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Vinicius Gomes Casalino

Vinicius Gomes Casalino é professor de hermenêutica do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Campinas

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A linguagem jurídica - ou o canto da sereia do direito

Alguém poderia dizer que, infelizmente, o pensamento progressista no campo do direito não conta com nenhum “oráculo” que pudesse nos alertar sobre o canto das Sereias. Nada mais errôneo

Herbert James Draper: 'Ulisses e as sereias', pintura de 1909 sobre o trecho estudado por Adorno (Foto: Reprodução)
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Na Rapsódia XII de Odisseia, Ulisses é alertado por Circe, a feiticeira, sobre os perigos que o aguardavam em sua viagem de retorno a Ítaca. 

Dentre as inúmeras ameaças, o herói e seus companheiros teriam que enfrentar a ilha das Sereias, criaturas metade mulher, metade pássaro, cujos cantos hipnóticos enfeitiçavam todos quantos por ali passavam. Elas habitavam um belo prado florido, rodeado por ossadas de corpos em putrefação e peles ressequidas. 

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De acordo com Circe, se Ulisses quisesse escutar a melodia, e, ainda assim, sobreviver, deveria tomar algumas precauções. Antes de tudo, deveria tapar os ouvidos de seus companheiros com cera amolecida para que não escutassem, em nenhuma hipótese, a canção hipnótica. Desse modo, não deixariam de remar e logo ultrapassariam a região de perigo.

Ele mesmo, Ulisses, deveria amarrar-se fortemente ao mastro de sua nau. Assim que escutasse o canto mágico certamente ficaria encantado e ordenaria aos companheiros que o soltassem para ir ao encontro das Sereias. Justamente por isso, deveria determinar, com antecedência, que em nenhuma circunstância o libertassem. Pelo contrário, quanto mais ele comandasse sua soltura, com tanto mais afinco deveria ser amarrado.

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Ao costearem a ilha, o herói escutou a música hipnótica: “Vem aqui, decantado Ulisses, ilustre glória dos Aqueus; detém tua nau, para escutares nossa voz. Jamais alguém que por aqui passou em nau escura que não ouvisse a voz de agradáveis sons que sai de nossos lábios; depois afasta-se maravilhado e conhecedor de muitas coisas, pois nós sabemos tudo quanto, na extensa Tróade, Argivos e Troianos sofreram por vontade dos deuses, bem como o que acontece na nutrícia terra”[1].

As Sereias eram pérfidas. Prometeram transmitir a Ulisses um precioso conhecimento sobre a vontade dos deuses e sobre as coisas que acontecem na terra. Se, no entanto, ele se aproximasse certamente teria o destino de todos os demais: sua ossada apodreceria após ser devorado pelos terríveis seres.   

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As orientações de Circe funcionaram. Segundo Ulisses, as magníficas vozes daquelas criaturas inundavam seu coração com o desejo de ouvi-las e ele rapidamente ordenou sua soltura. No entanto, foi preso com laços mais numerosos e apertados com mais força, permanecendo absolutamente atado ao mastro de sua nau. O herói foi solto apenas depois que a embarcação se afastou e não se ouvia mais o canto hipnótico. Sãos e salvos, prosseguiram a viagem.

Observando este episódio das aventuras de Ulisses, é possível traçar um paralelo interessante entre o canto das Sereias e a linguagem jurídica. Pois, em ambos os casos, há “vozes que encantam todos os homens que delas se aproximam”[2]

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De fato, alguém ousaria negar o encanto que o art. 5º, caput, da Constituição de 1988, provoca em nossos corações? “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.

O que dizer, então, de seu inciso LV? “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. O inciso LVII, por sua vez, é especialmente acolhedor: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

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Ao afirmar que todos “são” iguais perante a lei, a Constituição vale-se de um enunciado que remete à realidade e ao presente. De acordo com o texto constitucional, hic et nunc, quer dizer, aqui e agora, todos somos iguais e temos a garantia da vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade.

Perceba-se que a linguagem jurídica atribui a si mesma o poder criador de uma realidade. Se confiarmos plenamente em suas palavras, podemos dormir tranquilos, pois sabemos, de antemão, que continuaremos vivos, iguais, livres, em segurança e proprietários. 

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Quando a Constituição afirma que ninguém “será” considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória, utiliza um enunciado que remete ao futuro, antecipando uma situação. Ela não diz que existe a possibilidade de sermos ou não considerados culpados antes do trânsito em julgado, dependendo da situação concreta. Pelo contrário, garante que não seremos. 

Tal como Circe, a Constituição pretende funcionar como uma espécie de feiticeira. Ela nos antecipa o futuro, e, ao fazê-lo, coloca-nos numa posição de segurança, pois podemos nos precaver quanto aos perigos que nos rondam. Sentimos que somos cuidados.

O problema reside no fato de que Ulisses não foi salvo por Circe, mas por ele mesmo e por seus companheiros. É claro que sem a ajuda da feiticeira o herói cairia facilmente nas garras das Sereias. Mas note que, entre a orientação dada por Circe e a precaução adotada por Ulisses, houve um ato de vontade claro e consciente; uma decisão de fazer aquilo que havia sido dito.

Ulisses poderia ter simplesmente ignorado as orientações por considerá-las, talvez, mera superstição. Seus companheiros poderiam ter desobedecido suas ordens, o que não espantaria, pois não seria a primeira vez. Nesse caso, todos estariam mortos. 

Pois bem, a linguagem jurídica, na medida em que proclama uma situação de fato e antecipa uma situação futura, autoproclama-se dotada de uma espécie de “feitiço”: a possibilidade de adequar a realidade existente a seus enunciados. Está implícita nela uma espécie de “transubstanciação”, isto é, a potência de promover a passagem automática de um estado de linguagem para uma ação concreta.

Sem dúvida, o direito não nos diz que uma situação deve ser ou deixar de ser de acordo com circunstâncias fáticas e particulares do momento. Pelo contrário, afirma que tal ou qual situação deve ser do modo como ele, direito, determina que seja, sem discussão.

A linguagem jurídica, pela sua própria natureza, quer dizer, pela maneira como se constitui, imputa-se uma capacidade de decisão, de escolha, que ela mesma não tem. Pois, tal como ocorreu com Circe e Ulisses, é preciso que alguém decida seguir o comando; que um ou mais indivíduos façam a opção clara e consciente de obedecer à orientação. 

Poder-se-ia argumentar que, no caso do direito, os indivíduos são obrigados a adotar a decisão previamente contida na lei sob pena de sofrerem uma sanção, isto é, uma punição. 

Este argumento, no entanto, apenas desloca o problema, pois caberá igualmente a um indivíduo ou a um conjunto de indivíduos a escolha clara e consciente entre aplicar ou não a sanção àquele ou àquela que não observou a ordem jurídica.

Aliás, Hans Kelsen, o jurista mais influente do Século XX, afirma isso com clareza: “Visto não podermos admitir um regressum ad infinitum, a última sanção nesta série apenas pode ser autorizada e não prescrita”[3].  

O que isso quer nos dizer? Que a linguagem do direito está muito próxima do canto das Sereias. De fato, tanto o hino hipnótico das criaturas malignas quanto a dicção particular do direito revelam o que não são, e, ao fazê-lo, escondem aquilo que são.

O canto das Sereias é uma melodia harmoniosa, sedutora, que carrega consigo a mensagem de que o conhecimento está à disposição de qualquer um que se aproxime. Basta ir ao encontro destes seres, metade mulher, metade pássaro, para que os segredos dos deuses e da terra sejam revelados. Esse canto, no entanto, esconde uma armadilha. Pois, ao encontrar as criaturas, o aventureiro logo é devorado e seus ossos permanecerão expostos ao apodrecimento.

A linguagem do direito também carrega consigo uma mensagem harmoniosa e sedutora. De acordo com ela, todos são iguais, livres e proprietários. Se seguirmos fielmente suas prescrições, quer dizer, se todos obedecermos a seus comandos, então viveremos tranquilamente em uma sociedade justa e sem conflitos. 

Mas a dicção jurídica esconde suas armadilhas. Ela não revela, pelo contrário, esconde, o tipo de sociedade sobre a qual se eleva. Uma sociedade constituída por uma desigualdade econômica visceral, que opõe um pequeno grupo de possuidores a uma multidão de despossuídos; formada pelo racismo e misoginia estruturais, que a conformam desde sempre.

É claro que algo nela (na linguagem do direito) precisa remeter à realidade. As próprias Sereias são metade mulher. Se fossem inteiramente pássaros, é provável que homens não se encantassem por sua melodia. Quando compramos uma mercadoria qualquer, a linguagem jurídica nos assegura de que o contrato de compra e venda é válido e que será cumprido. Ao fazê-lo, sentimo-nos livres, iguais ao restante dos consumidores, e, principalmente, proprietários de algo.

No entanto, esta não é a relação social fundamental em uma sociedade. A maneira como se distribuem bens e serviços entre os segmentos sociais, o que é determinado pelo modo como temos acesso à riqueza efetiva, isto é, salários, aposentadorias, lucros, dividendos etc., é que funciona como elemento estrutural constitutivo da comunidade. 

Na sociedade de mercado, entretanto, essa distribuição é desigual por natureza, pois é determinada antecipadamente por vínculos de propriedade que dependem de nossa posição na estrutura do ser social, algo que é definido antes de nosso nascimento. O filho de trabalhadores tenderá a seguir os passos de seus pais, a não ser que algo excepcional aconteça. O filho do empresário tenderá a herdar os negócios da família e a fortuna dos antepassados, e assim por diante.

Essa desigualdade de fundo é mascarada pela linguagem de superfície do direito, que proclama em alto e bom som que todos somos iguais, livres e proprietários. 

Não bastasse isso, esconde, ainda, o que é decisivo: ao afirmar que se aplica a todos e todas, a dicção jurídica esconde o fato de que serve a uma minoria, precisamente àqueles e àquelas que, na realidade concreta, incorporam os pressupostos que são por ela enunciados. 

Em outras palavras, a linguagem jurídica ajusta-se apenas a homens e mulheres que, de fato, são livres, iguais e proprietários, não em razão do enunciado jurídico, mas em virtude da realidade econômica e social que não apenas precede ao direito, mas conforma sua constituição. 

Isso significa que o direito se amolda muito bem aos elevados salários e lucros polpudos; aposentadorias abastadas e dividendos isentos de imposto sobre a renda; mas tem sérias dificuldades para adequar-se àqueles e àquelas que nada têm ou têm muito pouco.

Basta pensar no quotidiano de violência policial que ocorre abertamente nas periferias de nossas cidades, com estrangulamentos e asfixias, isso quando os policiais agem “moderadamente”. Por outro lado, verifique-se o comportamento subserviente destas “autoridades” quando estão em um condomínio de luxo, suportando ameaças e impropérios. 

Pois bem, o que podemos fazer diante dessa situação? Evidentemente, não podemos pedir às pessoas que usem ceras em seus ouvidos. Isso significa que a linguagem do direito, tal como o canto das Sereias, continuará enfeitiçando todos quantos a escutem. 

Também não adianta alardear aos quatro cantos o feitiço que se esconde em códigos, leis, decretos, resoluções, portarias etc. Uma linguagem não pode ser afastada por outra. Apenas a modificação da realidade a partir da qual emerge o encanto pode desconstituí-lo.

Nesse sentido, talvez devamos seguir o exemplo de Ulisses. 

Por que razão o herói, sabendo do perigo que significava ouvir o canto das sereias, resolveu, ainda assim, experimentá-lo? Uma hipótese possível é a de que buscava o conhecimento. No lugar da ignorância segura, preferiu o risco do conhecer. No entanto, tendo sido alertado, amarrou-se ao mastro e pediu a seus companheiros que não o soltassem. Desse modo, conheceu o hino hipnótico e pode narrar às gerações seguintes o segredo que escondia.

O grande problema dos pensadores progressistas no campo do direito é que não imitam a estratégia de Ulisses. Em outras palavras, não se amarram ao mastro de suas naus, e, por isso, caem sob o canto das Sereias. 

Ao se depararem com a linguagem do direito, acreditam piamente que há uma espécie de força oculta ínsita às palavras jurídicas. Esta força os convenceu de que é capaz de engendrar, na realidade e por si só, as posições de liberdade, igualdade e propriedade que são previstas no nível fraseológico. 

Esquecem, no entanto, que, tal como ocorreu no caso da orientação de Circe e a estratégia de Ulisses, existe, entre o texto da lei e a realidade concreta, um elemento fundamental de mediação que consiste na vontade de um ou mais indivíduos. Sem uma decisão clara e consciente no sentido de fazer com que a lei seja cumprida, a linguagem jurídica não passa de um enunciado como outro qualquer, tal qual a literatura, a poesia, a filosofia etc.

Mais do que isso, é elemento constitutivo da ordem jurídica a produção sincrônica de decisões que ora optam pelo cumprimento da lei, ora por seu descumprimento. Isso não é um “defeito” do sistema, mas seu modo realista de funcionamento. O ordenamento jurídico é formado por decisões que se revezam na aplicação do texto legal e em sua negação.

A partir de que critério se toma essa decisão? O estudioso que não se amarrou ao mastro de sua nau dirá que o critério é dado pela própria norma jurídica, que determina a sua aplicação. A esta altura já sucumbiu ao canto da Sereia e foi devorado.

O critério para a adoção desta ou daquela decisão, quer dizer, para a observância ou não do comando inscrito legalmente não pode se pautar na lei, pois a lei é, antes de tudo, um simples pedaço de papel. 

É a relação amigo/inimigo, cuja origem remonta à realidade dos fatos, que determina a decisão a ser tomada. Como vimos, esta realidade consiste numa sociedade que é marcada pela desigualdade econômica, racismo e misoginia estruturais, em que poucos têm muito, e, por isso, excedem em poder. 

Desse modo, deixada a seu livre desenrolar, a linguagem jurídica tenderá a ser sempre aquilo que ela de fato é: o encobrimento de relações de dominação e de poder por meio de palavras que consagram posições de igualdade e liberdade. 

Alguém poderia dizer que, infelizmente, o pensamento progressista no campo do direito não conta com nenhum “oráculo” que pudesse nos alertar sobre o canto das Sereias. Nada mais errôneo. Desde sempre contamos com nossas “divindades”, isto é, com pensadores que avisam, a todo momento, que não podemos acreditar na linguagem jurídica. 

Basta lembrar de Theodor Adorno: “O fato de precisar haver liberdade é a iniuria mais extrema do sujeito autônomo fundador do direito. O conteúdo de sua própria liberdade – da identidade que anexou tudo aquilo que não é mais idêntico – equivale à necessidade, à lei, ao domínio absoluto”[4]

Por alguma razão, o progressismo jurídico resolveu abandonar a perspectiva crítica e andar de mãos dadas com o paradigma tradicional. 

A crítica desconfia da linguagem do direito, recorre à economia, política e filosofia, e retorna ao campo jurídico já agora com armas potentes em suas mãos. O ponto de vista tradicional é todo ele formado e conformado pela dicção jurídica. Portanto, não há como escapar à sua lógica circular. O progressismo que permanece no interior do tradicionalismo é presa fácil do canto das Sereias. Por isso, a todo momento somos pegos no contrapé e sofremos derrotas acachapantes.

Nós que somos progressistas devemos nos amarrar fortemente ao mastro de nossas naus. Conforme escutamos a linguagem do direito, devemos pedir a nossos companheiros que nos amarrem com força redobrada. Somente assim podemos ouvir seus cantos e encantos sem sermos devorados; somente assim podemos legar às próximas gerações seus segredos ocultos para que indisfarçáveis golpes de Estado não encerrem nunca mais experiências democráticas.

    

[1] HOMERO. Odisseia. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural, 1979, pp. 112-119.


[2] Idem, ibidem, p. 113.


[3] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 27.


[4] ADORNO, Theodor W. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 210.

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