, duas reações e reflexões passam pela cabeça. A primeira é de se entregar ao medo e ficar calado, colocar o rabo entre as pernas e fazer, exatamente, o que manda o agressor: excluir-se! A segunda é de tentar transformar o medo em uma espécie de coragem, para conseguir tirar qualquer tipo de força para gritar, unir-se aos seus e buscar, minimamente, mudar qualquer coisa! Foi isso que se passou ontem: o medo encontrou a sorte e a coragem! Dois passaram a ser muitos! E uma esperança de justiça aconteceu ali, naquela praça mesmo! O primeiro julgamento para os agressores foi ter que assistir iguais e diferentes entre beijos! O próximo será por vias tradicionais! (grifos meus, depoimento editado).

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Como reação à barbárie perpetrada por trogloditas enrustidos, aconteceu, na última sexta-feira, o "Beijaço na Praça", que contou com dezenas de casais gays, lésbicos e héteros. Após a leitura de um manifesto de repúdio às agressões, os ativistas foram até a frente do bar onde ocorreu o episódio que desencadeou o ato, e explicaram aos frequentadores o motivo do movimento. Às 20h, no momento do beijo, os usuários do bar aplaudiram a iniciativa. Uma faixa foi colocada na porta do estabelecimento que dizia "A Casa Brasil apoia a campanha contra a homofobia". Na hora do beijaço, foram projetadas frases feitas pelos manifestantes como "Casa Brasil, homofobia é crime" e "Eu beijo quem eu quiser". Foi distribuído um manifesto aos frequentadores da Praça São Salvador e a todos que passavam por ali, que dizia, entre outras coisas, o seguinte:

Diante de incessantes demonstrações de intolerância com a comunidade LGBTI, manifestamos nosso repúdio ao silêncio, indiferença e conivência da sociedade diante de agressões contra a nossa comunidade por meio de uma frente de combate à LGBTIfobia, na qual se reúnem coletivos e ativistas que advogam por uma sociedade livre de exploração e qualquer tipo de preconceito. A frente tem como objetivo ocupar e denunciar os espaços em que ocorrem violência contra LGBTI na cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana, marcando esses lugares com nossos corpos, beijos, adesivos e purpurina, mostrando nosso afeto, nossa luta e nossa resistência. Não haverá mais guetos! Somos todos iguais nas nossas diferenças. Somos lésbicas, somos gays, somos bissexuais, somos travestis, somos transexuais, somos intersexuais.

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Nossa família heterossexual estava no ato. Encontramos a professora, que vestia uma blusa com a palavra "gay". Encontramos também amigos de nosso filho, com os pais. As crianças adoram a professora, sobem no seu colo. Dali a pouco, sua namorada (ou o que quer que seja, quem se importa com rótulos) chegou. No chão da Praça, escrito com giz colorido, a frase "amar é um direito humano". Nosso filho aproveitou para atormentar a mãe, escrevendo que a amava e que ela também era "chata". Eu tive de procurar no Google o significado de "intersexual", tenho de me atualizar nesta área. Os organizadores do evento compreenderam bem que ocupar o espaço público é a única forma possível de resistir à exclusão social, de afirmar a cidadania que implica, além dos deveres, o direito de exercer sua sexualidade como bem lhe aprouver sob a proteção do Estado, que, aparentemente, não ocorreu no dia 28 de fevereiro. A Praça, aqui, tem forte simbolismo porque representa o espaço público, onde a diferença na igualdade pode e deve ser expressa.

Um dos pais acha que a geração de nossos filhos viverá um mundo mais democrático, aberto à diversidade, em comparação ao mundo em que nós e nossos pais vivemos. Sou cético quanto ao futuro porque a cada ação no sentido de "sair da casca", de libertar-se da opressão moral, ocorre uma reação com igual ou maior força. Simples questão física. E a luta ficará cada vez mais encardida, porque as forças que lutam pela manutenção do status quo, que partem, conforme o relato lido pelo vereador, de "verdades inquestionáveis" e morrem de medo de ter de pensar como o próprio intelecto, de sair da zona de conforto, adoram a "constância e impenetrabilidade da pedra", nas palavras de Sartre em sua análise do racismo e do racista. Talvez eu esteja enganado, e os desbravadores de agora permitam que as gerações futuras vivam num mundo mais feliz. No fundo, tudo se resume à procura da felicidade, do amor, e quem tem o direito de dizer como eu devo ser feliz, como devo amar?

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A caminho de casa, trazendo meu filho da escola, duas horas antes do "beijaço", a Praça já se preparava para o evento. Muitos policiais esperavam o momento de agir, caso fosse preciso, vestidos com uma indumentária própria para ocasiões de grande tensão e violência. Também muitos ambulantes preparavam seus isopores com cervejas e refrigerantes. No momento do beijo coletivo, estávamos no meio da confusão saudável, meu filho nos meus ombros. Neste momento, uma moça, ao lado do namorado, deu-nos os parabéns por trazer nosso filho para a manifestação, por transmitir-lhe os valores da tolerância (convivência seria melhor) e da importância de aceitar o diferente. É claro que a presença da polícia militar é melhor do que sua ausência, e que receber elogios de um anônimo por sermos pais decentes nos orgulha. Por outro lado, a necessidade de um aparato policial daquela monta é um sinal de que algo vai mal em nossa sociedade, que ela ainda está doente e que o processo de cura vai ser lento e doloroso, se cura houver, se a morte não chegar primeiro. O elogio que nós recebemos, por sua vez, é a prova de que a exceção confirma a regra.

Os trogloditas que xingaram e agrediram fisicamente o casal que trocava carinhos na Praça São Salvador podem muito bem, na infância, ter brincado no parque em que meu filho e o neto da avó machadiana brincavam tempos atrás. Não é possível transigir com a barbárie, é preciso estancar a hemorragia. E viva o beijaço!

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