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Laís Vitória Cunha de Aguiar

Aos 16 anos passou a escrever para a ONG australiana Climate Tracker, que treina jovens para serem jornalistas climáticos, e com isso publicou para a EcoDebate e outros meios de comunicação. Participou dos Jornalistas Livres como freelancer e por um ano do Mídia Ninja. Publica eventualmente no Brasil 247 e Brasil De Fato. Formada em Línguas Estrangeiras Aplicadas ao Multilinguismo no Ciberespaço e coordena o Parlamento Mundial da Juventude no Brasil.

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Apenas Números

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Eles eram cinco. Logo depois, eram três. Dos três, um com quinze, um com dez, um com seis. Dos três, dois nas ruas, um em casa. Antes, casa era mãe, pai, escola. Não conhecia a palavra, mas a isso chamamos de lar. Pequeno? Sim. Apertado para cinco? Sim. Mas como eles não desejam ser cinco... 

Preso em casa, sem escola, com os irmãos na rua tentando a vida possível para jovens sós, ele  não conseguia parar de contar as horas, os dias, os minutos, para que seus pais voltassem. Fora tão rápido que ele não conseguia entender muito bem o que havia acontecido, ou o que era realmente morte. Não conseguia deixar de esperar pelos pais. Todos eles estiveram gripados, mas só os pais morreram. Nada fazia sentido. 

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Ele deveria ficar em casa. Na casa que ninguém mexeu nas roupas dos pais. Na casa em que três dormiam na cama de dois. Na casa que entre três, nenhum sabia realmente limpar. Na casa de cinco que não realmente pertencia a nenhum deles. Na casa de dois quartos, um banheiro, que ainda cheirava aos seus pais. Casa vazia. Casa sem comida. Ele deveria ficar em casa?

 Um, dois, três. Três dias, três crianças. Fome infinita. Comida foi o que acabou primeiro, mas os irmãos tentavam conseguir na rua. Doações, diziam ao irmão mais novo. Primeiro, tentaram conseguir emprego nas lojinhas das redondezas, mas elas estavam fechadas. Em segundo, pediram ajuda para os vizinhos, mas ninguém respondia. Em terceiro, em desespero, foram pedir nos faróis. 

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As moedas que conseguiam não eram suficientes para os supermercados abertos, e a loja do seu João, que os pais conheciam e onde sempre compravam, estava fechada. Na normalidade, talvez, os vizinhos, a família, iriam todos para o enterro e os três não estariam sós. Seus pais foram para o hospital e nunca mais voltaram. 

Eles não sabiam  qual hospital tinham ido, ou como buscar por eles. Tudo o que sabiam era que de acordo com os jornais, havia uma gripe que matava, então os pais deveriam estar mortos, raciocinou o primeiro depois de três dias. 

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Quinze. Mais velho, se sentia na obrigação de suprir as necessidades de seus irmãos, de colocar comida na mesa. Como? Ele sabia como, e não era nos faróis. A mãe sempre mandou que ficasse longe disso, mas e a fome? Doía. Doía a ausência, a solidão, a espera. 

Decidiu o que diria aos seus irmãos: os pais morreram. Nenhum dos dois queria acreditar, mas ele achava mais fácil acreditar. Se acreditasse, iria conseguir pensar em jeitos para fazer dinheiro, para comprar comida. 

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Três, quatro, cinco. Persistiam nos faróis. Nenhuma moeda era suficiente para comprar o tanto de comida que precisavam, por isso estavam sempre com fome. Os carros eram frios e distantes. Ninguém queria abrir a janela para meninos sem máscara.  

As opções se estreitavam. Ele sabia onde procurar e com quem falar. Todos os jovens do bairro sabiam. Era simples. Por mais que a imagem de sua mãe dizendo não aparecesse em sua frente, a fome era maior. 

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Seus pés andavam por si, ele não se sentia mais. Dor. Cansaço. Exaustão.  Por seus irmãos. 

Seis, sete, oito. Passos, moedas ou dias de fome? As lembranças se esparramavam como sombras e o presente como um vazio. Por seus irmãos.  

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Não era ele quem procurou seu colega de escola que vendia pelos corredores e todos sabiam. Era a fome. 

Não era ele quem passava horas a fio na rua, na busca de formas para vender mais. Era a fome. 

Não era ele quem trouxe seu irmão do meio para o trabalho com ele. Era a fome. 

Não era ele quem vendia. Era a fome.  

A fome é.   

Se lembrava da mãe voltando do trabalho, exausta, tarde, todos os dias. A casa da patroa era no Plano. O Plano que ele tanto ouvira falar, mas nunca fora. Na casa da patroa todos os filhos tinham quarto. Na casa da patroa os filhos iam pra escolas que falavam inglês. Na casa da patroa eles tinham viajado para fora, algum lugar muito longe que precisava de avião pra chegar. Na casa da patroa eles estiveram doentes, mas a mãe precisou trabalhar mesmo assim. Mesmo sem a tal máscara que diziam na televisão que precisava usar. Na casa da patroa também eram cinco, mas não se tornaram três. 

Nove. Não, ele tinha dez. Antes, corria atrás do irmão mais velho, querendo se enturmar, entender o irmão, seu grande exemplo. Depois da morte dos pais, ele continuou seguindo o irmão quando foram pedir nos faróis. Quando o irmão começou a vender drogas para comprar comida, ele não o culpou. 

Fome dói, e ver o irmão mais novo com fome doeu mais ainda, mas não sabia se queria entrar nessa...Os três sempre gostaram de estudar, a mãe sempre dizia que se estudassem a vida iria melhorar, que aos vinte seria doutor. Ele queria ser doutor, mostrar para a mãe que era capaz, e por isso mesmo sem escola lia o que conseguia em casa, mesmo sem entender os jornais muito bem. 

Na rua, tentava ler os letreiros de tudo o que encontrava, e pegava qualquer jornal velho para ler, era o mais próximo que conseguia se sentir de sua mãe. O menino a via cada vez que pegava um jornal para ler, ela aprovava sua leitura, enquanto ele sentia seu amor, a paz da vida de antes. 

Por alguns instantes, conseguia fingir que a vida era como antes. Mesmo que fosse apenas uma folha de jornal, suja, ele pegava e sentava no meio fio, era seu tesouro mais precioso. Os carros passavam, o frio chegava, mas quando lia seus pais estavam ali, felizes com o filho. Felizes com o futuro doutor.    

Seis. Com seis anos, ele tinha certeza que entendia o mundo. Seu irmão estava errado, seus pais iam voltar. uma gripe não mata. E se eles não voltassem, iria até a casa da patroa, porque afinal é onde a mãe sempre estivera. É o que sempre responderam: cadê mamãe? Na casa da patroa. Era lá onde ele a encontraria. 

Dez, nove, oito. Há quantos dias estava sozinho? Quantos dias tem um mês? Quantos meses tem um ano? Sem escola, sem família, só com a televisão. Seus irmãos chegavam muito tarde com balas e doce, e era tudo o que comia no dia. 

Perdeu a noção do tempo. Os raios do sol ou a escuridão da noite nada lhe diziam, e ele não conseguia mais ficar em casa. A água era fria, a televisão parou de funcionar porque não tinham mais energia, e a própria saudade quase foi ofuscada pela fome. 

Ele sabia quem conseguiria resolver, e era quem sempre resolveu tudo na vida dele, a mãe. Ela estaria na casa da patroa. Ele iria até lá, até o Plano. 

Oito, sete, seis. Em um dia sem data, saiu de casa e começou a andar, viu as casas dos vizinhos, alguns continuavam ali, outros não. Continuou a andança, a noite chegou, algumas casas tinham luzes, outras não. Se deitou em um canto, com frio e fome, mas determinado a chegar no Plano, no qual tinha certeza que encontraria sua mãe. 

Seis, cinco, quatro. Os dias sem datas seguiam, às vezes recebia comida, às vezes recebia propostas, mas sempre fugia: ele tinha um endereço em mente, o Plano, onde encontraria sua mãe. 

Ele sempre fazia a mesma questão: onde é o Plano? Até que em um dia sem data foi informado de que estava no plano, e apontaram para ele um prédio que havia achado muito estranho, como duas tigelas viradas: “ali é o Congresso.” 

Quatro, três, dois. Não sabia o que era Congresso, mas sabia que sua mãe não estava ali. As duas torres pareciam dizer: vem. Mas o que importava? Se o Brasil chega à Brasília, por que Brasília não chega ao Brasil? Era só um, mas esse pensamento valia por todos. 

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