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Laís Vitória Cunha de Aguiar

Aos 16 anos passou a escrever para a ONG australiana Climate Tracker, que treina jovens para serem jornalistas climáticos, e com isso publicou para a EcoDebate e outros meios de comunicação. Participou dos Jornalistas Livres como freelancer e por um ano do Mídia Ninja. Publica eventualmente no Brasil 247 e Brasil De Fato. Formada em Línguas Estrangeiras Aplicadas ao Multilinguismo no Ciberespaço e coordena o Parlamento Mundial da Juventude no Brasil.

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A nova face de Cérbero

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Um novo barco para conduzir. Ele não se lembrava de como tinha ido parar ali, Ou que Deus o havia enviado...Só sabia que ali não era exatamente o mundo dos mortos, e aquele não era o seu barco. Mas poderia ser, pensou ele, e continuou fazendo o que sempre fez durante a Eternidade: conduzindo o barco dos portões da Terra para o Inferno. No caso, aquelas pessoas estavam vivas, e ele não entendia muito bem. 

O barco também era diferente, de um material desconhecido, colorido, mas o seu remo era o mesmo, e ele não se sentia diferente. Conseguia sentir a vida e o medo naquelas pessoas. Quase mortas, pensou. Elas estavam fugindo, isso era claro. E precisavam de um barco. Ele, portanto, sentiu que cumpriria seu dever ao conduzi-las na direção se seus destinos.   

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Haviam pago o seu companheiro de viagem, que distraidamente tentava ajudá-lo a remar, mas sem se esforçar tanto. Esse aí eu ainda vou levar para o inferno- pensou. Não entendeu como esse homem não estava estupefato pelo fato dele estar conduzindo: um grego de roupas antigas conduzindo um pequeno bote com um remo de ouro repleto de inscrições mágicas? Decidiu esquecer isso, afinal a situação era, para ele, favorável: as ondas eram fortes, intensas, e ele estava adorando sentir a brisa do mar, o sal e a água. Tudo vivo. Ele, no entanto, sabia que era Caronte, filho da Noite e da Escuridão, um deus menor fadado a fazer travessias pela eternidade, e por isso ainda não acreditava na situação, o que estava fazendo na Terra? 

As vozes das pessoas sofrendo já não o incomodavam mais, afinal os escutava pela eternidade. O som do mar, das pessoas falando árabe, tudo maravilhoso. Não resistiu a um sorriso. Aquelas famílias apavoradas não sabiam que quem os conduzia era um ser mítico e eterno que provavelmente ali estava por engano, e ele refletiu que só se apavoravam porque não sabiam que era ele o condutor. E daí que normalmente conduzia para os portões do mundo dos mortos? Isso não fazia dele um condutor ruim, bem o contrário, ele era excelente e por isso mesmo foi requerido para o cargo. 

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Sua primeira opção de trabalho? Não. Mas poderia ser pior. Preferia trabalhar para Hades do que para o pretensioso Zeus. Entre os três irmãos sempre preferiu Hades, a morte é sempre mais sincera. Uma onda cobriu o bote, e ele sorriu mais ainda! As crianças gritaram enquanto os pais tentavam abraçá-las e segurá-las para que não caíssem do barco. 

Ele admirou a sua tripulação...Sete crianças, três mulheres, dois homens. As mulheres usavam véus, os homens batas longas totalmente diferentes da moda da sua época, as crianças roupas variadas, algumas com vestidos coloridos, outras com calças e camiseta. 

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Nunca havia visto calças e camisetas, e no começo franziu o cenho, nervoso com todas as novidades. Ele habilmente os conduziu para fora do abismo, e ouviu gritos de agradecimento aos céus. Como levava cidadãos de todas as nacionalidades em seu barco, com o passar dos anos havia aprendido diversas línguas, e entre elas o árabe. Decidiu conversar um pouco com eles para acalmá-los. Como faria isso? Não é um procedimento padrão...Não sou de conversar com os passageiros. 

Olhou bem para as pessoas que ali estavam e viu as diferenças entre os seus passageiros atuais e os que levava ao inferno...Para começar a maioria ali eram crianças. Faço alguma piada? Mas nenhuma piada própria para crianças veio à sua mente. Ele, afinal, morava no reino dos mortos há milênios. Sentiu algo em comum entre os seus passageiros novos e os antigos: medo. 

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Com isso ele sabia bem lidar, passara muito tempo conduzindo as pessoas pelo caminho que induz a esse sentimento. Não há palavras para descrever a repetitiva dor daqueles que vinham com ele pela trilha do sofrimento eterno (a maioria não ia para os Campos Elísios), mas a tristeza dessa solidão viajante se encaixava bem na situação, e por isso lembrou que os homens responsáveis pelos camelos na Pérsia, que os levavam de um local ao outro, cantavam algo especial, repleto de saudade e tristeza, enquanto conduziam os camelos pelo deserto...Não havia letra na música, era apenas a força de suas vozes abrindo caminhos pela imensidão vazia. 

O mar é uma beleza e um perigo tão grande quanto o deserto, mas eu sou apenas um condutor perdido. Olhou para seus passageiros, como poderia não saber para onde os estava levando? Só poderia ser uma brincadeira de Poseidon tratar assim a vida alheia, mas ao mesmo tempo só Hades poderia liberá-lo de sua função. Tudo muito confuso. Decidiu permanecer com sua ideia inicial e cantar como os condutores persas...O mar estava mais calmo, porém o céu parecia sombrio e nebuloso, apesar de que para nosso imigrante do mundo imortal era belíssimo, fazia tempo que não via o céu. 

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Resolveu cantar para o céu e o mar, compartilhar sua força e conectar os três, o céu, o mar e seus passageiros. Estendeu uma mão para frente, na medida entre os dois elementos essenciais para vida, a água e o ar, encontrando seu momento de conexão entre os três, o céu, o mar, e as pessoas. Refletiu como ele era o quarto elemento, vindo assim das profundezas da terra, do Inferno. Uma brisa leve e passageira acariciou os passageiros, e as crianças repentinamente pararam de chorar. Ele começou a cantar. 

Sua voz se elevou no vazio, repleto de dores, seu remo de ouro incrustado de símbolos mágicos se iluminou, ele sentiu que poderia deixá-lo, e o largou, da mesma forma o remo continuou fazendo a condução enquanto ele cantava, preenchendo o livre espaço com som. Os adultos olhavam sem acreditar, mas tão cansadas que mais tarde pensariam que aquilo tudo tinha sido só um sonho no meio de um imenso pesadelo. Para as crianças aquela seria uma lembrança que guardariam com esperança, algo escondido só para si mesmos, como um fio de certeza de que o bom e o belo também são reais. 

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Ele cantou por horas e horas, permitindo expressar a sua paz e compartilhar a força. Um pedaço de terra apareceu na sua frente, e pela primeira vez em séculos ele viu sua terra novamente, ali estava ela, diferente e parecida, real e irreal, a Grécia. Sufocou seu choro, reencontrou o silêncio. 

O remo parou de brilhar, ele teve que pegá-lo rapidamente antes que caísse no mar (tinha certeza que teria muito trabalho para fazer Poseidon devolvê-lo depois, caso caísse). Uma luz amarela intensa fez com que não conseguisse enxergar mais nada. Seria o sinal dos deuses para voltar para casa? Não. A luz vinha de um grande barco, nosso condutor quase não conseguiu estabilizar seu pequeno bote. As crianças começaram a chorar novamente. Era o começo de um novo caminho para a morte, o Inferno moderno. Cérbero tinha uma nova face. 

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