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Fernando Lionel Quiroga

É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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As fomes do Brasil

"O Brasil tem fome. Fome de comida de verdade: carne, ovos, verduras, legumes e grãos. Mas não é só. Tem fome de educação de qualidade, tem fome de cultura"

(Foto: Reuters)
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A origem da palavra saber vem do latim e significa ter sabor, ter bom paladar, sentir por meio do gosto, ter inteligência, conhecer. Daí uma primeira aproximação entre o alimento do corpo - que depende da comida no prato - e o da alma - que vem dos livros e da transmissão cultural.

O Brasil tem fome. Fome de comida de verdade: carne, ovos, verduras, legumes e grãos. Mas não é só.  O Brasil tem fome de educação de qualidade, tem fome de cultura. E se esse não é um sentimento consciente, percebê-lo por meio de um exercício de autocrítica é tarefa fundamental. O que as duas fomes têm em comum são as más escolhas políticas. 

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Mas, se esse é o denominador comum entre ambas, há um que as diferencia. Enquanto a fome biológica manifesta sinais poucas horas depois da ingestão alimentar, dependendo da renovação do alimento para que ocorra o ciclo fome-saciedade, a fome intelectual apresenta caráter mais duradouro. Manifesta-se também por sinais, embora esta como aquela também possa ser saciada por meio de conteúdos ilusórios: alimento processado e cultura industrial. De qualquer forma, é um tipo de fome cumulativa, resinosa, de difícil remoção. Aqui me proponho a discutir esta segunda classe de fome, supondo existir um fino vínculo entre ela e a causa da primeira, de caráter biológico. Avanço na tese de que o caos instalado no Brasil após a declaração da vitória do Lula nas eleições é consequência direta desta segunda fome. Seria evitável, penso, se anos atrás as escolhas políticas tivessem pensado não apenas na fome biológica, mas também na cultural. 

 

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E, então, como isso se revela à luz do dia? Falemos do agora mais imediato. Dos fatos ocorridos ao longo da última semana. 

A musculatura da massa bolsonarista que agita bandeiras na porta dos quartéis deu sinais de contração. Seu líder, o mito messiânico, finalmente veio a público no Palácio da Alvorada, colocando-se em cena à frente de seus seguidores, separados apenas por um canal: a multidão verde amarelo, eufórica e iludida, “toda ouvidos”, de um lado; e o presidente derrotado, de camisa azul e calça preta, do outro. 

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“Toda ouvidos” para, finalmente, receber a mensagem que pode se resumir em duas orações: “”todos nós temos um ponto final aqui nesta terra” e, “mais importante que a própria vida é a liberdade” -  declarações feitas por Bolsonaro em 10 de dezembro. Bastou isso para que, dois dias depois, “coincidentemente” o dia da diplomação do presidente Lula e Alckmin, Brasília vivesse horas de terror nas mãos de manifestantes raivosos que atearam fogo em ônibus e carros sob o argumento de que pretendiam invadir a sede da Polícia Federal para resgatar o líder indígena bolsonarista, José Acácio Serere Xavante, preso sob a determinação de Alexandre de Moraes, por participar de atos antidemocráticos.

A questão é: será este um caso isolado?  Há riscos de que a cerimônia de posse se transforme em um banho de sangue?

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Todos os esforços estão sendo feitos para isolar o fato e impedir que atos semelhantes aconteçam. É o que assistimos no dia 15/12, quando uma mega operação da PF, sob determinação de Alexandre de Moraes promete cumprir entre 80 e 100 mandados de busca e apreensão contra os manifestantes golpistas que se instalaram na frente dos quartéis pedindo o fim da ordem democrática. O mesmo dia, aliás, em que Valdemar Costa Neto manifestou perplexidade diante da decisão do Ministro do TSE, pedindo aos bolsonaristas para continuarem na linha de frente, insistindo na intervenção das Forças Armadas.

Está claro: um grupo não expressivo de golpistas, mas longe de ser irrisório, segue firme na afronta contra a democracia. Amparados pelos vazios argumentos de que o STF e o TSE empreendem verdadeiros atos ditatoriais, que imprimem censura, quitando a liberdade de expressão e de que é inadmissível a volta de um ex-presidiário à presidência da República, uma coisa é certa: eles têm fome. Estão famintos não da primeira, mas da segunda classe de fome. E, na ausência de algo que os sacie, apelam para a violência como reação última de um desejo irrealizável. 

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Ali escoam pelo ralo da história centenas de milhares de brasileiros. Homens e mulheres comuns de nossa paisagem social. Como o Jairo, expert em caminhões a diesel e bombas injetoras que parava às sextas-feira para tomar “uma cervejinha” terminando apenas no domingo à tarde; o Gerson, pedreiro sensível, atento às exigências do caçula que lhe pedia sempre uma “surpresa” em seu retorno para casa; a Lourdes, dona de casa famosa pela cuca de banana com farofa, com que costumava surpreender a vizinhança; ou Maicon, adolescente de 17 anos, esperançoso pelo ingresso na universidade, onde pretendia superar a sombra da timidez do ensino médio. Todos eles, agora, veem-se diante de um nobre papel. Pois, afinal, quem é o Jairo senão alguém que, além de bom com caminhões não passa de um beberrão que conta causos; ou Gerson, que nota a indiferença do filho diante do tempo que tudo consome; ou a Lourdes, que acaba de descobrir um câncer de mama, embora não tenha coragem de contá-lo à família; e o adolescente, aprisionado ao smartphone que lhe oferece um mundo em que Elon Musk é um herói - e que, durante as madrugadas, sem o saber, começa a pesquisar sobre o nazismo?

Ora, diante de uma sociedade-terreno fecundada com a semente do ódio, as almas estarão prontas para a sua germinação. Isso pode ser o custo de anos de uma sociedade em degradação, aprofundada, nos últimos anos, por meio de narrativas caluniosas sobre o campo progressista, que culminaram no impeachment da Dilma e na prisão política do Lula. 

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São estes os brasileiros famintos que o novo governo deverá olhar com extrema sutileza. Não são os famintos de estômagos vazios que hoje ocupam as portas dos quartéis, mas aqueles para quem a leitura e os livros se tornaram obsolescências, coisas do velho mundo sem qualquer sentido perante o frenesi de uma realidade pragmática e estúpida, revestida dos pés a cabeça de porcelanato e ambientes ecoantes e frios em que se expõe uma nudez arquitetônica fascista.

E, como esta segunda fome ainda não foi saciada, a violência deverá eclodir. O Brasil da morte deve passar, embora não sem antes um último ato. O ataque de histeria coletiva deverá ainda irromper. Veremos nas ruas atitudes ainda mais passionais, performances bizarras, marcadas por forte afetividade. Podemos imaginar a tragédia se olharmos para o massacre do Ezeiza, de 1973 na Argentina, quando do retorno de Juan Domingos Perón após 18 anos de exílio na Espanha. Podemos imaginar o ato da posse do presidente eleito com a grandeza que o momento histórico exige. O que não devemos negligenciar é a possibilidade de um ataque de histeria coletiva do bolsonarismo radical que pode querer se insurgir, disposto a tudo para evitar que Lula suba a rampa.

A nuvem da morte que invadiu o Brasil nos últimos anos, quando, desgovernados,  vagamos sem rumo, como o Navio dos Loucos, de Bosch, já começa a deixar o continente. No lugar de sombras e escuridão (sigilo e segredos), já se começa a discernir os rostos dos semeadores do ódio que se banqueteavam com festas regadas a uísque, enquanto o Brasil experimentava seus piores dias de fome, miséria e mortes, especialmente durante o pior momento da pandemia. 

Há uma voz que vem do futuro. E é necessário comemorar a vitória da democracia, sobretudo porque somente ela pode saciar a fome dos que hoje, ensandecidos de ódio e fanatismo, deverão por seus meios se saciar. O processo, obviamente, não é de curto prazo. É necessário que as decisões políticas para esta segunda classe de fome entenda seus efeitos a longo prazo, colocando a cultura no centro de seus principais desafios.

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