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Edwald José Winand

Livreiro, historiador e compositor

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A renda da propriedade intocável em tempos de pandemia

"Deputados e senadores, assim como juristas e quase todos os que têm a oportunidade, ingressam no mecanismo do capitalismo rentista brasileiro e o protegem", afirma o autor

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As análises da situação do Brasil e do mundo e as ações de Estado em muitos outros países diante da pandemia do coronavírus convergem para um mesmo ponto fundamental: o Estado pode e deve manter viva a capacidade financeira das pessoas e das atividades econômicas através de políticas distributivas de renda e desoneração, garantindo a salvaguarda da capacidade de consumo da população e protegendo as atividades econômicas, principalmente naqueles casos dos pequenos e médios empresários e microempreendedores, os quais são todos reféns de um sistema bancário e financeiro perverso, entre outros fatores, e impedidos de reterem reservas financeiras,  drasticamente atingidos na perda de faturamento e na impossibilidade de exercerem  suas atividades. Certamente que o compromisso mais impactante tanto das pessoas físicas quanto das pessoas jurídicas é o aluguel do imóvel. A primeira preocupação do morador é o aluguel, e a primeira preocupação do locatário não residencial é o seu custo fixo mais pesado, o aluguel, depois sobrevém os salários e o custo do capital de giro.

Até agora, já fazendo quase um mês desde o início do regime de quarentena, a questão do aluguel do imóvel foi, na realidade, desprezada, sendo que para isso há certamente uma motivação política tacitamente enfronhada entre as relações de poder da sociedade brasileira. Trata-se de um apreço pela propriedade privada que lhe confere condição historicamente sedimentada de direitos e virtudes excessivos que se configuram tanto na lei brasileira, quanto no modus operandi social. A propriedade privada no Brasil é como um templo dedicado ao poder cujas raízes remontam às sesmarias coloniais, e cuja expressão evidente é a concentração fundiária em mãos de pouquíssimas pessoas físicas ou jurídicas, tanto no ambiente rural quanto no espaço urbano.A nossa notória desigualdade social decorre de uma desigualdade econômica profunda que poderia ser menor se o acesso à propriedade privada fosse democratizado. As nossas cidades, ocupadas por quase 90 % da população do país (IBGE), via de regra, são desorganizadas e aviltadas em nome de ostensivos interesses quase exclusivos daqueles que detém a maior parte dos imóveis, consolidando entre as classes médias uma naturalizada urbanidade excludente. O preço dos imóveis, que também determina o valor dos aluguéis, é controlado unilateralmente dentro do mercado imobiliário sem a participação do poder público. O mercado imobiliário é, por sua vez, comandado pelos grandes proprietários sob a forma da posse, da construção dos imóveis e da pressão política e econômica dentro da máquina pública, o que significa dizer que eles controlam a ocupação do solo urbano segundo seus interesses exclusivos contando com  a conivência formal ou informal de outras classes e setores sociais, os quais, dentro ou fora da máquina pública, ambicionam aquele fundamental direito à propriedade privada, pedra angular do pensamento liberal e da condição burguesa.

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É legítimo o direito de cada qual à sua parte do solo do planeta, no entanto, não apenas no Brasil, esse direito não somente é minoritário, como também é excessivo, deletério e imoral. Uma parte muito pequena da população tem direito à propriedade privada e, em se tratando da vida urbana, 60% das pessoas têm acesso às condições ideais de urbanidade, sendo que muitas vezes, entre as situações ditas ideais, se encontram aquelas que são apenas razoáveis (IBGE).  A maior parte dos imóveis, mas também os melhores imóveis, onde a cidade pode ser realmente boa e segura, pertencem às elites e à nossa pouco extensa e diminuída classe média brasileira.

Uma vez que a riqueza imobiliária brasileira é um imenso patrimônio de poucos, facilmente nomeável pelo jargão “especulação imobiliária”, fica fácil entender porque na recente tramitação do regime emergencial e transitório das relações jurídicas, no Projeto de Lei n° 1179/2020, derrubaram rapidamente o artigo 10 do capítulo VI, que permitiria o atraso ou a suspensão temporária no pagamento de aluguel nos casos de alteração econômico-financeira; demissão, redução de carga horária e diminuição de remuneração por conta da pandemia, e que sequer menciona os aluguéis não residenciais. Antes disso, no dia 24 de março, o Senador Weverton (PDT-MA), encaminhou o PL 884/2020, o qual propõe a suspensão por 90 dias a cobrança de aluguéis de pessoas físicas e jurídicas em caráter emergencial devido à pandemia do coronavírus. Isso significaria que seriam suspensas as cobranças de aluguéis residenciais e empresariais e que os valores devidos seriam assumidos pelo governo federal no caso de locadores com patrimônios abaixo de 2,5 milhões de reais. Infelizmente, a redação inicial deste projeto de lei é precária e confusa, no entanto, o sentido que ela indica, seria sim, a melhor orientação para a questão dos aluguéis em tempos de pandemia. Ela, inclusive, se assemelha à legislação emergencial na Alemanha, onde a legislação ordinária sobre imóveis e aluguéis é muito bem regulamentada em defesa dos mais fracos financeiramente. Só para se ter uma ideia, ainda no caso da Alemanha, somente a partir de julho de 2022, as execuções de despejos serão autorizadas legalmente. Mas no Brasil, a ajuda que está chegando do governo federal pelos aplicativos eletrônicos não contempla o fato de que em muitos casos, o aluguel pode representar mais de 30% ou até 50% da renda familiar das classes sociais mais pobres.

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A recusa do artigo 10 do PL 1179/20, na verdade, não faz tanta diferença uma vez que a solução justa e cidadã neste momento de pandemia seria a suspensão temporária de pagamentos coberta pelo Estado com carência adequada à recuperação financeira de pessoas e empresas e com prazos e parcelas justas. Desta forma, é preciso retomar um aspecto crucial sobre aquele período sem faturamento da loja fechada que não será recomposto imediatamente ao fim pandemia, e sobre aquele salário cortado em 50% do empregado, que neste momento, justificadamente se sente ameaçado em relação ao aluguel. De onde virá a receita dos pequenos empresários e dos trabalhadores autônomos impedidos de trabalhar?  E, pesa ainda, o atual contexto de três anos seguidos de queda da atividade econômica no Brasil. Como será possível voltar a empregar e reiniciar esses negócios interrompidos? Tudo indica que a depressão econômica está quase instalada.

A recusa do artigo 10 foi justificada com um argumento antigo e sem consistência, pois alega que antes há o direito daqueles proprietários que têm como fonte de renda apenas seus imóveis de aluguel e assim as partes devem resolver privativamente seguindo a legislação cabível. Este argumento equivale àquele em que se autoriza o empregador resolver com cada empregado individualmente as questões trabalhistas que antes seriam acordadas coletivamente e com amparo de sindicatos.

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As relações entre locador e locatário quase sempre são intermediadas pela presença “patronal” das imobiliárias. São relações conduzidas segundo um modelo tacitamente adotado para assegurar garantias de garantias dos proprietários; são relações mal resolvidas tirante apenas as exceções; são relações desequilibradas pelo autoritarismo corrente da vida brasileira, onde patrões e proprietários, sendo a mesma entidade, conseguem sempre impor as suas condições em detrimento de direitos dos locatários. Este argumento, que recusa o artigo 10, é muito frágil, pois aqueles que vivem apenas da renda de imóveis são os grandes proprietários que possuem dezenas, quando não, centenas de imóveis. Imaginemos então, apenas aquela pessoa que dispondo de 2 ou 5 imóveis, ter todos ou quase todos eles vagos. Morrerá de fome? Além do mais, no caso de uma suspensão de aluguéis devido à pandemia, o Estado poderia compensá-lo a partir de uma legislação emergencial. Mas deputados e senadores, assim como juristas e quase todos os que têm a oportunidade, ingressam no mecanismo do capitalismo rentista brasileiro e o protegem.

Permanece assim, na sociedade brasileira, uma relação inconsciente e até atávica, com um conceito de propriedade privada que remonta ao poder dos latifúndios escravistas, compartilhado entre todas as classes sociais e que na atualidade da urbanidade brasileira é perpetuado em nosso sistema de “zona sul” e favela, bairros nobres e periferia.

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